Classe Jovens – L 05 - Vivendo uma Vida Santa

Retirado do livro : A Igreja do Arrebatamento
O Padrão dos Tessalonicenses para estes Últimos Dias
Thiago Brazil.

O capítulo 4 de 1 Tessalonicenses, vemos o início do esforço de  Paulo para responder algumas demandas doutrinárias e procedimentais daquela comunidade. Neste momento específico   da carta, temos uma profunda reflexão sobre a necessidade de uma vida santa. O contexto  politeísta  do  mundo  antigo  no  qual  aquela  igreja estabeleceu-se exigia muito mais do que uma simples “troca” de deuses, ou seja, a conversão ao cristianismo implicava uma série de mudanças comportamentais na vida pública e privada.
Ser cristão em Tessalônica acarretava não apenas mudanças litúrgicas, mas também o abandono de todo um repertório sociocultural que tinha a religiosidade como pano de fundo, e, nesse caso, com grande destaque, o orfismo — principal religião mistérica do mundo helênico.
Reflitamos, então, sobre as orientações acerca da vida privada — centradas, aqui, na questão da sexualidade —, assim como naquelas destinadas à vida pública — pautadas na exigência de uma vida proba, desvencilhada das corrupções e abusos aos mais fracos; práticas tão comuns naquele contexto histórico.

O Cristão e a Cultura
Existe um modelo de procedimento social a ser adotado por um cristão? O modelo de vida proposto por Paulo aos tessalonicenses para uma comunidade há 2 mil anos ainda tem caráter aplicável na sociedade atual? Ao discutirmos questões relativas à vida em sociedade dos cristãos, devemos pautar-nos em regras ou princípios, atitudes ou conceitos?
Ora, as respostas a essas questões envolvem uma série de comprometimentos conceituais, os quais, por se organizarem como uma cadeia argumentativa, não podem ser assumidos sem levar em consideração aqueles que estão conectados a eles.
Talvez, a questão central em toda essa discussão seja compreender a relação entre cristianismo e cultura, mais especificamente sobre a necessidade de apresentação dos princípios norteadores da cultura cristã e a aplicabilidade dos mesmos à realidade comunitária de cada igreja local.
Se assumirmos o caráter estrutural dessa questão, a necessidade de resposta a algumas das seguintes questões impõe-se: o que é cultura? Existe uma cultura  cristã  ou  apenas  pressupostos  cristãos  que,  aplicados  a   qualquer cultura, ressignificam as práticas culturais vigentes de qualquer sociedade? Diante do multiculturalismo contemporâneo, a defesa de pressupostos supraculturais ainda faz sentido?
Partamos da definição de cultura como tudo aquilo que é realizado pelo homem e não está condicionado pelo biológico. De tal concepção, deriva-se uma inevitável conclusão: apenas o homem produz cultura, uma vez que todos os demais seres vivos estão subordinados as suas determinações genético-biológicas, restritos, assim, aos seus instintos animalescos, a uma determinada região geográfica e modo de vida, por exemplo; o homem, por sua vez, é criador de seus costumes, produtor de seu modo de vida e colonizador de todo o planeta.
Para que se esclareça mais ainda tal definição de cultura, lembremo-nos de que o homem é o único ser capaz de transformar a natureza, enquanto os demais seres apenas se apropriam da mesma do modo como esta lhes é apresentada. Criamos objetos para superar nossas limitações biológicas. Com o avanço da tecnologia, somos capazes de, inclusive, por meio de substâncias que produzimos ou transformações que realizamos em nós mesmos, alterar condicionamentos naturais — pensemos em cirurgias para implantes de córneas, utilização de próteses para substituição ou melhoramento de membros ou órgãos, etc.
Sobre essa concepção de cultura como elemento constitutivo e construtivo do homem, afirma-nos Laraia:
O homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele é um herdeiro  de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquiridos pelas numerosas gerações que o antecederam. A manipulação adequada     e criativa desse patrimônio cultural permite as inovações e as invenções. Estas não são, pois, o produto da ação isolada de um gênio, mas o resultado do esforço de    toda uma comunidade. (LARAIA, 2008,  p.48)

Pode-se, no entanto, restringir o conceito de cultura ao conjunto de práticas significantes produzidas por uma determinada coletividade. De acordo com essa definição stricto sensu de cultura, podemos entender que cada comunidade, em períodos de tempo específicos, produziu uma série de conhecimentos, artes, costumes e rituais — em suma, cultura — que só pode ser entendido a partir de uma vivência interna à própria comunidade. Desse modo, um simples observador externo será incapaz de compreender determinadas práticas culturais; no máximo, será capaz de avaliá-las somente a partir de seu prisma cultural particular, deformando, assim, o significado de certo conjunto de ações próprio de uma sociedade.
A pergunta que persiste é: como definir uma cultura cristã? Falando em termos sociológicos, seria mais exato falar sobre a cultura da comunidade cristã em Tessalônica. Ou seja, as práticas culturais da Igreja em Tessalônica provavelmente serão distintas daquelas vivenciadas na comunidade cristã em Corinto, por exemplo, apesar de ambas serem coletividades que se guiam religiosamente de acordo com a orientação cristã.
É por isso que Paulo não criticará, especificamente, a alimentação onívora ou vegetariana dos grupos em conflito na Igreja de Roma, mas, antes,  exortará que, acima das questões gastronômicas — e é simplesmente neste nível que elas são definidas pelo apóstolo —, estejam o amor ao próximo e a misericórdia para com os mais frágeis na fé. A discussão que se concentra na questão da liberdade e tolerância materializa-se por meio de uma celeuma cultural (Rm 14).9
Acerca de uma abordagem bíblico-teológica sobre a cultura, defende Schwambach:
Se lermos o AT e o NT, vamos ver que a realidade do pecado corrompeu os seres humanos e tudo o que eles pensam, falam, fazem, constroem, inventam etc. Isso significa que toda a produção cultural da humanidade está afetada pela realidade do mal, da queda, do pecado. O exercício de qualquer profissão, o ensino em todos os níveis, toda a ciência, toda a tecnologia, toda política, toda a arte, mas também     todos os tipos de pensamento humano — toda a elaboração filosófica, ideológica, cultural e até mesmo religiosa... Nenhuma dessas realidades ficou sem ser atingida pela trágica realidade da queda. (SCHWAMBACH, 2011,  p.32,33)

Segundo esses critérios, parece ser mais coerente falar de princípios supraculturais com relação ao cristianismo. A defesa daquilo que seria o conceito de “cultura cristã” — abstraída de toda materialidade e intersubjetividade social — implicaria na aceitação de que tal produção cultural é fruto da ação humana que, ao longo dos séculos, por tradição, foi transmitida às gerações seguintes. Sem dúvida alguma, o cristianismo e seus pressupostos culturais são muito mais que uma elaboração humana, limitada ao gênio de uma determinada comunidade e seus membros.
Outro argumento que nos auxiliará a rejeitar a ideia de uma “cultura cristã” entendida como elemento produzido pontualmente em certo ponto da história é o de que a produção cultural é algo extremamente dinâmico, movido pelas transformações políticas, econômicas e sociais, atualizando-se continuamente conforme as interações internas e externas de cada povo. Ora, se as verdades cristãs que seguimos são eternas, logo estas não podem ser um produto exclusivo da dinâmica social de uma comunidade.
Infelizmente, o que se percebe é que, ao longo dos séculos, práticas  culturais pertencentes a comunidades específicas foram impostas a outras coletividades humanas sob o pretexto de serem parte de um conceito abstrato de “cultura cristã”. Esse tipo de processo de violência simbólica é que se denomina de etnocentrismo — a defesa da imposição de aspectos culturais de um povo sobre outro de modo coercitivo e cruel.
É necessário, entretanto, reconhecermos que algumas práticas culturais adotadas por certos povos colidem frontalmente com os princípios cristãos, de tal forma que o papel da evangelização cristã nessas comunidades será o de promover não apenas redenção individual, mas também a    transformação coletiva; não apenas salvação pessoal,mas também a restauração sociocultural.
Sobre essa delicada questão, os elaboradores do relatório sobre a questão da cultura do movimento de Lausanne afirmam:

A conversão não deve “desculturalizar” o convertido. Na verdade,  como  temos visto, sua lealdade agora pertence ao Senhor Jesus, e todas as coisas do seu contexto cultural devem submeter-se ao escrutínio do Senhor. Isso se aplica a toda a cultura, não somente às culturas hindu, budista, islâmica ou animista, mas também à cultura cada vez mais materialista do Ocidente. A crítica pode produzir uma colisão,  à medida que elementos da cultura forem submetidos ao juízo de Cristo e tiverem de  ser rejeitados. Nesse ponto, como reação, o convertido pode tentar adotar a cultura   do evangelista em lugar da sua. Deve-se resistir firme, mas carinhosamente a essa tentativa. Dever-se-ia estimular o convertido para que visse suas relações com o passado como uma combinação de ruptura e continuidade. Por mais que os novos convertidos sintam que precisam renunciar por amor de Cristo, ainda são as mesmas pessoas, com a mesma herança e a mesma família. “A conversão não desfaz; ela refaz.” É sempre trágico, embora seja às vezes inevitável, quando a conversão da pessoa a Cristo é interpretada por outros como traição às suas origens culturais. Se possível, a despeito do conflito com sua cultura, os novos convertidos deveriam procurar identificar-se com as alegrias, esperanças, dores e lutas de sua cultura própria. (LUZBETAK, 1985, p.34)

Percebe-se, assim, que a busca incessante de cada comunidade cristã local deve ser alinhar suas tradições e costumes ao crivo dos pressupostos da cruz, os quais são eternos, supraculturais e constitutivamente promotores da bondade e da justiça. Somente uma abordagem nesse nível poderá ajudar-nos a fugir do falso dilema do relativismo cultural de um mundo multiculturalista. As múltiplas culturas podem e devem coexistir pacificamente entre si. O que é inaceitável é o fato de que atos de violência — seja esta simbólica ou física — sejam defendidos como tradições culturais respeitáveis. Tudo aquilo que  subjuga  o  outro  sem  conceder-lhe  qualquer  oportunidade  de escolha diferente, expropriando-lhe a humanidade e condicionando sua existência à reificação deve ser totalmente rejeitado e combatido.
Violência, seja ela de qualquer tipo, não é cultura!
O cristianismo não pode ser utilizado como instrumento de justificação de qualquer tipo de preconceito, discriminação ou violação pessoal. A tônica do discurso de Cristo é o amor e a liberdade. A denúncia que se deve fazer cotidianamente ao pecado deve ter a transgressão como foco exclusivo, possibilitando, assim, a restauração pessoal, a qual inicialmente passa por um processo de reconhecimento do outro como pessoa, nunca como pecado em si; como filho de Deus, e não como personificação da perversão; como objeto do amor de Cristo, jamais a uma redução do ser ao erro que cometeu.
Desse modo, no que concerne à questão do cristianismo e da cultura, cabe- nos o exercício diário e constante de diferenciar costumes e tradições do judaísmo e das comunidades cristãs primitivas dos pressupostos que devem fundamentar nossas práticas culturais.
Paulo, os Tessalonicenses e o Padrão de Vida Cristão  Uma vez tendo sido realizado tal esclarecimento sobre o papel da cultura e sua relação com o cristianismo, ficam mais claras as orientações paulinas à comunidade tessalonicense. A preocupação de Paulo repousava na necessidade de esclarecer àqueles novos cristãos que alguns elementos de suas práticas culturais não eram próprios de execução para alguém que experimentou um novo nascimento, uma vez que tais atitudes estavam inteiramente ligadas a práticas idolátricas.
Um dos possíveis exemplos a serem apresentados sobre essa relação das práticas socialmente regulares entre os tessalonicenses, porém reprováveis segundo o padrão do cristianismo, é àquele que remete ao uso do vinho nas celebrações antigas. Segundo Almeida (2014, p.27): “As orgias em torno do vinho na Ásia Menor e na Palestina — os tabernáculos, solenidades dos cananeus,  eram,  originalmente,  orgias  ao  estilo  dos  bacanais       foram marcadas por estados idênticos de êxtase aos das orgias em torno da cerveja na Trácia e na Frígia.”
Rituais  celebrativos  do  culto  dionisíaco10     os  quais  possuíam       um calendário anual de, pelo menos, três grandes festejos públicos anualmente —         estavam intrinsecamente associados a práticas sexuais.
Cultos centrados no conceito de fertilidade da terra que estavam  interligados ao uso do corpo como oferenda às divindades, por meio de danças, orgias e possessões, era algo muito comum naquele contexto histórico.
Dessa maneira, o que temos na fala de Paulo no início do capítulo 4 de 1 Tessalonicenses é a determinação de um sintoma que caracterizava a sociedade em Tessalônica: a violência. Em virtude da forte tradição do dionisismo que se desenvolveu naquela comunidade, os indivíduos não conseguiam perceber que a objetivação de seres humanos — especialmente de mulheres, com relação à sexualidade — é um dos mais degradantes atos  de subjugação. Por isso, o que Paulo faz nesse momento de seu ministério é denunciar elementos de injustiça e dominação que operavam em Tessalônica sob o pretexto de piedade religiosa.
Sobre os cultos orgiásticos a Dioniso, Frontisi-Ducroux afirma:
Que Dioniso seja um deus complexo é uma das afirmações unanimemente reconhecida pelos estudiosos da religião. Complexo pela variedade  de  representações e epifanias, oscilante entre antropomorfismo completo ou parcial (face, falo), teriomorfismo (touro, leão, serpente, bode), mas,  sobretudo,  por  motivos dos diversos componentes do seu culto; vinho e embriaguez; transes e possessões femininas; festivais dramáticos; procissões fálicas; incursões no mundo dos mortos; iniciações nos mistérios. (FRONTISI-DUCROUX, 1997, p.  275)

Como se pode perceber, a exortação paulina à santidade na sua epístola aos tessalonicenses,    quando    devidamente    contextualizada,    ganha     outras conotações que vão além de um mero ascetismo cristão. As preocupações de Paulo com aquela jovem comunidade estavam diretamente ligadas à urgente necessidade de cada indivíduo perceber a completa incompatibilidade que havia entre o culto a Cristo Jesus e às celebrações, por exemplo, a Dioniso- Osíris.
A problemática da prostituição — para além de todo o debate estabelecido por Paulo em outros textos — está relacionada em Tessalônica à questão das possessões dionisíacas durante os bacanais.11 A devassidão sexual, sendo prática condenável em si mesma segundo a ótica cristã, estava diretamente associada às potestades que envolviam os cultos dionisíacos. Alertar a cada um possuir seu vaso em santificação e honra (1 Ts 4.4) envolve diretamente a necessidade de manter o corpo em separação exclusiva para Deus.
Perceba, no entanto, que a dedicação religiosa do corpo a Jesus Cristo no culto cristão significa algo completamente diferente daquilo que a possessão dionisíaca produz. Enquanto Dioniso bestializa seus adoradores — conduzindo-os ao completo descontrole, aos seus instintos mais baixos e à perda da consciência de si —, a consagração do corpo ao Senhor  Deus implica domínio próprio, adoração consciente e profundo   autoconhecimento —     produzido pelo entendimento da fragilidade constitutiva de tudo aquilo que é humano.
A santidade de Deus em nossas vidas conduz-nos, muitas vezes, a um padrão de sociabilidade que, de várias maneiras, transcende as convenções sociais convenientemente aceitas, porém moral e espiritualmente reprováveis. Assumir-se cristão em Tessalônica implicava em enfrentar a fúria dos seguidores de César, Baco, Osíris e de tantos outros seres e deuses que dominavam a cena política e religiosa daquela cidade.
É para tal nível de comprometimento que Cristo convida-nos hoje. Numa ambiência tão politeísta quanto aquela — tendo o dinheiro, a luxúria, o corpo e a tecnologia como as principais divindades desse tempo —, declarar-se contrário a determinadas práticas publicamente aceitas e estimuladas era o mesmo que obter ojeriza de grande parte da sociedade. Somos vocacionados para, por meio de um relacionamento verdadeiro com Cristo, apresentarmos outro modelo de comportamento e atitude diante de nossa sociedade.
A finalização da reflexão de Paulo sobre a questão da santificação dos cristãos em Tessalônica desemboca na necessidade de estabelecimento de um padrão relacional que espelhe a salvação que os envolveu. Segundo Paulo, não faz sentido assumir uma fé em Cristo, mas manter os negócios pessoais sob o domínio de Mamon (ver 1 Ts 4.6 – NVI). Ao homem nascido de novo é-lhe exigido não apenas o abandono dos antigos ídolos religiosos, mas também das pervertidas práticas econômico-sociais.
O esforço por uma vida em santidade tem um componente triplo: individualmente, passa pelo respeito à dignidade do próprio corpo e da integridade da vida de cada sujeito; em segundo lugar, em sua correspondente comunitária, a santidade exige de cada um de nós o reconhecimento do outro, ou seja, a capacidade de superar uma mera percepção coisificante dos demais indivíduos ao nosso redor, para, assim, a designação do respeito próprio a cada ser humano; e, por fim, no que se remete à espiritualidade, a santidade é uma condição sine qua non para nosso relacionamento com o Senhor.
Conclusão
Os desafios que os tessalonicenses enfrentavam tornam-se cada vez mais evidentes a partir do momento em que nos debruçamos com mais cuidado — e simultaneamente — sobre o texto sagrado e sobre o contexto histórico que envolvia aquela comunidade.
Com relação a nossa espiritualidade hoje, nada é diferente. Somente nos concentrando em orientar nossas vidas conforme os padrões da Palavra seremos capazes de restabelecer a glória de Deus sobre nossa sociedade, sobre nossa geração. Não somos mais escravos; antes, nossa vocação é para a liberdade, que se manifesta para nós em Cristo Jesus — dentre tantas outras maneiras possíveis — como santidade, isto é, como um padrão de vida que se inspira na graça e no amor de Deus.


CLASSE ADULTO – L 05- Ética Cristã, Pena de Morte e Eutanásia

RETIRADO DO LIVRO - VALORES CRISTÃOS -

Enfrentando as questões morais do nosso tempo.
Douglas Baptista.

 A vida humana é o ponto de partida para todos os demais direitos da pessoa. Se a vida humana não estiver assegurada, torna-se impossível à realização dos outros valores. No entanto, em contradição a esse pressuposto, temas relacionados à punição com pena de morte e o direito à eutanásia são frequentemente discutidos e aceitos na sociedade pós-moderna. Neste capítulo, estudaremos a presença da pena capital em ambos os testamentos bíblicos, a prática da eutanásia e suas implicações éticas e ainda a vida humana como sendo originária e pertencente a Deus.
A prática da pena de morte, também chamada pena capital, é um instrumento jurídico pelo qual um ser humano é morto como punição por crime cometido. No Brasil, após a Proclamação da República, em 15 de novembro 1889, esse dispositivo foi proibido em caso de crimes civis e retirado do nosso Código Penal. Porém, o nosso atual ordenamento jurídico ainda dispõe da pena capital, que pode ser aplicada em casos de crimes cometidos em tempos de guerra (Art. 5º, XLVII, a, CF 1988). Na maior parte dos países, a pena capital também já foi abolida ou não é mais praticada. Quanto à eutanásia e seus desdobramentos, estudaremos na sequência deste capítulo.
I.   A PENA DE MORTE NAS ESCRITURAS
É incontestável a presença da pena de morte nas Escrituras Sagradas. O Antigo Testamento prescreve a pena capital e o Novo Testamento  reconhece sua existência, mas não normatiza o assunto. A pena de morte tem sido um dos mais controvertidos temas éticos da atualidade. A maior dificuldade está em conciliar o ordenamento jurídico da pena capital com o sexto mandamento prescrito no Antigo Testamento “Não matarás” (Êx 20.13)
—, que pressupõe a preservação da vida e a proibição do assassinato premeditado.
A outra problematização do instrumento legal da pena de morte é a sua incompatibilidade com o espírito do cristianismo, que pressupõe o perdão, o amor, a compaixão e a misericórdia; no entanto, a pena capital está presente nos escritos neotestamentários. O teólogo pentecostal Esequias Soares pondera que a presença desse instrumento de punição na Bíblia Sagrada possui sentidos diferentes em cada um dos testamentos: “a diferença do Antigo Testamento é que ali a lei prescreve como parte de um sistema legal, e aqui não é mandamento, conselho ou incentivo. O Novo Testamento apenas reconhece que a pena capital existe” (SOARES, 2015, p. 97).
1. No Antigo Testamento
Uma questão ética acerca da “pena retributiva” tem sido amplamente discutida a partir da advertência divina dada no Éden. Depois de criar o homem, o Senhor colocou Adão no jardim para lavrá-lo e guardá-lo (Gn 2.15). Para a subsistência, Deus o autorizou comer livremente de toda a árvore do jardim (Gn. 2.16). No entanto, o homem foi advertido acerca de um perigo real: “Mas da árvore da ciência do bem e do mal, dela não comerás; porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás” (Gn 2.17). Argumenta-se que nessas palavras divinas está presente a pena retributiva, o que significa que “a pessoa é moralmente responsável pelos seus atos e o delinquente merece castigo adequado” (HOLMES, 2013, p. 111). No caso específico do Éden, Deus alertou que a desobediência seria punida com a  pena capital. Quanto a isso, os eruditos cristãos são concordes em afirmar que a punição aqui se refere tanto com a morte física quanto com a morte espiritual, ambas como efeito e resultado do pecado. Não obstante, o próprio Deus providenciou um meio de aniquilar a pena capital, ao enviar seu Filho para morrer no lugar do homem a fim de salvar a humanidade (Rm 6.23, 1 Co 15.26,54, Hb 2.14).
O homicídio praticado por Caim
O primeiro registro de homicídio registrado nas Escrituras relata o esfacelamento da primeira família da terra. Um problema de relacionamento motivado pelo ciúme e pela inveja resultou no primeiro crime de fratricídio, ou seja, a morte de um irmão por outro irmão. Deus responsabilizou Caim pela bárbara e covarde decisão de assassinar seu irmão Abel (Gn 4.6-10). No diálogo entre Deus e o homicida, arrependido pelo crime cometido, Caim suplicou perdão ao dizer: “É maior a minha maldade que a que possa ser perdoada” (Gn 4.13). Por conseguinte, apavorado com as consequências de seu ato, o assassino conscientizou-se da desgraça que trouxera sobre a sua vida: “Eis que hoje me lanças da face da terra, e da tua face me esconderei; e serei fugitivo e errante na terra, e será que todo aquele que me achar me matará” (Gn 4.14).
As palavras de Caim refletem a ideia da lei retributiva: “quem me encontrar, me matará”. Em vista dessa convicção o assassino arrependido é surpreendido pela resposta divina: “qualquer que matar a Caim sete vezes  será castigado. E pôs o Senhor um sinal em Caim, para que o não ferisse qualquer que o achasse” (Gn 4.15). No primeiro homicídio cometido pelo homem, Deus reclama para si todo o direito de vingança, por ser o dono da vida (Gn 4.10) e ao mesmo tempo proíbe que se tome vingança de Caim (Gn 4.15). Deus demonstra compaixão e misericórdia diante do pavor e desespero estampado nas palavras do homicida. Deus não permitiria que ele  fosse morto, mas manteria o castigo da expulsão e da vida errante. Caim não recebeu a pena capital, mas uma sentença equivalente a pena perpétua. Os juízos divinos não são apenas retributivos, mas também são pedagógicos, pois têm o propósito de regenerar o ofensor (Hb 12.6,11).
Lameque e o aumento da criminalidade
Na continuidade do capítulo 4 do livro de Gênesis, o autor sagrado descreve a linhagem de Caim (Gn 4.17-22). O texto relata que Lameque, descendente de Caim, era de temperamento violento e comportava-se  de modo vingativo e desequilibrado. Lameque requereu uma vida por uma ferida que lhe fizeram e outra por uma pisadura que sofrera. Ele tirou a vida de um homem e de um menino por motivo torpe e totalmente fútil. Em termos jurídicos, de nosso ordenamento jurídico atual, seu crime é tipificado como homicídio duplamente qualificado (Art. 121, §2º, CP). A narrativa bíblica também evidencia a insensibilidade de Lameque, sua falta de  arrependimento, arrogância e jactância. Ele se gaba de seus atos criminosos para as suas mulheres (Gn 4.23,24). Diante desse terrível discurso, percebe-se que após a queda e o consequente primeiro homicídio, o ódio e a vingança tomaram proporções assustadoras (Caim é vingado sete vezes, Lameque setenta vezes sete).
Após a narrativa desses fatos seguida pela genealogia de Sete (Gn 5.1-32), as Escrituras registram no capítulo 6 do Gênesis a decadência e a depravação da espécie humana: “viu o Senhor que a maldade do homem se multiplicara sobre a terra e que toda imaginação dos pensamentos de seu coração era só má continuamente” (Gn 6.5). O registro bíblico relata a multiplicação da violência, a prática da injustiça, o domínio da vingança, a deterioração da sociedade e o consequente aumento da criminalidade. Ao ver a conduta humana corrompida (Gn 6.12), Deus se arrepende de ter criado o homem e decide enviar o dilúvio como castigo à humanidade (Gn 6.13,17). Ao salvar Noé e sua família (Gn 6.8-10;16) Deus estabelece uma nova dispensação para com a geração pós-diluviana:
Dentro deste contexto, a necessidade de equilíbrio é declarada por Deus  por meio do “olho por olho e dente por dente”, a saber, uma proporcionalidade entre o mal causado e a resposta a este mal. Assim, a Lei de Talião é dada para regular as relações sociais desequilibradas em diversos âmbitos, tais como crimes e acidentes contra a pessoa, a comunidade ou mesmo a propriedade. Caso não houvesse lei reguladora, estes processos acabariam em ciclos criminosos de vingança e opressão dos socialmente mais fracos, com respostas desproporcionais e injustas. (MEISTER, 2007, p. 61)

Na tentativa de coibir o desenfreado crescimento da criminalidade e do desproporcional comportamento vingativo, a lei retributiva se apresenta para estabelecer limites e fixar normas a serem adotadas como um princípio regulador para a sociedade. Desse modo, a pena proporcional ao crime será estabelecida a fim de corrigir a postura de vingança violenta inaugurada por Lameque e inserida na cultura daquela época. Como poderemos perceber nos pontos subsequentes, a lei retributiva será exposta e claramente introduzida por Deus, registrada no Pentateuco, por meio dos pactos estabelecidos com o patriarca Noé e o legislador Moisés.


O pacto noético e a lei mosaica
1. No pacto com Noé (após o dilúvio), a pena de morte aparece como punição retribuitiva (Gn 9.6). Na Lei de Moisés (após a saída do Egito), o mesmo conceito é mantido (Êx 21.23-25). Esse modelo de punição também é conhecido como “lei de talião”. A expressão vem do latim Lex Talionis (lex = “lei” e talis = “tal, de tal tipo”), e consiste na justa reciprocidade do crime e da pena. O Código de Hamurabi (1750-1730 a.C.), que trata sobre delitos e penas, traz um conceito similar ao pacto noético e à lei mosaica.
2. Convém salientar que a lei retributiva não se referia unicamente à pena capital. A essência da lei está na “retribuição” proporcional ao dano causado. Na lei mosaica, as punições com a pena capital eram executadas por meio do apedrejamento, da espada e por meio da fogueira. Eram condenados à morte por apedrejamento os culpados dos seguintes delitos: infanticídio (Lv 20.2-5), adivinhação (Lv 20.27), blasfêmia (Lv  24.15,16), profanação do sábado (Êx 31.14; 35.2), falsa profecia (Dt 13.1-10), a falsa adoração (Dt 17.2-7), filho incorrigível (Dt 21.18-21) e o adultério (Dt 22.22-24). Eram punidos à espada os apóstatas (Êx 32.27), os assassinos (Nm 35.19-21) e os idólatras (Dt 13.13-15).
3. Era queimado na fogueira quem praticasse o coito com a esposa e a sogra (Lv 20.14) e também a filha de sacerdote que praticasse a prostituição (Lv 21.9). Outras punições fora da pena capital também eram executadas: a mutilação (Êx 21.24,25; Dt 25.12), açoites (Dt 22.18; 25.1- 3), multas (Êx 22.1-4; Dt 22.18,19), prisão (Jr 37.15,16), escravidão (Êx 21.2; 2 Rs 4.1), além de outros métodos punitivos. Apesar de prevista, a pena capital não era aplicada de modo generalizado. No crime de assassinato, a pena era aplicada apenas no caso de homicídio premeditado (Êx 21.12). Se o homicídio cometido fosse considerado um acidente ou em defesa pessoal, o homicida involuntário poderia escapar da pena escondendo-se em uma das cidades de refúgio (Êx 21.12,13; Nm 35.22- 25). Era uma espécie de condenação perpétua; o culpado deveria permanecer na cidade de refúgio até a morte do sumo sacerdote (Nm 35.25).
4. Quanto à discutida contradição entre o sexto mandamento e a pena capital, a explicação pode ser encontrada no significado do verbo hebraico. A prescrição do Decálogo usa o verbo  rãtsah na expressão “Não    Matarás”    (Êx    20.13),    o    que    significa    literalmente “não assassinarás”, isto é, a proibição do homicídio doloso ou qualificado. Então, ao cidadão era proibido tirar a vida de outro, e, quando alguém o fazia, a lei exigia que o Estado fizesse justiça. Para o devido processo legal, ao menos duas testemunhas eram requeridas (Dt 17.6). Assim, a morte do homicida com autorização legal era vista como justiça contra a impunidade, e não como uma mera vingança.
A pena capital e o perdão divino
1.   Não obstante a severidade dessas punições, havia exceções na aplicação da lei, e até nos casos em que o crime tinha sido premeditado. Quando Davi adulterou e engravidou Bate-Seba, por exemplo, o rei deliberadamente planejou a morte de Urias com a finalidade de ocultar o seu pecado (2 Sm 11.3,4,15). Nesse episódio, Davi cometeu dois crimes dignos de morte: o adultério, cuja pena capital deveria ser executada com apedrejamento, e o assassinato, cuja punição requeria a pena de morte pela espada.
2.    No entanto, Deus não permitiu que a pena fosse aplicada ao monarca: “Então, disse Davi a Natã: Pequei contra o Senhor. E disse Natã a Davi: Também o Senhor traspassou [perdoou] o teu pecado; não morrerás” (2 Sm 12.13). Nesse caso, Deus tratou pessoalmente do pecado do Rei com uma dolorosa sentença: a espada nunca se afastaria de sua família (2 Sm 12.10), as mulheres da família de Davi seriam violadas (2 Sm 12.11), as desgraças da família real seriam do conhecimento de todos (2 Sm 12.12) e, por fim, o menino nascido do caso de adultério iria morrer (2 Sm 12.14). A essência da lei retributiva estava presente na sentença, mas a pena capital não foi aplicada ao transgressor. O perdão e os propósitos divinos prevaleceram sobre a lei.
2. No Novo Testamento

No célebre ensino de Cristo conhecido como “Sermão da Monte”, registrado no Evangelho de Mateus, aparentemente a aplicação da pena capital foi encerrada ou recebeu nova interpretação nas repetidas declarações de Jesus: “Ouvistes o que foi dito [...] eu, porém, vos digo [...]”. Jesus usou essa expressão seis vezes no sermão (Mt 5.21,22,27,28,32,38,39,43,44). Nos dois primeiros casos listados por Jesus, a lei exigia que fosse aplicada a pena capital ao transgressor.
O Sermão do Monte e o Assassinato
No primeiro enunciado (Mt 5.21,22,25), Cristo referiu-se ao 6º mandamento preconizado no Decálogo: “Não matarás!” (Êx 20.13), cuja infração era punida severamente com a pena de morte por meio da espada. É inegável que Jesus amplia a interpretação vigente ao colocar o crime de assassinato no mesmo patamar do rancor e do ódio praticado contra o próximo. Uma parcela dos intérpretes dos Evangelhos afirma que Cristo considera a prática da ira e da vingança como pecado tão grave quanto o assassinato: “Não te vingarás, nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor” (Lv 19.18). Nota-se ainda que Jesus menciona dois tribunais de julgamento — “réu de juízo” e “réu do Sinédrio” —, e formaliza dois tipos de punição — “fogo do inferno” e “aprisionamento” (Mt 5.22,25). Alguns eruditos enxergam aqui a abolição da pena capital; outros intérpretes, porém, advertem que Cristo apenas acrescentou a pena de prisão em caso de calúnia e difamação. Apesar da controvérsia, está presente no ensino de Jesus a essência do cristianismo: amor, perdão e conciliação em lugar de ódio, rancor e desejo de vingança.
O Sermão do Monte e o Adultério
No segundo enunciado (Mt 5.27-30), Cristo referiu-se ao 7º mandamento preconizado no Decálogo: “Não adulterarás” (Êx 20.14). Essa infração também era severamente punida com a pena de morte, sendo o apedrejamento o método utilizado.
Neste caso da instrução acerca da imoralidade, Cristo corrige o falso ensino de que o adultério é caracterizado somente por meio da conjunção carnal. Jesus ensina que inclusive o olhar lascivo é uma forma de adultério. Para os padrões morais do Messias, o pecado não está apenas no “ato”, mas também na “intenção”. A interpretação dada por Jesus demonstra que ambas as condutas — adultério e cobiça — são desaprovadas por Deus: “Não cobiçarás a casa do teu próximo; não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma do teu próximo” (Êx 20.17). Na sequência do sermão, Cristo advertiu que era melhor arrancar um olho e perder uma das mãos, e assim entrar no céu (caolho e aleijado) do que ter todos os membros do corpo lançados no inferno (Mt 5.29,30). Essa passagem é carregada de simbolismos:

Jesus não está ensinando uma doutrina masoquista de automutilação com objetivos espirituais, e tampouco está sugerindo que o caminho para resolver o problema dos maus desejos é infligir cirurgia física radical. A figura de linguagem de Cristo enfatiza a importância crucial de tomarmos quaisquer medidas que forem necessárias a fim de controlarmos nossas paixões naturais, que tendem a explodir se não houver governo. (MOUNCE, 1996, p. 57)

Percebe-se na leitura do ensino de Cristo que o pecado da imoralidade é ampliado e assim a interpretação da lei toma uma nova e maior dimensão. E como prevenção contra esse pecado o sermão nos indica o caminho da “mortificação” da carne. Paulo utiliza esse ensino de Cristo quando escreve suas epístolas orientando os cristãos a mortificarem os desejos da carne (Rm 8.13; Gl 2.20; Cl 3.5). Também fica evidente no texto a inexistência da pena capital para o adultério. A única referência de condenação é a repetição,   por duas vezes, da sentença que o corpo do adúltero (a) será “lançado no inferno” (Mt 5.29,30). Não obstante, na opinião de alguns intérpretes, não é possível afirmar, baseado neste texto, que Cristo tenha revogado a pena de morte. Contudo, o claro ensino de Jesus é o de “mortificar” os desejos, e assim  evitar o inferno.
A pena capital nos escritos paulinos
Em Romanos 13.3-6, o apóstolo Paulo constata a legalidade da pena de morte e a legitimidade do Estado em usar a espada como punição ao transgressor. O texto paulino evidencia a autoridade do Estado pelas  seguintes razões listadas nos versículos: “serva de Deus para teu bem”, “agente vingador para castigar o que faz o mal” e “estão a serviço de Deus”. Todas essas expressões indicam que o Estado tem o dever divino de punir os malfeitores, mas “o apóstolo nada diz quanto ao tipo de sanção e de penalidades que o Estado possa empregar” (STOTT, 2000, p. 417). A controvérsia em relação ao possível apoio do apóstolo à pena capital está presente na frase: “Mas, se fizeres o mal, teme, pois não traz debalde a espada” (Rm 13.4b).
O debate gira em torno do sentido que se deve dar a palavra referente à “espada” (machaira). O apóstolo já usara essa expressão antes com o sentido de morte: “Quem nos separará do amor de Cristo? A tribulação, ou a  angústia, ou a perseguição, ou a fome, ou a nudez, ou o perigo, ou a espada?” (Rm 8.35). No entanto, no texto em apreço, as palavras seguintes parecem indicar que a expressão “espada” deve ser entendida como símbolo geral de juízo “para castigar o que faz o mal” (Rm 13.4c). Ora nem todo mal era castigado com a pena de morte, embora ela não esteja excluída do texto paulino. Portanto, o apóstolo não normatiza a aplicação da pena, não ordena e nem proíbe, apenas reconhece a existência da lei como dispositivo punitivo na sociedade e na cultura de sua época.
De  fato,  a  pena  capital  contém  questões  complexas  para  que     sejam aplicadas no contexto cristão, “pois o precedente bíblico condenava à morte não só o homicida, mas também o adúltero e o que amaldiçoasse pai ou mãe” (HOLMES, 2013, p. 114). Aqueles que advogam o princípio bíblico para a pena capital estão dispostos em aplicá-la para todos os casos previstos na lei mosaica? A solução não estaria na mensagem transformadora do calvário?
O caso da mulher adúltera
O evangelista João registrou o caso de uma mulher apanhada em adultério (Jo 8.4). João informa que era de manhã cedo e Jesus estava ensinando no Templo (Jo 8.2). Cristo estava rodeado pelas pessoas que o escutavam, e de modo súbito os escribas e fariseus interromperam o discurso de Cristo com uma questão de ordem legal. Eles acusavam uma mulher de adultério e exigiam o parecer de Jesus sobre a aplicação da pena de morte (Jo 8.5). Essas autoridades eram “adeptos fundamentalistas da lei e sua interpretação, aplicação e preservação, eles sentiam-se ameaçados por uma nova escola de pensamento. Assim, tentavam anular Jesus com esta situação” (ARRINGTON, 2003, p. 540).
João registra que se tratava de uma armadilha para apanhar Jesus em alguma contradição: “Isso diziam eles, tentando-o, para que tivessem de que  o acusar” (Jo 8.6). O que pretendiam os opositores? Acusar Jesus de violar a lei? Torná-lo impopular com o apedrejamento de uma mulher? Parece que qualquer alternativa é possível para essas questões. Para os escribas e  fariseus, não importava qual fosse à decisão, pensavam que só tinham a ganhar levando o problema para Jesus se posicionar.
Entretanto, os acusadores comportaram-se de modo parcial e trouxeram somente a mulher para ser julgada, enquanto a lei exigia a presença das testemunhas e também do adúltero (Nm 35.30; Lv 20.10). Cristo se recusou a participar desse juízo temerário e ilegítimo. Absolveu a mulher da punição, lhe perdoou e a exortou a deixar o pecado (Jo 8.11).
Contudo, uma parte da erudição neotestamentária diverge da citação acima referenciada. Consideram que o perdão de Jesus foi somente religioso e espiritual e que não houve perdão civil ou jurídico, já que a acusação contra ela tinha desmoronado (KAISER Jr, 2016, p. 176). Entretanto, não há  dúvidas das lições que devem ser extraídas do incidente: Cristo não foi conivente com o pecado da mulher, mas desaprovou a violência e usou de misericórdia. Assim, apesar da pena de morte estar presente em ambos os Testamentos, os registros bíblicos assinalam que houve espaço para perdão e absolvição: para o rei Davi no Antigo Testamento e para a “mulher adúltera” no Novo Testamento.
II.   EUTANÁSIA: CONCEITOS E IMPLICAÇÕES
A eutanásia é o procedimento em que de modo ativo ou passivo uma pessoa pode antecipar ou acelerar o processo de morte. Por vezes é chamada de “morte assistida” ou “suicídio assistido”. No Brasil, a eutanásia é ilegal e desaprovada pelo código de medicina.
1.     O Conceito de Eutanásia
Etimologicamente, a palavra “eutanásia” tem origem em dois termos gregos: eu, com o significado de “boa” ou “fácil”, e thánatos, que significa “morte”. A junção desses dois termos resulta na expressão “boa morte”, também conhecida como “morte misericordiosa”. No sentido técnico, “eutanásia” significa antecipar, acelerar a morte ou tirar a vida de pacientes em estágio terminal, que estejam padecendo de dores intensas em consequência de alguma doença incurável. É o ato de matar o doente para não prolongar o grave quadro de seu sofrimento e de seus familiares. As formas  usadas podem ser classificadas em eutanásia passiva ou ativa. A primeira consiste em desligar as máquinas e aparelhos que mantém o paciente vivo e a segunda requer a aplicação de qualquer droga que possa acelerar o processo de morte.
A ortotanásia
Enquanto a prática da eutanásia tem sido tema de amplo e controverso debate, a “ortotanásia” é um procedimento comumente aceito e praticado. Embora lexicamente a ortotanásia até possa ser considerada sinônimo de eutanásia, entre ambas há consideráveis diferenças no campo da ética (ANDRADE, 2015, p. 81). A ortotanásia advém das expressões gregas  orthos, que significa “correta”, e thánatos, que significa “morte”. A junção desses dois termos resulta na expressão “morte correta”, também conhecida como “morte digna”. A ortotanásia trata os sintomas de uma doença para melhorar a qualidade da vida em estágio terminal. Nesse caso, o tratamento é paliativo, com o propósito de minorar a dor e deixar morrer da maneira mais confortável possível. Não se pretende a morte do paciente; simplesmente se aceita o fato de não poder impedi-la, isto é, permite-se que a vida do paciente cesse naturalmente. Costuma-se diferenciar a “eutanásia” da “ortotanásia” nos seguintes termos: “A ortotanásia seria deixar morrer, enquanto a eutanásia seria fazer morrer”.
2.     As Implicações da Eutanásia
As consequências da prática da eutanásia são extremamente danosas e contrárias à dignidade da vida humana. As dúvidas e as interrogações formuladas são complexas: É legalmente autorizado fazer cessar a vida? É correto que as pessoas, especialmente quem está em fase terminal da vida e em profundo sofrimento, decida pelo término da sua vida? É permitido ao ser humano requerer medidas que lhe tirem a vida? É direito de a pessoa determinar o dia de sua morte? É moralmente certo que outras pessoas decidam pela vida do moribundo? Qual a ética adotada quando se decide pelo prolongamento ou pela eliminação da vida? Portanto, diante dessas e outras questões, a prática da eutanásia tem implicações de ordem legal, moral e  ética.
Implicações legais

Nos aspectos legais, a Constituição Brasileira assegura a “inviolabilidade do direito à vida” (Art. 5º, CAPUT) e a “eutanásia” é tipificada como crime no Código Penal Brasileiro (CP):

Art. 122. Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça: Pena – reclusão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de um a três anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave. Parágrafo único – A pena é duplicada: I- se o crime é praticado por motivo egoístico; II- se a vítima é menor ou tem diminuída, por qualquer causa, a capacidade de resistência.

No entanto, tramita no Senado Federal o Projeto de Lei no 236/12 (Novo Código Penal), em que o juiz poderá deixar de aplicar punição para quem cometer a eutanásia, seja ela passiva, seja ativa:

Matar, por piedade ou compaixão, paciente em estado terminal, imputável e maior, a seu pedido, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável em razão de doença grave: Pena – prisão, de dois a quatro anos. §1º O juiz deixará de aplicar a pena avaliando as circunstâncias do caso, bem como a relação de parentesco ou estreitos laços de afeição do agente com a vítima.
§2º não há crime quando o agente deixa de fazer uso de meios artificiais para manter a vida do paciente em caso de doença grave irreversível, e desde que essa circunstância esteja previamente atestada por dois médicos e haja consentimento do paciente, ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão. (NCP, 2012,  Art. 122)

Se aprovado, o novo código possibilitará ao magistrado avaliação subjetiva e pessoal acerca da prática da eutanásia ativa (§1º) e quanto à eutanásia passiva, o doente terminal ficará à mercê da vontade de terceiros  (§2º). Nesses termos, a legalização da eutanásia provoca complicações de ordem moral e ética.
Implicações morais
Nas questões de ordem moral, deparamo-nos com a violação do sexto mandamento do Decálogo — “Não Matarás” (Êx 20.13) —, e em decorrência disso o crime de assassinato. E, ainda quando a “eutanásia” é consentida pelo paciente, surge o problema do pecado de suicídio. Associado a isso, questiona-se a participação do médico na condução do suicídio assistido. Nesse caso, o paciente provoca a própria morte com ajuda do médico que providencia os meios de fazer cessar a vida (PALLISTER, 2013, p. 144). Os médicos não deveriam salvar vidas, em lugar de eliminar vidas? Pergunta-se ainda: A quem mais interessa a eutanásia? Ao paciente ou ao seu plano de saúde e à previdência social?
Enquadram-se nessa discussão as questões de consciência e o sentimento de culpa. O homem como cidadão pode até compreender os argumentos pró- eutanásia, porém é muito difícil aplacar a consciência, pois ela é a primeira juíza de nossos atos. A culpa é considerada como um arrependimento por uma atitude tomada. Isso acontece quando alguém é obrigado pelas circunstâncias a decidir pela morte de um ente querido. Uma parcela de pessoas fica com a consciência pesada e sofrendo remorso. O sentimento de culpa torna a pessoa refém de sua ação contrária ao instinto natural de velar pela inviolabilidade da vida.
Implicações éticas
As indagações éticas podem ser assim resumidas: É lícito exterminar pessoas doentes? Descartar enfermos, inválidos e idosos não se constitui conceito racista da eugenia? Será ético interromper o tratamento de alguém que está sedado para não sentir dores ou induzido ao coma? As pessoas que desejam morrer estão com a mente sã e em condições psicológicas para essa tomada de decisão?
Existem também, as questões éticas de erro médico. Os casos de diagnóstico errado. A pessoa descobre ser portador de uma doença que a fará conviver com dores horríveis, perdas cognitivas, intenso sofrimento, e, por fim, a morte. Desesperado e sem expectativas, o paciente pede então que  tirem a sua a vida ou que o deixem morrer antes que a dor se torne insuportável. No entanto, o exame post-mortem conclui que o diagnóstico estava errado. Como lidar com uma tragédia dessas? Acham-se igualmente inseridos nesse contexto os casos de diagnóstico certo, mas de prognóstico errado. Por exemplo, a equipe médica chega à conclusão de que determinada doença levará o paciente a uma morte dolorosa. Não obstante, tempos depois, a cura é descoberta. Matar ou deixar morrer, nesses casos, promovem implicações éticas insolúveis.
III.  A VIDA HUMANA PERTENCE A DEUS
Deus é a causa originadora como também a causa sustentadora de toda vida que existe. Deus é o Dono de todas as coisas, inclusive do amanhã (Mt 6.34, Tg 4.13,14). Ele é o único ser capaz de controlar integralmente tudo que existe, o curso da vida, cumprindo cabalmente o seu propósito e frustrando toda oposição (CRUVINEL, 2015, p. 3). Sob essa premissa, a pena de morte e a eutanásia violam a providência e a soberania divina. A vida foi dada por Deus e pertence a Ele.
1.     A Fonte Originária da Vida
A Bíblia ensina que Deus trouxe o universo à existência (Gn 1.1) e que Ele próprio sustenta todas as coisas em existência (Hb 1.3). Deus não criou somente a matéria, mas criou também toda a espécie de seres vivos e ainda a humanidade (Gn 1.21-27; Cl 1.16). Os homens, como obra-prima, são uma criação especial e distinta. Deus os criou à sua imagem e semelhança (Gn 1.27), característica não dada a nenhuma outra criatura.
A vida humana passou a existir por causa da vontade de Deus e também continua a existir por sua vontade, pois “todas as coisas subsistem por Ele” (Cl 1.17). Deus está no controle soberano de toda a vida (Dt 32.39; Lc 12.7), e toda vida tem origem nEle: “pois Ele mesmo é quem dá a todos a vida, a respiração e todas as coisas” (At 17.25). Portanto, o Deus vivo é a fonte originária da vida e unicamente Ele tem autoridade para conceder ou tirar (1 Sm 2.6).
2.     O Caráter Sagrado da Vida
A vida humana, sua sacralidade e dignidade têm sua origem e fonte em Deus. A vida existe e subsiste por vontade e com propósitos divinos. Atentar contra a vida é atentar contra a providência e a soberania de Deus, o autor da vida. O poder absoluto sobre a vida e a morte pertence única e exclusivamente a Deus. A atual ideologia que propaga o direito do homem em exterminar a própria vida ou a do outro viola os desígnios divinos (Jo 10.10). Portanto, a vida humana é sagrada e deve ser protegida, cuidada, preservada, respeitada e valorizada.
A sacralidade da vida
Na história das religiões, sagrado é tudo aquilo que é objeto de uma garantia sobrenatural. O reconhecimento de que a vida humana é sagrada respalda-se em três dimensões fundamentais: a razão da sua origem, a razão da sua natureza e a razão do seu destino. Assim, como essas razões são sobrenaturais, a vida é sagrada, não por motivos biológicos, mas por Deus ser o protagonista de sua origem, de sua existência e de seu término. Em consequência, a vida humana é inviolável em quaisquer circunstâncias, fases ou etapas de sua existência. Por isso o sexto mandamento, “não matarás”, possui  valor  absoluto.  Não  se  devem  permitir  concessões.  Quando        o mandamento é relativizado, a sacralidade da vida humana fica ameaçada.
A discussão da sacralidade da vida não pode ser apenas jurídica, mas, sobretudo, um debate de questões éticas. Para os preceitos da ética cristã, a vida humana é sagrada porque tem origem divina, visto que toda vida emana de Deus. Por conseguinte, deve ser inviolável a proibição de intencionalmente alguém tirar a vida de outro ser humano (Êx 20.13). Seja por meio da pena capital, seja por práticas abortivas ou com o uso de  qualquer droga com a intenção de matar ou apressar a morte de alguém. A sacralidade da vida humana deve ser protegida e preservada antes e depois do nascimento, desde o momento da concepção até o seu último instante (Sl 116.15; 139.13-16). A vida deve ser respeitada e valorizada como dádiva divina: “Visto como o seu divino poder nos deu tudo o que diz respeito à vida” (2 Pe 1.3a).
A dignidade da vida
Ao publicar sua obra A Metafísica da Moral (1797), o filósofo alemão Immanuel Kant, inaugurou o conceito de “imperativo categórico”. Em sua concepção, Kant ensinou que nas relações éticas o dever moral é  “imperativo” e, por atingir a todos, sem exceção, também é “categórico”. Em outras palavras, o filósofo queria dizer que “a moral deve ser igual para todos, o tempo todo, e em todos os lugares”. Ele se posicionava contra o “relativismo moral” e contra a doutrina do utilitarismo, ou seja, a de que “os fins justificam os meios”. Para Kant, a ética deve ser fundamentada em princípios universais, e não em regras circunstanciais. Desse modo, quando aplicamos o conceito do “imperativo categórico” em relação à vida, a inviolabilidade recebe valor absoluto, ou seja, um respeito incondicional à dignidade humana é o reconhecimento do sagrado da vida, e não a sua banalização:
No Brasil, hoje vivemos uma situação paradoxal. Há proteção legal da vida de plantas e animais. O mesmo não ocorre com a vida humana. As plantas e os animais usufruem da proteção de ONGs, do público e da autoridade em geral, quando em propriedade particular. Em lugares públicos, a atitude muda, pois aí ninguém se sente responsável. Quando o vizinho derruba uma árvore em seu pátio, porque ameaça cair sobre sua residência, outros logo se encarregam de avisar as autoridades sob o pretexto de defender o meio ambiente. Onde fica a eminente dignidade humana? O homem foi reduzido a simples objeto? Deve o homem fazer tudo que sabe, sem prever as consequências? O homem é meio ou fim em si mesmo? (ZILLES, 2007, p. 344)

O autor da citação acima questiona a existência de espaço para a sacralidade e a dignidade da vida humana na sociedade hodierna. Reclama que, por parte de alguns setores, a vida das plantas e dos animais recebe  maior atenção que a própria vida do ser humano. Isso nos remete ao  problema da vulgarização da vida. Em nome do pseudodireito de morrer e também do suposto direito legal de matar, como nos casos do  suicídio, aborto, pena de morte e eutanásia, a sacralidade e a dignidade humana são desrespeitadas e tornaram-se corriqueiras.
Entretanto, essa não deve ser a postura cristã. Se a vida é sagrada por ocasião da concepção, deve permanecer sagrada durante todo o seu percurso, e não poderá deixar de ser sagrada em seu derradeiro dia. No caso de alguma enfermidade, o paciente tem o direito de receber tratamento adequado tanto na busca da cura como no alívio de suas dores. Procedimentos dolorosos e ineficazes podem ser evitados a fim de resguardar a dignidade humana, porém, exterminar a vida é uma afronta ao Príncipe da Vida (At 3.15).
Buscar a morte como alívio para o sofrimento é decisão condenada nas Escrituras. Jó, por exemplo, embora sofrendo dores terríveis, reconheceu o caráter sagrado da vida e com dignidade não aceitou a sugestão de sua esposa em amaldiçoar a Deus e morrer (Jó 2.9). Por fim, o patriarca enalteceu a providência e a soberania divina sobre a existência humana: “Bem sei eu que tudo podes, e nenhum dos teus pensamentos pode ser impedido” (Jó 42.2). Quanto à pena capital, vale a pena ratificar a seguinte assertiva do apologista assembleiano: “é como a bomba atômica: existe, mas não é para ser usada. Ela não vai resolver, como nunca resolveu, o problema da violência e da criminalidade” (SOARES, 2014, p. 97).