segunda-feira, 2 de abril de 2018

CLASSE JOVENS - L 01 - INTRODUÇÃO ÀS CARTAS



Estudar analiticamente um texto bíblico do Novo Testamento é sempre um enorme desafio por vários motivos. Em primeiro lugar, porque estamos cronologicamente distantes quase 2 mil anos de seu momento autoral; por isso, o peso do estranhamento das práticas culturais, litúrgicas e sociais torna-se mais evidente ainda durante a leitura deste. Temos ainda que lidar com as especificidades linguísticas — pois o NT foi todo escrito numa versão popular de um idioma antigo, o grego — que desembocam também em enormes desafios para a compreensão literária da obra.
Lembremo-nos ainda que, no caso das epístolas aos tessalonicenses, não estamos diante de apenas um texto, mas, sim, de duas composições diferentes — apesar de ambas as correspondências serem, provavelmente, de um mesmo autor e para uma mesma comunidade. Desse modo, seria absolutamente incoerente utilizar-se de um mesmo conjunto de pressupostos teóricos para fundamentar a análise dessas duas obras sem qualquer tipo de distinção entre as mesmas.
Deve-se ainda levar em conta que os textos aos quais nos propomos a discutir nas páginas a seguir são literatura do corpus paulinus. Para tanto, faz-se necessário uma compreensão, mínima que seja, das particularidades do pensamento do apóstolo dos gentios, de modo especial, no início de sua produção epistolar. Pelo menos 1 Tessalonicenses, se é que não se pode dizer o mesmo de 2 Tessalonicenses, é uma amostra histórico-literária de uma genuína produção teológica paulina.
Sim, esse é outro desafio no estudo das epístolas aos tessalonicenses: estas são produções literárias antigas, sendo uma delas considerada o mais antigo texto neotestamentário presente no cânon bíblico. O que isso implica na análise do texto? Dentre as possibilidades concebíveis de serem apresentadas, estão, por exemplo: a escrita paulina nas epístolas aos tessalonicenses — por ser a manifestação de um pensamento teológico em construção — está desprovida de uma série de conceitos-chave abundantemente presentes em outros textos do apóstolo, tais como justificação, a humanidade de Cristo, a contraposição entre lei e graça, etc.
Há, por outro lado, temáticas centrais que, como demonstram os textos, já estão presentes na gênese da teologia paulina: o Dia do Senhor, redenção, santificação. Outras questões, como, por exemplo, a natureza kerigmática da pregação e o debate sobre a kenosis do Senhor Jesus estão presentes nessas epístolas, ainda que introdutoriamente se possa citar que, já em 1 Tessalonicenses, Jesus é reconhecido como o Senhor, o kyrios da Igreja.
Por fim, outra questão extremamente importante de considerarmos é o fato de que a produção epistolar é uma prática social bastante comum naquele contexto histórico; tal informação deve levar-nos a reconhecer a qualidade do relacionamento entre Paulo e aquela comunidade.
O que lemos em 1 e 2 Tessalonicenses não é uma produção literária que se propôs a ser canônica já na sua origem — até porque, como bem sabemos, o processo de reconhecimento canônico dos textos contidos no Novo Testamento deu-se num momento histórico posterior1 e segundo regras que estavam alheias ao conhecimento de Paulo.2
Conforme afirma-nos Tenney:

O verdadeiro critério da canonicidade é a inspiração. [...] (2 Tm 3.16,17). Por outras palavras, aquilo que foi dado por inspiração de Deus era escriturístico, e o que não veio por inspiração de Deus não era escriturístico, se “Escrituras” significarem o registro escrito da Palavra de Deus revestida de autoridade.
Se este critério for adotado como definitivo, há que responder a próxima pergunta: “Como se demonstra a inspiração?” Os livros do novo testamento não começam todos com a afirmação:



1 O reconhecimento da canonicidade dos textos do Novo Testamento foi um processo que ocorreu de forma lenta, majoritariamente entre os sécu- los II e IV d.C, como uma forma de preservar o cristianismo de uma série de perniciosas heresias que se disseminavam no seio da Igreja. Assim, o reconhecimento canônico dos textos ocorreu como uma consequência do caráter autoritativo que estes já possuíam entre as comunidades cristãs. O cânone de Marcião de Sínope e o muratoriano são exemplos de antigas listas que buscavam elencar a literatura cristã primitiva que deveria ser reconhecida com valor de Escritura Sagrada. Já no século XVI, durante o Concílio de Trento — como uma reação institucionalmente organizada da Igreja Católica contra os efeitos da Reforma Protestante —, uma lista de livros canônicos será oficialmente apresentada.
2 Para ser considerado canônico, o texto teria de ser de autoria apostólica, estar compatível com os ensinamentos apostólicos e ter autoridade apostólica. Percebe-se, assim, um comprometimento com uma tradição apostólica, com o intuito óbvio de referendar comunitariamente a veracidade de um determinado escrito.
de que foram inspirados por Deus. Alguns relacionam-se com assuntos muito vulgares, outros contém enigmas históricos, literários e teológicos que só com dificuldade podem ser resolvidos. Será possível demonstrar a sua inspiração a contento de todos?
A resposta a este problema é tripla. Primeiro, a inspiração destes documentos pode ser apoiada por seu conteúdo intrínseco. Segundo, essa inspiração pode ser corroborada pelo seu efeito moral. Finalmente, o testemunho histórico da Igreja Cristã mostrará o valor que era dado a esses livros, se bem que a Igreja não fizesse com que eles fossem inspirados ou canônicos. (TENNEY, 208, p. 428,429)

É importante reconhecer que a autenticação do caráter canônico de um texto constituiu-se na coletividade, por seu uso comunitário e popularidade entre os cristãos; tais fatos são tão verdadeiros que, durante muito tempo, se discutiu a canonicidade de textos como a DidachéApocalipse de EnoqueEvangelho de Tomé. O contrário também deve ser considerado, como, por exemplo, as fortes críticas apresentadas por Martinho Lutero (1483–1546), em pleno século XVI, à presença da Carta de Tiago no Corpus neotestamentário.
Sobre esse contexto, afirma-nos Cullmann:

De uma maneira geral, o cânone do Novo Testamento não se formou, como se poderia supor, por adição, mas por eliminação. Ainda no início do século II, foram redigidos não somente evangelhos apócrifos e atos dos apóstolos, mas também um grande número de outros escritos cristãos (como os escritos dos Pais Apostólicos). Esses, mesmo que não pretendessem remontar às origens, não tinham, em princípio, uma autoridade inferior àquela dos escritos que hoje fazem parte do Novo Testamento. (CULLMANN, 2015, p. 90)

Para deixar claro que esses conflitos com relação à construção de um cânon não é um problema exclusivo do cristianismo, pode-se citar o fato de que o conjunto de livros do Antigo Testamento, como conhecemos hoje, só foi “canonizado” pela comunidade judaica por volta do século III d.C (Moura, 2013).
Se 2 Tessalonicenses são textos sagrados, agora os compreendendo para além da questão histórico-crítica da canonicidade e muito mais próximo de uma concepção devocional das epístolas, isso se deve ao fato de que Paulo, ao escrever àqueles irmãos, não fez isso de modo institucional ou religioso, mas, sim, de maneira amorosa e fundamentalmente cristã. Não se tratava de um técnico de assuntos religiosos transmitindo ordens a um grupo de iniciados, mas, sim, de um líder, um amigo, um pastor, que pacientemente ensina um grupo de novos convertidos a como proceder diante de dúvidas e questões que afligiam o cotidiano daquela comunidade.

Características Gerais de Tessalônica
Fundada pelo general macedônio Cassandro no século IV a.C, a partir da reunião de 26 províncias existentes, Tessalônica foi assim denominada em homenagem à esposa deste monarca que se chamava de Thessaloniki.3 A geografia da região fez com que Tessalônica rapidamente se destacasse como cidade portuária, tornando-a extremamente importante do ponto de vista comercial para a região da Macedônia. Consequentemente, foram desenvolvidas diversas rotas comerciais e militares; com destaque a Via Egnácia — estrada construída pelo Império Romano para a interligação das províncias da Macedônia, do Ilírico e da Trácia. Ainda sobre as informações geográficas de Tessalônica, informa-nos Claro:
A par desta privilegiada localização, o mérito de Tessalônica era potenciado pela excelência de recursos naturais de toda a província: solos férteis e suficientemente irrigados, que aliados a épocas estivais quentes e invernias severas, favorecia o cultivo de grão e frutos continentais, bem como proporcionava pastagens abundantes aptas à atividade pastoril. Em volta da cidade, as montanhas ofereciam a madeira necessária


3 É necessário registrar que esta era filha de Filipe II (382 a.C.–336 a.C.), rei da macedônia, e meia-irmã de Alexandre Magno (356 a.C.–323 a.C.) mais conhecido como Alexandre, o Grande.
à edificação de habitações e à construção de embarcações. Não seria de estranhar que a atividade pesqueira tivesse larga predominância dada a localização na orla costeira e a presença de rios e lagos por toda a província. O subsolo oferecia a ex- ploração de minerais nobres como o ouro, a prata e o cobre, bem como o ferro e o chumbo. (CLARO, 2017, 11 e 12.)

Na tentativa de desvincular-se do poder de Roma, a província da Macedônia como um todo se revoltou contra Roma em três episódios distintos (214–205 a.C; 200–197 a.C; e 171–168 a.C), sendo subjugada todas as vezes. Com as reformulações implantadas para manutenção da política imperialista de Roma, Tessalônica passou a ser a capital da província da Macedônia a partir de 146 a.C. A partir de 42 d.C., Tessalônica torna-se sede de residência do procônsul romano, ganhando, assim, status de cidade-livre sem nunca, todavia, ser de fato.
Sobre a população tessalonicense, Trimaille e Darrical defendem que:

A população de Tessalônica não era homogênea, a colonização romana havia trazido famílias itálicas, juntaram-se também os orientais, atraídos pela esperança de fazer fortuna (sírios, egípcios e judeus). Paulo encontrou ali uma sinagoga, testemunho de uma melhor implantação judaica em Tessalônica que em outros lugares. [...] Esse caráter cosmopolita da população havia feito proliferar os cultos e as divindades. Várias inscrições que se conservaram nos antigos monumentos demonstram que ali se veneravam pelo menos vinte divindades. Convém recordar que [...] Dioniso era especialmente honrado em Tessalônica, o qual tem sua importância para situar certas exortações em 1 Ts, isto porque este culto cristalizava, mais que os outros, as esperanças de uma vida futura (cf 5.1-11). (TRIMAILLE, 1982, p.3,4)

Atualmente, Salônica, a moderna Tessalônica, é uma importante cidade grega, destacando-se como forte centro universitário e industrial. Pensemos, então, pormenorizadamente, a partir desse ponto, sobre os aspectos gerais de cada uma das epístolas aos tessalonicenses, ressaltando as características em comum, mas também as especificidades de cada um dos textos.

1 Tessalonicenses — Paulo e os Tessalonicenses: uma Peculiar Relação
Neste momento introdutório, dentre as várias análises possíveis de serem feitas com relação à 1 Tessalonicenses, optar-se-á por concentrar-se num aspecto referente à obra: o relacionamento entre Paulo e aquela comunidade. Como se demonstrará ao longo deste comentário, apesar de não ter vivido um longo período de tempo naquela cidade — e, por isso, ter conseguido ampliar de maneira pormenorizada os laços com os tessalonicenses — Paulo nutria uma enorme consideração por aqueles irmãos.
Pode-se fundamentar tal afirmação a partir do seguinte argumento: tendo o apóstolo já realizado sua primeira viagem missionária — onde visitou, pregou e fundou pelo menos seis comunidades cristãs, as quais foram fortalecidas ainda no retorno antes do fim da viagem — e tendo anunciado o evangelho em outras cidades já na segunda viagem missionária, é para Tessalônica que Paulo endereça sua primeira carta.
Como defende Trimaille (1982, p. 13), há, nesse momento do ministério paulino, uma forte ênfase na necessidade de vida em coletividade. Só há cristianismo em comunidade; daí, a necessidade de obter notícias daqueles irmãos e do andamento da vida de fé dos mesmos. Durante a segunda viagem missionária de Paulo, especial- mente durante sua estada na Macedônia, a qual se fez por meio de uma inequívoca revelação divina, estabeleceu-se — pelo me- nos, é o que entendemos por meio da narrativa de Lucas — uma lógica para a implantação de igrejas: a) Anúncio do evangelho;
b) Fundação da igreja; c) Forte perseguição dos judeus; d) Saída abrupta. Essa “lógica” por ser exemplificada com os casos de Filipos, Tessalônica e Bereia.
Por tudo o que aconteceu na fundação da igreja em Tessalônica — perseguição, oposição, acusação —, o coração pastoral de Paulo preocupava-se enormemente com a possibilidade do fracasso espiritual daquela comunidade; porém, qual não foi a surpresa do apóstolo ao receber notícias de que aquela neófita comunidade ia bem. Nada, nem mesmo os problemas sociais ou as recentes heresias, conseguem calar a alegria de Paulo, a qual transborda em cada linha desta amistosa carta.
Assume-se, assim, uma chave hermenêutica para a leitura de 1 Tessalonicenses, que advoga a experiência da fé mútua, da confiança em Deus, mas também uns nos outros, como elemento central desta análise. Concordamos com Marques quando ele afirma que:

Tendo em mente o profundo significado que a Morte e Ressurreição e Parusia de Cristo adquirem no Evangelho de Paulo, este estudo é uma leitura de 1Ts sob o viés da confiança mútua entre os personagens por ela envolvidos. É pela con- fiança em Paulo, Silvano e Timóteo que os tessalonicenses confiam primeiro no Deus vivo e Verdadeiro em quem eles creem e a quem confiam suas existências. Neste Deus Vivo e Verdadeiro os tessalonicenses passam a crer com convicção a ponto de abandonarem seus ídolos (1Ts 1,9), e mais ainda, creem no Senhor Jesus, que em sua Parusia virá libertá-los da ira futura do juízo final (1Ts 1,10). O comprometimento dos tessalonicenses com o Deus Vivo e Verdadeiro não poderia acontecer antes que os tessalonicenses tivessem conhecido Paulo e seus colaboradores, Silvano e Timóteo. Os tessalonicenses observaram seus evangelizadores: eles eram modelos de uma confiança inabalável em Deus. Por outro lado, Deus mesmo mostrava sua confiança em Paulo e seus auxiliares, porque por meio deles Deus realizou uma obra que homem algum realizara antes em favor dos tessalonicenses. Por fim, convertidos, os tessalonicenses imitam seus evangelizadores e se tornam, também eles, evangelizadores da Macedônia e da Acaia (1Ts 1,4-10). (MARQUES, 2009, p. 15,16)

1 Tessalonicenses não é um texto institucional, burocrático-religioso; esta primeira Escritura é uma manifestação histórico-cultural da simplicidade do evangelho que se vivia naquele contexto de cristianismo primitivo. A espontaneidade com que Paulo dirige-se àquela comunidade identifica com clareza a natureza desinstitucionalizada das relações cristãs em Tessalônica. Para alguns, como defende Luckensmeyer (2009, p.1) e Claro (2017), por exemplo, isso seria o resultado de uma forte influên- cia da filosofia helenística em 1 Tessalonicenses, o que não é tão evidente em outras epístolas paulinas que são posteriores, tanto pelo contexto histórico como pelas evidências textuais. Segundo essa hipótese, a necessidade de cuidado e proximidade de Paulo com aqueles irmãos justificou-se pela necessidade de superar uma série de práticas idólatras que estavam diretamente associadas a vivências do cotidiano da comunidade.
Um exemplo clássico da relação entre o cuidado de Paulo com os tessalonicenses e a questão da cultura helenística pode ser identificado na reticente abordagem da questão da ressurreição. Diante da variedade de cultos a divindades, entre os quais ao egípcio Osíris e ao grego Dioniso, a questão da ressurreição necessitava ser apregoada a partir de uma perspectiva cristã — inclusive para superar o materialismo estoico e o indiferentismo epicureu, que predominava entre os atenienses ali bem próximo de Tessalônica.
Por isso, Claro defende que:

[...] na comunidade de Tessalônica, a principal questão que suscitava interpelação e dúvida não era tanto como seriam ressuscitados os cristãos, mas fundamentalmente, como os vivos e os mortos tomariam parte no evento escatológico. Por sua vez, Paulo não pretende explicar a transformação dos corpos dos cristãos operada por tal evento (cf. 1Cor 15, 51-52; Fl 3, 20-21), antes a sequência dos momentos escatológicos, de forma a elucidar que os mortos ressuscitarão em primeiro lugar de maneira a tomarem parte da parusia de Cristo. (CLARO, 2017, p. 83)

As dúvidas dos tessalonicenses, segundo essa argumentação, não se concentravam no conceito da ressurreição — diferente- mente daquilo que Paulo enfrentará em Atenas —, mas na maneira como se dará o Dia do Senhor. Acreditar que mortos reviveriam era algo presente no mundo religioso dos tessalonicenses, mas eles não compreendiam como se daria o encontro de vivos e mortos no mesmo lugar. Percebe-se, assim, que, por meio de uma estratégia de evangelização que partiu de elementos próprios da cultura do povo, Paulo anuncia a genuína Boa-Nova aos tessalonicenses.

2 Tessalonicenses — A Polêmica da Autenticidade
Assim como se fez com relação à primeira epístola, a título de apresentação de 2 Tessalonicenses, eleger-se-á uma temática para aqui ser apresentada e debatida, a despeito de várias outras poderem receber o mesmo trato. O debate sobre a suspeita de uma condição deuteropaulina para este texto demonstra-se como uma questão de destaque e relevância.
A centralidade dos argumentos a favor da compreensão de 2 Tessalonicenses como um texto não paulino concentra-se especialmente com relação ao trato da questão sobre as últimas coisas. Para esses pesquisadores, existe uma discrepância insus- tentável entre a abordagem escatológica de 1 e 2 Tessalonicenses. O contraste central com relação à escatologia dessas duas epístolas dá-se em virtude de uma visão da parusia como algo repentino e imediato em 1 Tessalonicenses, porém processual e distante em 2 Tessalonicenses.
Um modo simples de propor uma solução para essas supostas divergências é analisar a problemática escatológica a partir de dois prismas contextuais específicos: enquanto em 1 Ts Paulo está envolvido num processo de confirmação e fortalecimento à distância da fé dos tessalonicenses — algo que, na primeira viagem missionária, foi feito no retorno às cidades quando da volta, mas aqui não foi possível em virtude das inúmeras situações adversas —, em 2 Ts, Paulo está fazendo uma conexão entre ética e escatologia, mais propriamente uma apresentação daquilo que seria uma ética da provisoriedade.
Ora, o caráter provisório de nossa vida, em virtude da parusia de Cristo, não pode prescindir de uma profunda fundamentação ética. Cristo vai voltar, mas isso não deve ser pretexto para uma vida pessoal desorganizada; na verdade, há uma série de acontecimentos que envolvem o retorno de Cristo; logo, é necessário termos uma vida eticamente séria. Se assim compreendermos os dois objetivos diferentes de Paulo ao falar sobre as últimas coisas, as supostas contradições serão facilmente diluídas.
Sigamos, então, nas páginas a seguir, em uma análise capítulo a capítulo destas duas preciosas cartas paulinas.

RETIRADO DO LIVRO DE APOIO.


Bibliografia

CLARO, Francisco Eloi Martinho Prior. Marcas helenistas na Primeira Carta de São Paulo aos Tessalonicenses. A inculturação no primeiro escrito bíblico cristão. Dissertação (Mestrado em Teologia). Porto, 2017. 116f.
CULLMANN, Oscar. A formação do Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal e EST, 2015.
LUCKENSMEYER, David. The Eschatology of First Thessalonians.
Göttingen: Vandenhoeck&Ruprecht, 2009.
MARQUES, V. Paulo em Tessalônica: o relacionamento de con- fiança mútua na fundação da Igreja. Perspectiva Teológica. Belo Horizonte, v. XLI, p. 09-37, 2009.
MOURA, Valmir Nascimento de. Protoevangelho de Tiago: um estudo sobre crenças “alternativas” nos primeiros séculos da era cristã. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião). João Pessoa, 2013. 132f.
TENNEY, Merrill C. O Novo Testamento sua origem e análise. São Paulo: Shedd Publicações, 2008.
TRIMAILLE, Michel. La primera carta a los tessalonicenses. Estella: Edi- torial Verbo Divino, 1982.



domingo, 1 de abril de 2018

Davi Livingstone. - Célebre missionário e explorador (1813-1873)


Certo comerciante, ao visitar a abadia de Westminster, em Londres, onde se acham sepultados os reis e vultos eminentes da Inglaterra, inquiriu qual o túmulo, excluindo o do "soldado desconhecido", que é mais visitado. O porteiro respondeu que era o de Davi Livingstone. São poucos os humildes e fiéis servos de Deus que o mundo distingue e honra assim.

Conta-se que, em Glasgow, depois de passar dezesseis anos na África, Livingstone foi convidado a fazer um discurso perante o corpo discente da universidade. Os alunos resolveram vaiar esse "camarada missionário'', fazendo o maior barulho possível. Certa testemunha do acontecimento disse: "Contudo, desde o momento em que Livingstone compareceu perante eles, magro e delgado, depois de cair trinta e uma vezes de febre nas matas da África, e com um braço descansando numa tipóia, depois do encontro com um leão, os alunos guardaram grande silêncio. Ouviram, com o maior respeito, tudo que o orador relatou e amaneira como Jesus cumprira a sua promessa: "Eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos".

Davi Livingstone nasceu na Escócia. Seu pai, Neil Livingstone, contava aos filhos as proezas de seus antepassados, por oito gerações. Um dos bisavôs de Davi, com a família, fugira dos cruéis pactuários, para os pantanais e montes escabrosos, onde podia adorar a Deus em espírito e em verdade. Mas mesmo esses cultos, que se realizavam entre os espinhos e, às vezes, no gelo, eram interrompidos, de vez em quando, pela cavalaria que chegava galopando para matar ou levar presos, tanto homens como mulheres.

Os pais de Davi criaram seus filhos no temor do Senhor. O lar era sempre alegre e servia como notável modelo de todas as virtudes domésticas. Não se perdia uma hora durante os sete dias da semana e o domingo era esperado e honrado como o dia de descanso. Com a idade de nove anos, Davi ganhou um Novo Testamento, prêmio oferecido ao repetir de cor o capítulo mais comprido da Bíblia, o Salmo 119.

"Entre as recordações mais sagradas da minha infância", escreveu Livingstone, "estão as da economia da minha mãe para que os poucos recursos fossem suficientes para todos os membros da família. Quando completei dez anos de idade, meus pais me colocaram em uma tecelagem para que eu ajudasse a sustentar a família. Com parte do salário da primeira semana, comprei uma gramática de latim".
Davi iniciava o dia na tecelagem, às seis horas da manhã e, com intervalos para o café e o almoço, trabalhava até oito da noite. Segurava a sua gramática aberta na máquina de fiar algodão e, enquanto trabalhava, estudava-a linha por linha. Às oito horas da noite, dirigia-se, sem perder tempo, à escola noturna. Depois das aulas, estudava as lições para o dia seguinte, às vezes, até a meia-noite, quando a mãe tinha de obrigá-lo a apagar a luz e dormir.

A inscrição no túmulo dos pais de Davi Livingstone indica as privações no lar paterno:

Para marcar o lugar onde descansa :
Neil Livingstone, e Agnes Hunter, sua esposa,

e para exprimir a gratidão a Deus dos seus filhos:
João, Davi, Janet, Carlos e Agnes, por pais pobres e piedosos.

Os amigos insistiam em que ele mudasse as últimas palavras para "pais pobres, mas piedosos". Contudo, Davi recusou porque, para ele, tanto a pobreza, como a piedade eram motivos de gratidão. Sempre considerou o fato de aprender a trabalhar longos dias, mês após mês, ano atrás ano, na fábrica de algodão, uma das maiores felicidades da sua vida.

Nos dias feriados, Davi gostava de pescar e fazer longas excursões pelos campos e às margens dos rios. Esses passeios extensos lhe serviam tanto de instrução como de recreio; saía para verificar na própria natureza o que estudara nos livros sobre botânica e geologia. Sem o saber, ele assim se preparava em corpo e mente para as explorações científicas e para o que escreveria com exatidão acerca da natureza na África.

Aos vinte anos, houve grande mudança espiritual em Davi Livingstone, que determinou o rumo de todo o resto da sua vida. "A bênção divina inundou-lhe o ser como inundara o coração do apóstolo Paulo ou de Agostinho, e outros do mesmo tipo, dominando os desejos carnais... Atos de abnegação, muito difíceis de executar sob a lei férrea da consciência, tornaram-se em serviços de vontade livre sob o brilho do amor divino... É evidente que fora movido por uma força calma, mas tremenda, dentro do próprio coração, até o fim da vida. O amor que começou a comovê-lo, na casa paterna, continuou a inspirá-lo durante todas as longas e enfadonhas viagens pela África, e o levou a ajoelhar-se, à meia-noite, no rancho em Ilala, de onde seu espírito, enquanto ainda orava, voltou ao seu Deus e Salvador.

Davi, desde a infância, ouvia falar de um missionário valente na China, cujo nome era Gutzlaff. Nas suas orações, à noite, ao lado de sua mãe, orava por ele. Com a idade de dezesseis anos, Davi começou a sentir desejo profundo de fazer conhecido o amor e a graça de Cristo àqueles que jaziam em densas trevas, e resolveu firmemente no coração dar, também sua vida, como médico e missionário, ao mesmo país, a China.

Ao mesmo tempo, o professor da sua classe na Escola Dominical, Davi Hogg, o aconselhava: "Ora, moço, faça da religião o motivo principal da sua vida cotidiana e não uma coisa inconstante, se quer vencer as tentações e outras coisas que o querem derribar". E Davi assentou no seu coração dirigir sua vida por essa norma.
Ao completar nove anos de serviços na fábrica, foi promovido a um trabalho mais lucrativo. Conseguiu completar seus estudos, recebendo o diploma de licenciado da Faculdade de Médicos e Cirurgiões de Glasgow, sem ter recebido um tostão de auxílio de alguém.

Se os crentes não o tivessem aconselhado a que falasse à Sociedade Missionária de Londres acerca de enviá-lo como missionário, ele depois declarou que teria ido por seus próprios esforços.
Durante todos os anos de estudos para ser médico e missionário, sentia-se dirigido para ir a China. Certa vez, numa reunião, ouviu o discurso de um homem, de barba comprida e branca, alto, robusto e de olhos bondosos e penetrantes, chamado Roberto Moffat. Esse missionário voltara da África, um país misterioso, cujo interior era então desconhecido. Os mapas desse continente tinham no centro enormes espaços em branco, sem rios e sem serras. Falando da África, Moffat disse a Davi Livingstone: "Há uma vasta planície ao norte, onde tenho visto, nas manhãs ensolaradas, a fumaça de milhares de aldeias, onde nenhum missionário ainda chegou".

Comovido, ao ouvir falar em tantas aldeias sem o Evangelho e sabendo que não podia mais ir à China por causa de guerra que havia naquele país, Livingstone respondeu: "Irei imediatamente para a África".
Com isso os irmãos da missão concordaram e Davi voltou ao humilde lar em Blantire para se despedir dos pais e irmãos. Às cinco horas da manhã, do dia 17 de novembro de 1840, a família se levantou. Davi leu os salmos 121 e 135com eles. As seguintes palavras ficaram gravadas no seu coração, para o fortalecerem no calor e perigos durante os longos anos que passou depois, na África: "O sol não te molestará de dia e nem a lua de noite... O Senhor guardará a tua entrada e a tua saída, desde agora e para sempre". Depois de orarem, despediu-se da sua mãe e irmãs e andou a pé, com seu pai que o acompanhou até Glasgow. Depois de se despedirem um do outro, Davi embarcou no navio para não mais ver, aqui na terra, o rosto nobre de Neil Livingstone.

A viagem de Glasgow ao Rio de Janeiro e, por fim, à cidade do Cabo, na África, durou três meses. Mas Davi não desperdiçou o tempo. O comandante se tornou seu amigo íntimo e ajudou-o a preparar os cultos, nos quais Davi pregava aos tripulantes do navio. O novo missionário aproveitou, também, a oportunidade a bordo para aprender a usar o sextante e saber exatamente a posição do navio, observando a lua e as estrelas. Essa ciência lhe foi mais tarde de incalculável valor para orientar-se nas viagens de evangelização e exploração no imenso interior desconhecido do qual "subia a fumaça de mil vilas sem missionário".
Da cidade do Cabo, a viagem de 190 léguas foi feita aos solavancos, num carro de boi, através de campos incultos. A viagem durou dois meses, até chegar em Curumã, onde devia esperar o regresso de Roberto Moffatt. Desejava estabelecer-se em um lugar cinqüenta a sessenta léguas mais para o norte de qualquer outro em que houvesse obra missionária.

Para aprender a língua e os costumes do povo, nosso pioneiro passava o tempo viajando e vivendo entre os indígenas. O seu boi de sela passava a noite amarrado, enquanto ele assentava-se com os africanos ao redor do fogo, ouvindo as lendas dos seus heróis. Livingstone, por sua vez, contava-lhes as preciosas e verdadeiras histórias de Belém, da Galiléia e da Cruz. Continuou sempre os seus estudos enquanto viajava, fazendo mapas dos rios e serras do território percorrido. Em uma carta a um amigo escreveu que descobrira trinta e duas qualidades de raízes comestíveis e quarenta e três espécies de fruteiras que davam no deserto sem serem cultivadas. De um ponto que alcançou, faltavam-lhe apenas dez dias de viagem para chegar ao grande lago Ngami, que descobriu sete anos depois.
De Curumã, o missionário, licenciado da Faculdade de Médicos e Cirurgiões de Glasgow, escreveu a seu pai: "Tenho uma clientela grande. Há pacientes aqui que andaram mais de sessenta léguas para receberem tratamento médico. Esses, ao regressarem, enviarão outros para o mesmo fim".

Estabeleceu a sua primeira missão no lindo vale de Mabotsa, na terra de Bacarla. Em uma carta, escrita de Curumã, Livingstone assim descreveu o local que escolhera para centro de evangelização: "Está situado em um anfiteatro de serras que se intitula 'Mabotsa', isto é, 'Ceia de Bodas'. Que Deus nos ilumine com a sua presença, para que, por intermédio de servos tão fracos, muito povo ache entrada para a Ceia das Bodas do Cordeiro!"
Foi em Mabotsa que teve o histórico encontro com um leão. Acerca disso escreveu Davi: "Ele saltou e me alcançou o ombro; ambos fomos ao chão. Rosnando horrivelmente perto do meu ouvido, sacudiu-me como um cão faz a um gato. Os abalos que me deu o animal produziram-me um entorpecimento igual ao que deve sentir um rato, depois da primeira sacudidela que lhe dá o gato. Atacou-me uma espécie de adormecimento, em que não senti dor nem sensação de temor".
Contudo, antes de a fera ter tempo de o matar, deixou-o para atacar outro homem que, de lança na mão, entrara na luta. O ombro dilacerado de Livingstone nunca sarou completamente: ele nunca mais pôde apontar um rifle ou levar a mão à cabeça sem sentir dores.

Foi na casa de Roberto Moffatt, em Curumã, que chegou a conhecer Maria, a filha mais velha desse missionário. Depois de abrir a missão em Mabotsa os dois se casaram. Seis filhos foram o fruto desse enlace.
Depois de Livingstone se casar, a Escola Dominical em Mabotsa transformou-se em escola diária, tendo sua esposa como professora. Schele, o chefe da tribo, tornou-se grande estudante da Bíblia, mas queria "converter" todo o seu povo à força de "litupa", isto é, chicote de couro de rinoceronte. Schele iniciou culto doméstico em casa e o próprio Livingstone se admirou da sua maneira, simples e nata, de orar. Era o costume de Livingstone começar o dia com culto doméstico e não é de admirar que o chefe o adotasse também.

Livingstone foi obrigado a mudar-se para Chonuane, dez léguas distante e, mais tarde, por falta de água, ele e todo o povo mudaram-se para Colobeng. Foi nesse último lugar que o chefe da tribo construiu uma casa para os cultos e Livingstone construiu com grande sacrifício de dinheiro e labor, a sua terceira casa de residência. Nessa casa morou cinco anos para nunca mais conseguir fixar residência em qualquer lugar na terra.

Acerca do trabalho nesse lugar, assim se expressou: "Aqui temos um campo muitíssimo difícil de cultivar... Se não confiássemos que o Espírito Santo opera em nós, desistiríamos em desespero".
Através do deserto de Calari, chegavam boatos de um grande lago
e de um lugar chamado ''Fumaça Barulhenta", o que ele julgava ser uma grande cachoeira. As secas o oprimiam tanto em Colobeng que Livingstone resolveu fazer uma viagem de exploração e achar um lugar mais ideal para estabelecer a sua missão. Assim, em 1º de junho de 1849, com o chefe da tribo, seus "guerreiros", três brancos e sua família, saíram para atravessar o grande deserto de Calari. O guia do grupo, Romotobi, conhecia o segredo de subsistir no deserto, cavando com as mãos e chupando a água debaixo da areia por meio dum canudo.
Depois de viajarem muitos dias, chegaram ao rio Zouga. Ao inquirir os indígenas, estes o informaram de que o rio tinha nascente em uma terra de rios e florestas. Livingstone ficou convicto de que o interior da África não era um grande deserto como o mundo de então supunha, e o seu coração ardia com o desejo de achar uma via fluvial, para outros missionários irem para o interior do continente, com a mensagem de Cristo.

"A perspectiva", escreveu ele, "de achar um rio que dê entrada a uma vasta, populosa e desconhecida região, aumentou constantemente desde então; aumentou tanto que, quando, por fim chegamos ao grande lago, esse importante descobrimento, em si mesmo, parecia de pouca monta".
Foi em 1º de agosto de 1849 que o grupo atingiu o lago Ngami, tão grande é esse lago que, de uma margem, não se avista a margem oposta. Sofreram longos dias de cruciante sede sem obter uma gota dágua, mas venceram todas as dificuldades e descobriram esse lago enquanto outros exploradores mais bem equipados, mas menos persistentes, falharam.

As notícias do descobrimento foram comunicadas à Royal Geographical Society, o que lhe votou uma bela recompensa de vinte e cinco guinéus, "por ter descoberto uma importante terra, um importante rio e um grande lago".
O grupo teve de voltar a Colobeng. Depois de alguns meses, porém, iniciou novamente viagem para o lago Ngami. Não queria separar-se da sua família e levou-a em um carro de boi. Mas, ao alcançar o rio Zouga, os filhos foram atacados pela febre e ele teve de voltar com a família. Nasceu-lhe uma filha, que morreu logo de febre. Livingstone, contudo, ficou mais firme do que nunca, na sua resolução de achar um caminho para levar o Evangelho ao interior da África.
Depois de descansar alguns meses com a família, na casa de seu sogro, em Curumã, saíram com o propósito de achar um lugar saudável onde pudesse estabelecer uma missão mais para o interior. Foi nessa viagem, em junho de 1851, que descobriu o maior rio da África Oriental, o Zambeze, rio do qual o mundo de então nunca ouvira falar.

No seguinte trecho que Livingstone escreveu, descobre-se algo do que tinham de sofrer nessas viagens: "Um dos assistentes desperdiçou a água que levávamos no carro e, à tarde, tínhamos apenas um restinho para as crianças. Passamos a noite angustiados e na manhã seguinte, quanto menos havia de água, tanto mais aumentava a sede das crianças. O pensamento de elas perecerem diante de nossos olhos, nos perturbava. Na tarde do quinto dia, sentimos grande alívio, quando um dos homens voltou trazendo tanto desse líquido como jamais antes havíamos pensado."

Livingstone, convicto de que era a vontade de Deus que saísse para estabelecer outro centro de evangelização, e com indômita fé de que o Senhor supriria todo o necessário para cumprir a sua vontade, avançava sem vacilar.
Depois de descobrir o rio Zambeze, Livingstone veio a saber que os lugares saudáveis eram sujeitos a serem saqueados em qualquer tempo por outras tribos. Só nos lugares infestados de doença e febre é que se achavam tribos específicas.
Resolveu, portanto, enviar a esposa para descansar na Inglaterra enquanto ele continuava as suas explorações a fim de estabelecer um centro para a obra de evangelização. Via-se forçado a estabelecer tal centro, porque os boêres holandeses invadiam o território, roubando as terras e o gado dos indígenas, pondo em prática um regime da mais vil escravatura. Livingstone enviou crentes fiéis para evangelizar os povos em redor, mas os boêres acabaram com essa obra, matando muitos dos indígenas e destruindo todos os bens que o missionário possuía em Colobeng.

Livingstone levou sua família para a cidade do Cabo, de onde seus queridos embarcaram em um navio para a Inglaterra.
Foi nesse tempo, quando Deus suprira todo o necessário para a família voltar à Inglaterra, que disse: "Oh! Amor divino, eu não te amo com a força, a profundidade e o ardor que convém!"

A separação da família causou-lhe profunda mágoa, mas dirigiu o rosto heroicamente de novo para socorrer as infelizes tribos do interior da África.
Havia três motivos que o aconselhavam a fazer uma viagem de exploração: Primeiro, queria achar um lugar para residir com a família entre os "barotses" e evangelizá-los. Segundo, a comunicação entre o território dos "barotses" e a cidade do Cabo era muito demorada e difícil e queria descobrir um caminho para um porto mais próximo. Terceiro, queria fazer todo o possível para influenciar as autoridades contra o horrendo tráfico de escravos.
Foi nessa época da sua vida que Livingstone, por suas proezas, tornou-se conhecido no mundo inteiro.

No seu ardor, desejando que Deus lhe poupasse a vida e o usasse em abrir o continente para a entrada do Evangelho, orou assim: "Ó Jesus, rogo que me enchas agora com oteu amor e me aceites e me uses um pouco para a tua glória. Até agora não fiz nada para ti, mas quero fazer algo. Oh! eu te imploro que me aceites e me uses e que seja tua toda a glória". Escreveu mais ainda: "Não valeria coisa alguma o que possuo ou o que possuirei, a não ser em relação ao reino de Cristo. Se alguma coisa que tenho pode servir para o seu reino, dar-lhe-ei a Ele, a quem devo tudo neste inundo e durante a eternidade".

Livingstone atravessou, ida e volta, o continente africano, desde a foz do Zambeze a São Paulo de Luanda, façanha essa realizada pela primeira vez por um branco. Nas suas memórias que escrevia diariamente, nota-se como admirava as lindas paisagens de um continente que o mundo julgava ser um vasto deserto.
Chegou a Luanda, magro e doente. Apesar da insistência do cônsul britânico para que regressasse à Inglaterra, a fim de recuperar a saúde abalada, ele voltou novamente, por outro caminho, para levar seus fiéis companheiros até em casa, conforme lhes prometera antes de iniciarem a viagem.

Nessa viagem, Livingstone descobriu as magníficas cataratas de Vitória, nome que ele deu às grandes quedas em honra da rainha da Inglaterra. Nesse lugar, o rio Zambeze tem a largura de mais de um quilômetro; ali as águas desse grande rio se precipitam espetacularmente de uma altura de cem metros.
Levingstone continuou a pregar o Evangelho constantemente, às vezes ha auditórios de mais de mil indígenas. Antes de tudo, esforçava-se para ganhar a estima das tribos hostis, por onde passava, por sua conduta cristã, em grande contraste com a dos mercadores de escravos.
Sozinho, com os seus fiéis macololos, caiu trinta e uma vezes de febre nos matagais, durante um período de sete meses. Mas não era tanto o sofrimento físico. Suas cartas revelam a sua angústia de espírito ao ver os horrores do povo africano massacrado e arrebatado dos seus lares, conduzido como gado para ser vendido no mercado. De um lugar alto onde subiu, contou dezessete aldeias em chamas, incendiadas por esses nefandos mercadores de seres humanos. Prometera à sua esposa reunir-se com a família depois de dois anos, mas passaram-se quatro anos e meio antes que ela recebesse qualquer notícia dele!
Por fim, após uma ausência de dezessete anos da pátria, regressou à Inglaterra. Voltou à civilização e à sua família como quem volta da morte. Antes de desembarcar, soube que seu querido pai falecera. Em toda a história de Livingstone, não se conta um acontecimento mais comovente do que o seu encontro com a esposa e filhos. Na Inglaterra, foi aclamado e honrado como heroico descobridor e grande benfeitor da humanidade. Os diários publicavam os seus atos de bravura. As multidões afluíam para ouvi-lo contar a sua história. "O doutor Livingstone era muito humilde... Temia passear nas ruas, receando ser atropelado pelas massas. Certo dia, na Regent Street, em Londres, foi apertado por tão grande multidão, que só com grande dificuldade conseguiu refugiar-se num táxi. Pela mesma razão evitava ir aos cultos. Certa vez, desejoso de assistir ao culto, meu pai persuadiu-o a ocupar um assento debaixo da galeria, em um lugar não visível ao auditório. Mas foi descoberto e o povo passou por cima dos bancos para cercá-lo e apertar-lhe a mão".

Uma das muitas coisas que levou a efeito, enquanto na Inglaterra, foi a de escrever seu livro: Viagens Missionárias, obra que alcançou enorme circulação e produziu mais interesse na questão africana do que qualquer movimento anterior.
Em março de 1858, com a idade de 46 anos, Livingstone, acompanhado de sua esposa e filho mais novo, Osvaldo, embarcou novamente para a África. Deixando os dois na casa do sogro, o missionário Moffatt, Livingstone continuou as suas viagens. No ano seguinte, descobriu o lago Niassa. Recebeu, também, uma carta da esposa, da casa de seus pais em Curumã, informando-o do nascimento de mais uma filha. A menina já estava há quase um ano no mundo quando o pai soube do seu nascimento.

As explorações dos rios Zambeze, Tete e Shire e do lago Niassa, foram feitas com o propósito de saber quais os pontos mais estratégicos para a evangelização, e missionários foram enviados da Inglaterra para ocuparem esses lugares.Em 1862 a esposa reuniu-se a ele novamente, e acompanhava-o nas viagens, mas três meses depois faleceu, vítima da febre e foi enterrada em uma encosta verdejante na margem do rio Zambeze. Np seu diário, Livingstone assim escreveu: "Chorei-a porque merece as minhas lágrimas. Amei-a ao nos casarmos, e quanto mais tempo vivíamos juntos, tanto mais a amava. Que Deus tenha piedade dos filhos..."
Um dos maiores obstáculos que Livingstone enfrentou na obra missionária foi o terror dos indígenas ao verem um rosto de homem branco. Aldeias inteiras em ruínas; fugitivos escondendo-se nos campos de alto capim, sem nada terem para comer; centenas de esqueletos e cadáveres insepultos; comboios de homens e mulheres algemados aos troncos, seguros pelo pescoço, eram conduzidos aos portos - É difícil concebermos a magnitude da desolação criada por homens cruéis que participavam do tráfico de escravos.

Esses homens tentavam, também, com ódio cruel e arte diabólica, terminar com a obra de Livingstone. Finalmente conseguiram, por meio da política do seu país, induzir a Inglaterra a chamá-lo de volta à sua terra. Foi assim que Livingstone chegou de novo à sua pátria depois de uma ausência de cerca de oito anos.
Os crentes e amigos na Inglaterra, animados pela visão de Livingstone, começaram a orar e enviar-lhe dinheiro para continuar sua obra no continente negro. O nosso herói desembarcou pela terceira e última vez na África, em Zanzibar.

Na expedição que iniciou em Zanzibar, descobriu os lagos Tanganyka (1867), Moero (1867) e Bangueolo (1868). Passou cinco longos anos explorando as bacias desses lagos. A oração e a Palavra de Deus foram o seu sustento espiritual durante esses anos de provações, que sofria por parte dos negociantes de escravos.
Resolveu, então, fazer o possível para descobrir as nascentes do rio Nilo e solver um problema que durante milhares de anos havia zombado dos geógrafos. Sabia que se descobrisse as nascentes do famoso Nilo, o mundo todo lhe daria ouvidos acerca da chaga aberta da África, com o comércio de escravos. É interessante conhecer o que ele escreveu: "O mundo acha que busco fama, porém eu tenho uma regra, isto é, não leio coisa alguma sobre os elogios que me fazem". Ele sabia que, ao findar a escravatura, o continente se abriria para deixar entrar o Evangelho.
Durante os longos intervalos entre os períodos em que suas cartas eram recebidas na Inglaterra, vindas do coração da África, circularam boatos de que Livingstone morrera. Não só os homens que traficavam com escravos queriam matá-lo, mas também muitos dos próprios indígenas, por não acreditarem existir um homem branco que fosse amigo de coração. Ele mesmo contou muitos fatos relacionados com as ciladas na terra do Maniuema para o matarem. Nesse lugar, ele escreveu no seu diário: "Li toda a Bíblia quatro vezes, enquanto estive em Maniuema". Na solidão achou grande conforto nas Escrituras.

Reconhecia sempre a possibilidade de perecer nas mãos dos inimigos, mas sempre respondia à insistência dos amigos com esta pergunta: - "Não pode o amor de Cristo constranger o missionário a ir onde a traficância leva o mercador de escravos?"

Pela primeira vez, nos milhares de léguas que caminhou, os pés do pioneiro falharam. Obrigado a ficar algum tempo em uma cabana, todos os seus companheiros o abandonaram, à exceção de três que ficaram com ele.
Por fim, chegou a Ujiji, reduzido a pele e ossos, por causa da grave doença que sofrera em Maniuema. Não tinha recebido cartas havia dois anos e esperava receber também as provisões que enviara para lá. Contudo, as cartas não haviam chegado. Com o corpo enfraquecido, e destituído de roupas e alimentos, veio a saber que lhe tinham roubado tudo. Nessa situação, ele escreveu: "Na minha pobreza senti-me como o homem que, descendo de Jerusalém a Jericó, caiu nas mãos de ladrões. Não tinha esperança de que sacerdotes, levitas ou o bom samaritano viesse em meu socorro. Entretanto, quando minha alma se achava mais abatida, o bom samaritano já estava bem perto de mim!"
O "bom samaritano" era Henrique Stanley, enviado pelo New York Herald, à insistência de muitos milhares de leitores desse jornal, para saber ao certo se Livingstone ainda vivia, ou, no caso de ter morrido, para razer seu corpo.
Stanley passou o inverno com Livingstone. Mas este se recusou a ceder à insistência daquele de voltar à Inglaterra. Livingstone podia voltar e descansar entre amigos, com todo o conforto, mas preferiu ficar e realizar seu anelo de abrir o continente africano ao Evangelho.

A sua última viagem foi feita para explorar o Luapula, a fim de verificar se esse rio era a nascente do Nilo ou do Congo. Nessa região chovia incessantemente. Livingstone sofria dores atrozes; dia após dia tornava-se-lhe mais e mais difícil caminhar. Foi então carregado, pela primeira vez, pelos fiéis companheiros: Susi, Chuman e Jacó Wainwright, todos indígenas.
No seu diário, as últimas notas que escreveu dizem: "Cansadíssimo, fico... Recuperada a saúde... Estamos nas margens do Mililamo".

Chegaram à aldeia de Chitambo, em Ilala onde Susi fez uma cabana para ele. Nessa cabana, a 1º de maio de 1873, fiel Susi achou seu bondoso mestre de joelhos, ao lado da cama - morto. Orou enquanto viveu e partiu deste mundo orando!
Os dois fiéis companheiros, Susi e Chuman, enterraram o coração de Livingstone abaixo de uma árvore em Chitambo, secaram e embalsamaram o corpo, e o levaram até a costa - viagem que durou alguns meses, pelo território de várias tribos hostis. O sacrifício desses valentes filhos da África, sem terem qualquer propósito de remuneração, não será esquecido por Deus, nem pelo mundo.
O corpo, depois de chegar em Zanzibar, foi transportado para a Inglaterra, onde foi sepultado na Abadia de Westminster, entre os monumentos dos reis e heróis daquela nação. Não havia dúvida quanto ao corpo de Livingstone; era fácil de identificar: o osso de cima do braço esquerdo tinha distintamente as marcas dos dentes do leão que o atacara.

Entre os que assistiram ao enterro, estavam seus filhos e o velho missionário Roberto Moffatt, pai da sua querida esposa. A multidão consistia de povo humilde, que o amava e dos grandes, que o honravam e respeitavam.Conta-se que havia, entre as multidões que permaneciam nas calçadas das ruas de Londres no dia em que o cortejo, com o corpo de Davi Livingstone, passava, um velho chorando amargamente. Ao lhe perguntarem por que chorava, respondeu: - "É porque Davizinho e eu nascemos na mesma aldeia, cursamos o mesmo colégio e assistimos a mesma Escola Dominical, trabalhávamos na mesma máquina de fiar. Mas Davizinho foi por aquele caminho, eu por este.  Agora ele é honrado pela nação, enquanto eu sou desprezado, desconhecido e desonrado. O único futuro para mim é o enterro de beberrão".

Não é somente o ambiente, mas a escolha na mocidade é que determina o destino, não só aqui no mundo, mas para toda a eternidade.
Quando Livingstone falou aos alunos da Universidade de Cambridge, em 1857, disse: "Por minha parte, nunca cesso de me regozijar por Deus ter-me apontado para tal ofício. O povo fala do sacrifício de eu passar tão grande parte da vida na África. - Será sacrifício pagar uma pequena parte da dívida, dessa dívida que nunca poderemos liquidar, do que devemos ao nosso Deus? É sacrifício aquilo que traz a bendita recompensa de saúde, o conhecimento de praticar o bem, a paz de espírito e a viva esperança de um glorioso destino? Longe esteja tal idéia! Digo com ênfase: Não é sacrifício... Nunca fiz sacrifício. Não devemos falar dos nossos sacrifícios, ao nos lembrarmos do grande sacrifício que fez Aquele que desceu do trono de seu Pai, nas alturas, para se entregar por nós".

Se Livingstone não tivesse adoecido, teria descoberto as nascentes do Nilo. Durante os trinta anos que passou na África, nunca se esqueceu do seu alvo principal que era levar Cristo aos povos desse escuro continente. Todas as viagens que realizou foram viagens missionárias.
Gravadas no seu túmulo podem ser lidas estas palavras: "O coração de Livingstone jaz na África, seu corpo descansa na Inglaterra, mas sua influência continua".
Gravados para sempre na história da Igreja de Cristo estão os grandes êxitos na África durante um período demais de 75 anos depois de sua morte, êxitos inspirados, em grande parte, pelas orações e persistência desse eminente servo de Deus, que foi fiel até a morte.


 Retirado do livro:  Heróis da Fé
Vinte homens extraordinários que incendiaram o mundo.
Orlando S. Boyer.