domingo, 7 de maio de 2017

Jesus Dissipa as Dúvidas

Texto: João 20.19-31

Ao examinarmos a narrativa da ressurreição, notamos quão marcantemente as aparições do Senhor atendiam às necessidades várias pessoas. Maria, com seu coração cheio de lealdade, recebeu consolação; Pedro, o arrependido, foi perdoado e restaurado; os dois pensadores no caminho de Emaús receberam a convicção; e os dez discípulos amedrontados receberam confiança c forças, enquanto Tomé foi transformado de duvidoso em crente firme. Para todas estas pessoas, a presença do Cristo vivo mostrou-se suficiente.

I - Consolados os Discípulos Amedrontados
(Jo 20.19,20)
O dia da ressurreição linha sido emocionante, com muitos rumores e crescentes emoções. Ao fim da tarde, reuniram-se os discípulos. Trancaram tudo, com medo dos judeus, pensando que a qualquer momento soldados romanos poderiam ser enviados contra eles, para levá-los presos como cúmplices de Jesus Nazareno. Certamente tais homens nunca teriam pregado a ressurreição, a não ser que tivessem absoluta certeza de que Jesus realmente ressuscitara.


Jesus, de súbito, estava no meio deles, falando: “Paz seja convosco”. O Senhor já tinha um corpo espiritual, glorificado, c não estava sujeito a limitações naturais, tais como portas trancadas. As palavras “paz seja convosco” tinham mais força do que quando empregadas no cumprimento tradicional, pois realmente aquietaram os corações perturbados. Os discípulos sentiam medo antes da vinda de Jesus (cf. Lc 24.37), mas, agora, sua presença anunciava confiança e vitória. O aspecto de Cristo era o mesmo, c, ao mesmo tempo, diferente, de tal forma que o imediato reconhecimento da sua pessoa nem sempre acompanhava a sua manifestação. Era necessário alguma coisa a mais para completar a identificação: “E, dizendo isto, mostrou-lhes as mãos e o lado” (e os pés também - Lc 24.40). Estava completa a identificação. Era real mente o Crucificado, que voltara à vida. “Dc sorte que os discípulos se alegraram, vendo o Senhor”. Não pode haver maior alegria do que esta! No começo, a notícia parecia boa demais para ser verdadeira (Lc 24.41), c talvez os discípulos se sentissem como os que sonham (ef. SI 126.1). A alegria da esperança despertada, no entanto, transformou-se cm alegria da plena convicção.

II - A Comissão Dada aos Discípulos Jubilosos
(Jo 20.21-23)
uma vez dissipados os temores e dúvidas dos discípulos, estes estão em condições de receber instruções. A primeira “paz” foi para restaurar-lhes a confiança (v. 19); a segunda “paz” 1'oi para o serviço (v. 21). Os discípulos foram:

/. Enviados. “Assim como o Pai me enviou, também eu vos envio a vós”. Foram enviados para cumprir o mesmo propósito, para completar a obra iniciada e ocupar o mesmo relacionamento que Ele assumira com o Pai. O livro de Atos registra como Jesus, mediante o Espírito Santo, continuou a sua obra nas pessoas dos discípulos.

2. Inspirados. “E, havendo dito isto, assoprou sobre eles e disse-lhes: Recebei o Espírito Santo.” O sopro divino c um ato criador (Gn 2.7; cf. 1 Co 15.45). Nessa ocasião, portanto, os discípulos receberam do Senhor da vida um tipo de vivificação espiritual. O “Dom da Páscoa” foi um toque da vida celestial do Cristo ressurreto, c o “Dom de Pentecostes” foi o revestimento de poder da parte do Senhor ressurreto. Na primeira instância, receberam a vida espiritual; na segunda, o poder espiritual.


3. Autorizados. “Àqueles a quem perdoardes os pecados, lhes serão perdoados; e àqueles a quem os retiverdes lhes são retidos”. Os apóstolos nunca assumiram a autoridade de perdoar, no lugar de Deus, os pecados específicos de indivíduos. O próprio Pedro mandou Simão recorrer a Deus para pedir perdão (At 2.22). Fístas palavras por certo referem-se a ofensas contra a disciplina da igreja, e não a pecados íntimos e pessoais contra Deus. Tal conclusão se obtém da seguinte maneira: João 20.23 e Mateus 18.18 tratam do mesmo assunto, e Mateus 18.17 indica que a questão em pauta não é a das ofensas pessoais, que podem ser solucionadas sem recurso ao ministro (Mt 18.15), e sim à recusa do crente cm submeter-se à disciplina da igreja. Tal crente tem de ser expulso da igreja. Ao arrepender-se, c recebido de volta à igreja; seus pecados são “perdoados” (cf. 1 Co 5.5 e 2 Co 2.10).
Não há base para a doutrina da “sucessão apostólica” aqui, nada que sugira terem passado os apóstolos esta autoridade a bispos que se seguiam a eles, c que os bispos pudessem passá-la a sacerdotes. Pelo contrário, entende se que havia outras pessoas presentes quando esta comissão foi dada (cf. Lc 24.35), e que as palavras supra examinadas se aplicam à igreja como um todo. O “perdão” dado na terra só pode referir-se a transgressões contra a jurisdição e o aspecto administrativo da igreja.

Ill - A Convicção Dada ao Apóstolo Duvidosos
(Jo 20.24-29)

1. O desafio do duvidoso. “Ora, Tomé, um dos doze, chamado Dídimo, não estava com eles quando veio Jesus.” Tomé, ou Dídimo (que significa “gêmeo”), era de temperamento sombrio e pessimista (Jo 11.8,16; 14.5). Deixou- se abalar com a tragédia do Calvário, e estava se ressentindo da perda. Por enquanto, sua fé estava em maré baixa, c sua esperança, morta. Mesmo assim, não abandonara a sua lealdade nem o convívio com os apóstolos.

Ouvindo os testemunhos dos demais discípulos, disse enfaticamente: “Se eu não vir o sinal dos cravos em suas mãos e não meter o dedo no lugar dos cravos, c não meter a minha mão no seu lado, de maneira nenhuma o crerei”. Exigiu a evidência mais positiva da visão e do tato. Queria crer, mas a tragédia do Calvário abalara a sua fé. Suas palavras indicam o quanto ainda estava a sua memória fixada nos terríveis acontecimentos da crucificação. Para ele, as chagas do Senhor ainda estão abertas c sangrando. Sente necessidade de evidências positivas de feridas tão mortais terem sido saradas pela Vida. Tomé, por mais que mereça nossa simpatia, não deixa também de merecer a nossa censura pela teimosa recusa em crer na palavra de dez testemunhas oculares de indubitável reputação e qualificação.
Que Jesus considerou sinceras as dúvidas de Tomé se vê na maneira de encará-las: o Senhor ressurreto aparece novamente, para oferecer as provas pedidas pelo discípulo que estivera ausente na primeira ocasião. Quanto aos zombadores, Jesus encarava-os de modo bem diferente (cf. Mt 16.4). Jesus aqui fala a um discípulo sincero, cuja fé era fraca, c não a alguém de coração descrente.

2. A resposta ao duvidoso. Note-se que, em ambas as ocasiões, Jesus apareceu no primeiro dia da semana, como se o dia em que ressurgiu dentre os mortos tivesse sido escolhido para ser honrado de modo especial. A expressão original traduzida como “dia do Senhor’", em Apocalipse 1.10, foi o nome que os primeiros cristãos deram ao domingo.

Jesus, quase repetindo as palavras empregadas por Tomé para definir os termos do teste físico que pedia, oferece-se à inspeção do discípulo. Bastou um único vislumbre do amado Mestre para Tomé se prostrar em terra com a ardente confissão: “Senhor meu, e Deus meu!” Sua felicidade era por demais grande para que pensasse em fazer testes científicos! Suas dúvidas evaporaram diante da revelação da presença de Jesus, como se dissipam as névoas da madrugada ao raiar o sol.

Note-se que a confissão de fé feita por Tomé é a mais avançada entre as de todos os outros apóstolos durante o seu convívio com Jesus. Pela graça de Deus, aquele que sentira mais dúvidas chega à crença mais completa e firme.

Disse-lhe Jesus: Porque me viste, Tomé, creste; Bem- aventurados os que não viram e creram.” Jesus não quer com isso louvar a falta de indagações e exame; isto seria a credulidade, e não a fé.
O evangelho convida a um exame das suas verdades fundamentais, porque “isto não se fez cm qualquer canto” ( At 26.26). O que Jesus louva é a disposição de aceitar a fidedignidade da evidencia dos discípulos que o conheciam, sem exigirmos a evidência dos nossos próprios sentidos.

As palavras de Jesus a Tomé realmente se dirigem às pessoas de todas as eras, que não tiveram o privilégio de ver a Jesus. Ele quer que entendamos que nenhum motivo de inveja temos daqueles que tiveram a oportunidade de vê-lo, c que somente creram depois de terem visto.
Ensinamentos Práticos

/. A missão de Cristo e a nossa. “Assim como o Pai me enviou, também eu vos envio a vós”. A quem foram ditas estas palavras? A homens que já tinham visto o Senhor, que haviam sentido o toque das suas mãos e experimentado a paz que excede todo o entendimento. Aquelas eram as qualificações para serem enviados cm nome de Cristo, e também são as nossas, embora cm nosso caso o contato com Cristo seja espiritual.
Algumas igrejas consideram apenas os sacerdotes, pastores ou anciãos como representantes oficiais “enviados” por Cristo, conceito que é estranho ao ensino do Novo Testamento no que diz respeito ao serviço cristão. É indispensável um ministério de dedicação integral, mas, afinal, uma das suas funções principais é levar os crentes à maturidade espiritual, a fim de que possam ser preparados para o serviço. “Também eu vos envio a vós”, disse Jesus, e suas palavras referem-se a todos aqueles que tiveram uma visão do Senhor, se alegraram com a sua presença c receberam a sua bênção nos seus corações.
Para que propósito somos enviados ao mundo? Para produzir em nossas vidas uma cópia fiel da atitude que Cristo revela para com Deus c o mundo. Certo homem piedoso declarou que era seu desejo supremo viver de tal modo que a sua própria vida provasse a veracidade do Evangelho.
A atitude de Cristo demonstrada na vida diária do crente é um argumento irrefutável cm prol do Cristianismo.

2. O Cristo vivo e as portas trancadas. Reflitamos primeiro sobre este falo: foram os amigos de Cristo, e não os seus inimigos, os primeiros a trancarem as portas para o Ressurreto. Não somente estavam trancados entre as quatro paredes de um quarto, como também nas cadeias do medo, da aflição e da decepção. Lemos, no entanto: “Cerradas as portas... chegou Jesus”.
Repetidas vezes a Igreja, com zelo falso ou em ignorância do plano do Senhor, tem trancado as portas para Ele. Mediante avivamentos espirituais, porém, as portas de preconceitos tem sido arrombadas. “Cerradas as portas... chegou Jesus”.
Certo negociante, que durante anos vivera como agnóstico, disse que sentiu o toque do Senhor exatamente como se alguém lhe tomasse a mão enquanto andava na rua, para falar intimamente a ele. Daquele momento em diante, sua vida foi completamente transformada. “Cerradas as portas... chegou Jesus”.
Muitos entre nós, cedendo à depressão, excluem o Senhor sem se aperceber; Ele, porém, chega para nos elevar do nosso abatimento. E podemos testificar: “Então Jesus veio a mim, mesmo estando as portas trancadas”.

3. Poder espiritual para a obra espiritual. Quando Cristo soprou sobre os discípulos, estava querendo dizer: “Pessoas espiritualmente mortas não podem trazer a outros a vida espiritual. Assim sendo, eu vivifico vocês espiritualmente”. Todos os que se dedicam em ganhar almas para Cristo reconhecem a verdade das palavras do Senhor: “Sem mim nada podeis fazer”. Ninguém procurou honestamente transformar-se em tudo aquilo que Cristo quer que ele seja, sem ter chegado a gemer, quase desesperado: “Quem é suficiente para estas coisas?” Embora esta atitude faça mal ao orgulho próprio, é benéfica à nossa alma. É como clamar: “Senhor, o meu cântaro está vazio; por favor, encha-o para mim.” Sua resposta vem sem demora: “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus... Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos” (ML 5.3,6).
Jesus disse: “Recebei o Espírito Santo”. Como? Segundo as palavras de Isaías: "Os que esperam no Senhor renovarão as suas forças”.
4. Proclamando o perdão aos arrependidos. Um dos possíveis sentidos do versículo 23: c direito c também dever de todo cristão proclamar ao mundo que Cristo foi manifestado para tirar o pecado, que aquele que crê será salvo ("os pecados lhes são perdoados”), e que quem não crer será condenado (são “retidos” os pecados).
Que pensamento solene - saber que temos autoridade para dizer ao pior dos pecadores: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”!
5. O faltoso. “Ora, Tomé, um dos doze, chamado Dídimo, não estava com eles quando veio Jesus”. Que hora para faltar á reunião! Decerto Tomé nem imaginava quão maravilhoso haveria de ser o culto! Talvez pensasse que os demais discípulos falariam sobre o Cristo morto. Existem hoje, nas igrejas, pessoas para as quais Cristo não é uma realidade viva, e imaginam, portanto, não haver vida espiritual na igreja, faltam, não por indiferença, nem por se sentirem satisfeitas espiritualmente, mas por falta de esperança.
Contrariamente às expectativas de Tomé, no entanto, os discípulos tiveram uma reunião maravilhosa, porque Jesus estava ali. Tomé perdeu muita coisa: uma demonstração da certeza da vida futura, o gozo de grande enlevo espiritual, a dádiva da paz, a vocação ao ministério da pregação e o sopro do Espírito Santo. É triste para a igreja quando os crentes começam a faltar aos cultos.
6. Crer é ver. A incapacidade de ver pode ser explicada por um dos dois motivos seguintes: ou nossa visão é boa e o objeto a ser visto é obscuro; ou é claro o objeto, e inferior a nossa visão Qual foi o caso de Tomé? A evidência era suficientemente clara porque tinha o testemunho unânime de dez homens que conhecia há anos, e isto não somente pelas palavras deles, como também pelos seus rostos transformados de júbilo espiritual. A dificuldade, portanto, não eslava na evidência, e sim na atitude dc Tomé. Jesus, portanto, disse: “Não sejas incrédulo, mas crente”.
As pessoas talvez digam que não podem crer nisto ou naquilo, e talvez estejam sendo sinceras. A pergunta mais importante, em tal caso, é: “Você realmente quer saber se isto é verdade? E estaria disposto a conformar sua conduta com os fatos, uma vez averiguados?”
O olho sadio verá a luz. O coração sadio perceberá a verdade.
7. Impondo condições a Deus. Tomé errou grandemente em querer estipular condições cm que Cristo leria de vir a ele. “Sc eu não... de maneira nenhuma crerei”. Definiu o caminho pelo qual Jesus teria de vir a ele, e não quis perceber a presença do Senhor, a não ser que fosse por aquele caminho. É certo que Cristo se adaptou às fraquezas do melancólico discípulo, mas nem por isso devemos repetir tal erro. Não podemos ditar ao Senhor os métodos que deverá empregar para tratar conosco. O papel da criatura é confiar no Criador, e não procurar limitar o Onipotente.
8. A vista nem sempre é a visão. Leia o versículo 29. Esta época materialista exige fatos concretos, mas, mesmo na vida cotidiana, há diferença entre ver e perceber. Muitas pessoas passam nas galerias de arte sem perceber nada de especial nas obras-primas, não reconhecendo nelas qualquer significado ou valor.
Milhares de pessoas viram Jesus enquanto estava aqui na terra, mas nem todas perceberam ser Ele o Filho de Deus. Em contraste, milhares de pessoas hoje, que nunca viram a Jesus fisicamente, reconhecem-no pelos olhos da fé, de forma que Ele lhes é tão real como um amigo na terra.


Não posso crer”, disse um jovem descrente a D. L. Moody. “Fm quem você não pode crer?” perguntou o evangelista. Respondeu hem! O Cristianismo apresenta, cm primeiro lugar, uma Pessoa que merece nossa confiança, c não tanto uma serie de proposições abstratas a serem aceitas. Quando um amigo telefona dizendo que chegará a tal hora, vamos para a estação nos encontrar com ele. Cristo nos avisou que se encontrará conosco no local chamado Fe, e ali o acharemos.


Fonte: Livro

226.5 - João
Pearlman, Myer
PHAj João, o Evangelho do Filho de Deus.../
Myer Pearlman - l.ed. - Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembléias de Deus, 1995. p. 236. cm. 14x2 1 ISBN 85-263-0025-3
I. Comentário Bíblico. 2. João

CD D - 226.5 - João

quinta-feira, 4 de maio de 2017

JOVENS (Subsídio Teológico Cap 6 / 2º Trim 2017) O Pai-Nosso (Mt 6.9-15)

A mais conhecida oração do mundo saiu dos lábios do Nosso Senhor Jesus Cristo. Depois de falar a respeito do segundo ato básico da justiça do judaísmo, o Mestre instrui os seus discípulos acerca de como se devia orar (v.9). Embora não tenha sido tratado no capítulo anterior, é importante que, antes de pensar em uma análise do Pai-Nosso,1 se faça uma digressão a respeito dessa importante prática cristã, posto que há grandes riscos que cercam a vida devocional. A parábola do fariseu e do publicano demonstra tal perigo, pois o primeiro não ora a Deus, mas a si mesmo e aos homens (Lc 18.9-14). A. W. Tozer diz que ao “orarmos, deveriamos avaliar quem está agindo: o desejo do nosso coração ou o Espírito Santo”. Sua conclusão caminha no sentido de que, se a “oração tem sua origem no Espírito, então a luta espiritual pode ser bela e maravilhosa; mas, se somos vítimas de desejos alimentados em nosso coração, a nossa oração pode tornar-se tão carnal quanto qualquer outro ato”.2 Isso significa que propósitos egoístas podem estar escondidos sob uma aparente piedade ritualística. Uma voz melancólica, chorosa e que parece mais teatral que espontânea, longe de evidenciar um perfil piedoso, revela a perspectiva enganosa de alguns em relação a Deus. Não são a mera aparência ou a posição física, a tonalidade ou o timbre da voz, as palavras ou as expressões faciais que levam a oração a ser aceitável diante do Senhor, mas a disposição do coração, as intenções e a motivação com que nos dirigimos a Ele. E é exatamente isso que o Senhor quer ensinar aos seus discípulos, a oração na perspectiva da justiça superior.

No tocante às motivações para orar, N. T. Wright afirma que quando “nos detemos diante de algumas impressionantes promessas do Novo Testamento (‘Se permanecerdes em mim, e as minhas palavras permanecerem em vós, pedireis o que quiserdes, e vos será feito’ [Jo 15.7]), descobrimos que elas estão equilibradas por um estranho fenômeno”. Qual seja, quando “reivindicamos ousadamente essas promessas, descobrimos que, se formos sinceros, nossos desejos e esperanças serão suavemente, porém firmemente remodelados, separados e colocados novamente em ordem”.3 Em outras palavras, nossas prioridades terão sido colocadas de cabeça para baixo e, como na Oração do Pai-Nosso (Mt 6.9-13), em vez de petições meramente temporais e transitórias, certamente, desejaremos o Reino de Deus, a santificação do Nome do Senhor, a vontade soberana e benfazeja dEle, e somente nos lembraremos de nós mesmos em último lugar.

Se fôssemos falar sobre o conteúdo, orações “cristãs” que se parecem mais com o que é praticado no paganismo, “onde”, segundo N. T. Wright, “o ser humano tenta invocar, apaziguar, adular ou subornar o deus do mar, o deus da guerra, o deus do rio ou o deus do casamento para obter favores especiais ou evitar perigos específicos”,4 talvez façam qualquer coisa, menos glorificar ao Senhor. Obviamente que isso não quer dizer que não se pode pedir algo que se deseja ou suplicar socorro em momentos de apreensão. Todavia, imaginar Deus como um ser alheio às nossas motivações (algo que, tudo indica, pesa mais que as palavras, os gestos e a posição física), diminui-lhe a divindade, pois faz com que um de seus principais atributos seja negado. “Dizemos”, como afirmou C. S. Lewis, “que Deus é onisciente; contudo, boa parte de nossas orações parece consistir em transmitir-lhe informação”.5

Ultimamente tenho aprendido que o nosso palavrório diante de Deus, “priva-o” de responder-nos e impede-nos de ouvi-lo. Como pentecostais, aprendemos que a “boa oração” é a mais barulhenta, altissonante e verborrágica, não obstante, após fazê-la, é possível que saiamos do ambiente ou que nos levantemos do lugar, muito mais orgulhosos que humildes, e mais cheios de si que do Espírito. Assim, reconsidero historicamente a importância do hesicasmo, não como movimento ou ordem monástica, mas como “prática do silêncio”. Alister McGath, afirma que o “tema do ‘silêncio’ pode estar relacionado ao tema apofático do mistério de Deus, isto é, ao reconhecimento de que a linguagem humana nunca será capaz de fazer jus a Deus”. Tal assunto aponta para a verdade, dita pelo mesmo autor, de que no lugar de “pronunciar clichês banais, a resposta certa ao confronto com toda a maravilha de Deus é o silêncio”. E isso por uma razão muito simples: “Estar em silêncio muitas vezes é condição prévia para a oração eficaz (que pode ser pensada como ‘ouvir Deus’)”. Esse “silêncio” não significa inércia ou frieza espiritual, pois antes de qualquer coisa, não se está discutindo o mero ato de quietude, de afastamento do convívio social, mas o distanciar-se de “todas as distrações para se concentrar em Deus”.6

Antes de falar da questão principal da mais famosa oração cristã e de sua relação com o cerne do Sermão do Monte, diria que a “prática do silêncio” colocada por McGrath leva-nos a pensar o quanto os afazeres e o corre-corre das obrigações diárias, quando não nos priva de orar, conseguem tirar a nossa concentração no momento de falar com Deus. Para C. S. Lewis, o grande problema não está especificamente na falta de atenção, mas no que ele chama de “oração como dever”: “Ora, o que incomoda não é o simples fato de cumprirmos o dever de orar às pressas e de qualquer jeito. O que incomoda de verdade é o fato puro e simples de a oração ser contada entre os deveres”. Essa percepção, segundo Lewis, não indica que estamos fazendo algo para o que não fomos criados, antes, demonstra que se “fôssemos perfeitos, a oração não seria um dever, mas deleite”. Assim, as dificuldades enfrentadas no período da oração ou nos momentos que o antecedem demonstram apenas que “justo as atividades para as quais fomos criados são, enquanto vivemos na Terra, impedidas de várias maneiras: pelo mau em nós mesmos e nos outros. Não praticá-las é abandonar nossa humanidade. Praticá-las com naturalidade e prazer ainda não é possível. Essa situação cria a categoria do dever, todo o reino do especificamente moral’.7 Mas chegará o dia em que orar não mais será um dever, e tudo o que aqui se vive em perspectiva, será efetivamente real (1 Co 13.12), e a oração se transformará em relacionamento sólido e verdadeiro com Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo. Até lá, porém, deve-se praticar o dever de orar, buscando sempre o auxílio do Espírito Santo — real e verdadeiro Intercessor (Rm 8.26) — fazendo com que o antegozo daqui, supra momentaneamente a necessidade que somente se satisfará de maneira plena quando o Reino de Deus for instaurado por completo.

Assim, acredito que esta seja uma oportunidade única para se refletir o quão distinta é a perspectiva divina da oração em relação ao que se acha dela. Para grande parte dos cristãos, influenciada pelo pragmatismo, a oração parece ser uma ferramenta ou uma técnica capaz de fazer com que Deus obedeça às suas ordens ou desejos egoístas. Não acredito em nenhuma “teoria infalível” que pretenda ser uma “receita de bolo” para ensinar os cristãos a “saquearem o céu”. Esse tipo de incentivo ao que pretende ser “oração” se parece mais com egoísmo, existencialismo ou qualquer outra postura filosófica desse ou de qualquer outro tempo, mas nada tem com o que as Escrituras apresentam (se não de maneira normativa, ao menos, descritiva), em termos de relacionamento com o Eterno — algo que, de minha parte, define a essência do ato de orar.

O entendimento corrente que reduz a oração ao mero ato de pedir, torna-se inviável diante da atitude de Jesus Cristo para com ela. Várias passagens dos Evangelhos informam que o Senhor retirava-se para orar (Mt 14.23; 26.36,39,44; Mc 6.46; Lc 6.12; 9.28). A despeito das discussões acerca da kenosis, o Senhor não deixou de ser Deus por encarnar-se, mas optou momentaneamente pelo estado de limitação humana, se autoprivando da imunidade, e sendo vulnerável a todas as demais limitações comuns aos mortais. Ao refletir sobre a inegável verdade de que Jesus Cristo é Deus, raramente se reflete sobre a questão de o porquê de Ele orar. Se Cristo era e é Deus, existe necessidade de Deus orar? Rapidamente alguém responderá que na condição humana Ele precisava de Deus. Bem isso desconstruiria a verdade de que Ele apenas esvaziou-se, mas não deixou de ser Deus. A grande lição é que, como já foi dito, a perspectiva divina acerca da oração é diametralmente oposta à nossa. Refletir acerca desse exemplo por parte do nosso Salvador destrói qualquer postura utilitarista a respeito da oração. Jesus Cristo não precisava orar, mas assim procedia pelo fato de que se relacionar com o Pai é algo da própria natureza de sua divindade. Por outro lado, a perspectiva divina de petição pode ser vista com clareza através da composição do Pai-Nosso, com suas seis petições8 que, juntamente com os demais elementos dessa oração, serão analisadas de modo sucinto.

Pai Nosso"
Acerca da primeira frase do Pai-Nosso, informa-nos Agostinho que, em toda a Bíblia, “não se encontra um só lugar em que se ordene ao povo de Israel que diga Pai nosso ou que ore a Deus Pai, e isso porque o Senhor se manifestou àquele povo como a servidores, ou seja, como a quem vivia ainda segundo a carne”.9 A oração traz, portanto, essa primeira grande inovação, que é o fato de um indivíduo dirigir-se a Deus como “Pai” (v.9). Ninguém ousara dirigir- se de forma tão pessoal a Deus. Jesus assim se dirigia e não somente ensinou aos discípulos, mas lhes deu tal direito (Jo 1.12). Apesar de “estar” no céu, o invocamos como Pai e sentimos sua proximidade, pois, parafraseando Agostinho, Deus “está mais dentro de nós do que nossa parte mais íntima”.10

A Primeira Petição
Há muito se discute se o pedido da primeira súplica — “santificado seja o teu nome” (v.9b) — deve ser atendido por Deus, a quem se ora e cujo caráter é indiscutivelmente santo, ou pelo próprio orante. Uma vez que, como é sabido, em toda a Bíblia o nome define aquele que é chamado, e visto que o “nome” de Deus revelado por Jesus Cristo no Sermão do Monte é “Pai”, Marcei Dumais diz que tal súplica poderia ser traduzida como ‘“Faz-te reconhecer como Pai”’ e, continua o mesmo autor, levando “em conta toda a riqueza de sentido da imagem do Pai no SM, pode-se parafrasear: Que todos consigam reconhecer que têm um Pai, que está na fonte de seu ser, que quer o bem e o crescimento de todos e que convida cada um a colocar-se diante dele como filho ou filha”.11 Será que é realmente isso que se quer quando, ao orar, o orante dirige-se a Deus como “Pai”?

A Segunda Petição
A segunda súplica é a mais teológica de todas. Qual o sentido de se pedir pela “vinda” de um Reino que já “veio”? Aqui, torna-se evidente a importância do conceito de Reino de Deus como “já” e “ainda não”, desenvolvido por Oscar Cullmann e já mencionado no capítulo 3, inclusive por autores pentecostais. O Reino de Deus está presente, mas'também “espera” sua “realização final”. Corretamente falando, a opção por essa forma de explicação do discurso de Jesus acerca do Reino de Deus não se trata de simples preferência teológica ou coisa que o valha; é exatamente o oposto. A posição culmanniana honra as Escrituras e demonstra a coerência no discurso de Jesus, que disse ambas as coisas: O Reino de Deus está, mas não ainda completamente (Lc 10.9,11; 17.20,21; 21.31; Mt 6.10)! Em vez de enfurnar-se em um malabarismo hermenêutico que nada explica, Cullmann demonstra através de uma teologia da História como, em Jesus, o tempo é dividido de uma nova maneira. Caso se queira resolver o assunto de forma semântica ou “histórico-gramatical”, segundo o autor, o próprio conceito remete ao entendimento desenvolvido anteriormente em sua obra Cristo e o Tempo:

O termo grego basileia pode ser compreendido de maneira estática, como um lugar, ou dinâmica, como um reino, ou seja, o exercício da soberania real. No judaísmo, esses dois significados são encontrados, mas o segundo aparece bem mais frequentemente. Nas palavras de Jesus, se encontra um quase tão frequentemente quanto o outro. Quando em Mt 7.21, por exemplo, a questão é a “entrada no Reino dos Céus”, ou em Mt 8.11 do “banquete no Reino de Deus”, trata-se da concepção espacial. Por outro lado, o anúncio de que o Reino de Deus está próximo (Mc 1.15; Mt 4.17) e que já veio (Mt 12.28; Lc 11.20) se relaciona antes ao governo real de Deus. Quando no Pai Nosso se ora para que venha o basileia, sem dúvida, pode-se pensar também, em primeiro lugar, neste último sentido. O exercício da soberania de Deus no céu, em seu Reino, deve se tornar realidade em todos os lugares, sobre a terra, também.12

Em resposta a tensão entre o “já” e o “ainda não” presente na segunda petição do Pai-Nosso, em A Oração no Novo Testamento, sugere Cullmann que “quando os cristãos oram: ‘Venha o teu Reino’, eles pronunciam essa oração com o judaísmo; todavia, seguindo Jesus, eles oram para que se concretize um Reino que, com ele, já chegou”.13 À luz dessa perspectiva, é perfeitamente aceitável e prudente que em lugar de “quando?”, se pense em “o quê?” Dessa forma, seguindo o raciocínio de Cullmann, de “maneira tanto mais fervorosa devemos orar, enquanto discípulos de Jesus, ‘Venha o teu Reino’, e, assim fazendo, pensar também sobre o nosso dever ético”.14 Aqui, faço minhas as palavras de Giuseppe Barbaglio, quando ele afirma que a chave hermenêutica de todo o discurso escatológico de Mateus 24 e 25 “é um olhar profético sobre o futuro visando fundar escatologicamente uma ética atual para a Igreja”.15 Em outras palavras, a expectativa do futuro deve provocar reações positivas no tempo presente. Está, pois, claro que o Reino de Deus não dependeu de militância humana para ser iniciado, e muito menos precisa ou precisará dela para sua instauração definitiva ou final. Essa afirmação, porém, remete o assunto para outro aspecto imprescindível na tematização do Reino de Deus, presente na terceira petição do Pai-Nosso.

A Terceira Petição
A terceira petição suplica que seja feita a vontade do Pai, “tanto na terra como no céu” (v.10). Como qualquer estudioso da Bíblia sabe, as palavras em itálico nas edições da ARC não constam nas cópias dos melhores manuscritos e são inseridas pelos editores para melhorar o sentido no português.16 Na quase totalidade dos casos, esse recurso auxilia, mas o estudioso nunca deve deixar de comparar as versões, pois algumas vezes o recurso pode condicionar a interpretação em um sentido completamente diverso da intenção original. A terceira petição ilustra perfeitamente esse aspecto. Se o versículo for lido tal como se encontra no texto — “Seja feita a tua vontade, tanto na terra como no céu” —, a impressão é que o orante deve suplicar que a vontade de Deus seja feita, não apenas na Terra, mas também no céu quando, na realidade, basta suprimir o “tanto”, para se entender que é justamente o contrário: “Seja feita a tua vontade, na terra como no céu”. A súplica refere-se a pedir que aqui na Terra, onde o livre-arbítrio possibilita agir de forma contrária à vontade de Deus, seja como no céu, onde a vontade de Deus é prevalente. O pedido é justamente para que haja uma convergência e uma identificação tal entre as vontades, tanto humana quanto divina, a ponto de elas se transformarem em uma só. Mas tal simbiose não anularia a vontade humana? E ao orar pedindo algo que não está no plano de Deus, isso não anularia a vontade divina?
Se a oração é realmente uma forma de diálogo entre duas pessoas, é preciso que isso se dê como uma “via de mão-dupla”. Contudo, Deus não é uma “pessoa comum”. Por isso, diz C. S. Lewis, na oração, o “que era passivo torna-se ativo”, isto é, a “mudança está em nós” e isso acontece pelo simples fato de que, em lugar “de sermos apenas conhecidos, nós nos mostramos, nos manifestamos e nos oferecemos à vista”.17 Assim é que, orar pela vinda do Reino é pedir que “se realize aqui, assim como se realiza lá”.18 No entanto, a súplica que pede para que a vontade de Deus seja feita, de acordo com Lewis, não deve ser interpretada como “ato exclusivo de submissão”,19 tal como se pensa que fez Cristo, “passivamente”, no Getsêmani (Mt 26.39,42). A postura de Jesus é a de alguém que toma uma atitude. Por isso, tal “súplica”, diz o mesmo autor, “não significa que eu deva ser mero paciente da vontade divina, mas que devo realizá-la com determinação”. Em outras palavras, preciso “ser agente tanto quanto paciente” e o pedido consiste em suplicar a capacidade de ser assim, ou seja, “Em última análise, peço que me seja dada a mesma mente de Cristo Jesus’”.20 O ponto em que se dá tal encontro entre divino e humano, mas que mantêm a ambos inconfundíveis em suas esferas é o grande mistério ou, nas palavras de Lewis, “o que acontece [em tal] Fronteira, no misterioso ponto de junção e de separação onde o ser absoluto revela o ser derivado”.21 Tal discussão, que parece ser a mesma em que se encrespam deterministas-fatalistas de um lado e os adeptos da livre-escolha de outro, é exemplificada nas palavras do literato irlandês:

Uma tentativa de definir causalmente o que acontece ali culminou com o quebra-cabeça entre graça e livre-arbítrio.
Você verá que a Escritura quase não trata do assunto. “Ponham em ação a salvação de vocês com tremor e temor” [F12.12] — isso é puro pelagianismo. Mas por quê? “Pois é Deus quem efetua em vocês” [F1 2.13] — puro agostinianismo.22 Talvez sejam apenas nossos pressupostos que tornem esse raciocínio paradoxal. Em nosso secularismo, partimos do princípio de que a ação divina e a humana são mutuamente excludentes, tal como as ações de criaturas da mesma espécie, de modo que “Deus fez isto” e “eu fiz aquilo” não podem ambas ser verdades do mesmo ato, exceto no sentido de que cada um teve sua participação.23

Ainda de acordo com a ideia de que o relacionamento entre o divino e o humano é uma via de mão dupla, a posição compatibilista de Lewis, que aventa o que chamei de “coexistência pacífica entre soberania divina e livre- arbítrio” ou “compatibilidade incognoscível”,24 é exemplificada pelo autor de As Crônicas de Nárnia, com a ideia de perdão. A necessidade de tal ato da parte de Deus, “move” a divindade e, “Nesse sentido”, diz ele, “a ação divina é consequência do nosso comportamento, [e] é por ele condicionada e induzida”. Lewis então questiona retoricamente: “Será que isso significa que podemos ‘influenciar’ Deus?” O anglicano acredita que é até possível responder afirmativamente caso se quiser e diz que, se isso for dessa forma, é preciso então que se flexibilize a noção de “impassibilidade” divina, “de forma que admita isso”, aventando a hipótese de que o comportamento humano, de alguma forma, “influencia” o Criador, “pois sabemos que Deus perdoa muito mais do que entendemos o significado de ‘impassível’”. Assim é que, a respeito dessa questão, Lewis diz que prefere “dizer que, antes de existirem todos os mundos, Seu ato providencial e criativo (porque são uma coisa só) leva em conta todas as situações engendradas pelos atos de suas criaturas”. Mas, questiona, “se Deus leva em conta nossos pecados, por que não nossas súplicas?”.25 Isso significa que a oração, a súplica, move a Deus. Numa palavra, “Deus e o homem não se excluem mutuamente, como o homem exclui ao seu semelhante no ponto de junção, por assim dizer, entre Criador e criatura; no ponto em que o mistério da criação
— infinito para Deus e incessante no tempo para nós — ocorre de fato”. Isso significa que, ‘“Deus fez (ou disse) tal coisa’ e eu fiz (ou disse) tal coisa podem ambos ser verdadeiros”.26 Esta, inclusive, é a forma arminiana e pentecostal de crer. A soberania divina coexiste com o livre-arbítrio e qualquer tentativa de explicar como isso ocorre leva a equívocos e discussões desnecessárias.

A Quarta Petição
A quarta petição — “O pão nosso de cada dia, dá-nos hoje” (v.l 1)
— que, à primeira vista, parece ser muito fácil e sem necessidade de maiores desdobramentos, revela-se, contudo, complexa quando se descobre que a expressão grega epiousios (“de cada dia”), de acordo com a Bíblia de Estudo Palavras-Chave, só ocorre “na oração do Senhor” e em nenhuma outra parte do Novo Testamento27 e até nos escritos seculares daquela época.28 Assim, devido à complexidade de tal expressão, a petição pode ter, ao menos, três possíveis significados. Nas palavras de James Shelton:

·         1. Pode ser referência às bodas messiânicas do tempo do fim. O solicitante está pedindo o cumprimento do Reino agora. A consumação do seu Reino resulta em abundância de comida (e.g. Is 55.1,2; 61.1-6).

·         2. O pedido para o suprimento do pão de amanhã não enfraquece necessariamente a impressão de que o discípulo é totalmente dependente de Deus. Ele proveu para hoje, Ele pode prover para amanhã. É provavelmente intencional o paralelo da provisão diária de Deus do maná no deserto. No aspecto prático de uma casa palestina daqueles dias, seria necessária a provisão de comida na véspera para a preparação da mesma para o dia seguinte.
·         3. O pão simboliza todas as necessidades materiais. Em Mateus 6.24-34, Jesus explica a necessidade de depender de Deus para as necessidades básicas. A despeito do intento original da palavra epiousios (diariamente/ amanhã), tanto a aplicação escatológica quanto a vigente estão evidentes no contexto de Mateus.2

De qualquer forma, o fato é que o suplicante confia ao Pai a provisão — em todos os aspectos —, para o seu sustento, seja na área física, seja na esfera espiritual. E nisto, como se verá no próximo capítulo, demonstra mais uma vez que a justiça do Reino não é igual à do mundo, pois o discípulo confia inteiramente no Pai.

A Quinta Petição
“Perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores” (v.12), é uma petição que, por incrível que pareça, não necessita de praticamente nenhuma discussão, pois o discípulo já sabe que, como foi visto na primeira antítese, no capítulo 4, se para quem pretende apresentar uma oferta no Templo e se recorda que o seu irmão tem algo contra si, é necessário que o ofertante primeiramente se reconcilie com ele (Mt 5.23,24), que dirá aos discípulos que foram chamados à justiça superior e, por isso, dirigem-se diretamente ao Pai. Para além da discussão teológica de que haja, ou não, uma subordinação entre o perdão de Deus e o dos discípulos em relação a outros (algo que os versículos 14 e 15 deixam claro e nenhuma margem para dúvida), Cullmann pontua que, uma vez alcançado pelo Evangelho, o discípulo é colocado na esfera, ou dimensão, do “campo de força divino” cuja característica marcante é justamente o perdão. Portanto, “pronunciar a quinta súplica pressupõe, no momento mesmo da oração, que nós nos colocamos na esfera do perdão de Deus e estamos prontos a ali permanecer nela em nossas relações com nossos semelhantes”.30 Não perdoar, de acordo com Cullmann, que coaduna com a Bíblia (w.14,15), equivale a estar fora do “campo de força divino” ou da “esfera do perdão de Deus” e, neste caso, a quinta petição já não faria sentido algum em ser pronunciada.

A Sexta Petição
Finalmente, a última e sexta petição, é uma das mais polêmicas, posto que parece sugerir que Deus, às vezes, induz as pessoas à tentação (v.l3a) ou, no mínimo, a permite. E quando tal acontece, como se pode ver nos exemplos de Jó, no Antigo Testamento, e de Jesus, no Novo Testamento, a tentação parece ser ainda mais terrível. Não obstante, por esses mesmos exemplos, é possível perceber que existe um propósito e uma intencionalidade em tais tentações. Assim, Cullmann, em vez de recorrer ao texto de Tiago 1.13 e evitar a dificuldade, enfrenta a questão colocada pela sexta petição nos dizendo que a exortação dirigida por Jesus aos seus discípulos no Getsêmani, de orarem para que não caíssem em tentação, tem em primeiro lugar por objetivo que eles sejam preservados de sucumbir na tentação iminente, mas que, em relação com a oração do próprio Jesus a que “o cálice passasse ao longe”, a súplica para que fosse poupado da tentação não está inteiramente ausente. Pois a oração pela qual Jesus exorta os discípulos implica também a vontade de que os eventos dolorosos absolutamente não acontecessem. Com efeito, por causa da fraqueza humana dos discípulos, que Jesus conhecia, estes eventos se tornam por si mesmos para eles uma tentação fugir e renegar a seu mestre. — A própria súplica para que se seja poupado da tentação não deve, pois, ser excluída inteiramente da oração dos discípulos no Getsêmani, se bem que ela entre em consideração somente em segundo lugar.
— No Pai Nosso, por outro lado, a súplica para que se seja poupado da tentação se encontra, de maneira inversa, em primeiro plano, e isso em relação com a submissão, requerida para toda oração, à vontade de Deus, que pode recusá-la, mesmo que nossa súplica chegue com a adição “livrai-nos do mal”, que, em sua fórmula geral, implica também a súplica pelo sustento na tentação.

O que se quer ensinar com a sexta petição é que o discípulo, humildemente, peça a Deus que não o introduza na tentação e o livre do mal, ou seja, havendo o temor a respeito de uma tentação específica (cada um sabe de sua inclinação ou fraqueza), o Mestre instrui que “temos o direito de orar para que nossa união com Deus, a qual buscamos em cada oração, seja tão estreita que esta precisa [específica] tentação permaneça longe de nós, mesmo se o fato de que sejamos tentados faça parte do plano de Deus”.32 Essa confiança filial, que Jesus possuía e ao ensinar aos discípulos a chamar Deus de Pai também autorizou-os a ter, deve ser a base para a sexta súplica. Shelton diz que os discípulos devem “orar por livramento ou salvamento oportuno da possibilidade da tentação pelo ‘mal’ ou ‘o Diabo”’, pois tal “atitude humilde foi apresentada anteriormente em duas das bem-aventuranças” (as de número um e cinco) e, por isso mesmo, continua o mesmo autor, “os discípulos percebem que a vontade e a perseverança são pequenas e que estão desesperadamente carentes da fortificação de Deus”.33 Só esse reconhecimento já leva o discípulo a uma atitude diferente diante de Deus, pois sua alegria e o ser abençoado não dependem das circunstâncias. É lícito pedir ao Pai que o livre da tentação, no entanto, se esta for inevitável, é orando que se obterá forças para vencê-la.

A Doxologia
Quanto ao final do Pai-Nosso — “porque teu é o Reino, e o poder, e a glória para sempre. Amém!” (v.13) —, Shelton diz, sem meias palavras, que tal parte “não é achada nas cópias mais antigas e melhores de Mateus, nem se encontra na maioria dos manuscritos do paralelo em Lucas”. O mesmo autor ainda acrescenta que “Sua forma litúrgica apareceu nas cópias gregas mais tardias de Mateus, sendo incorporada em nossas versões”.34 A despeito disso, ela em nada ofende o ensino geral das Escrituras, dos ensinamentos de Jesus e muito menos da própria oração do Pai-Nosso.
Uma das lições mais poderosas que o estudo da oração no contexto do Novo Testamento deixa é o fato de que, conforme instrui Cullmann, até mesmo “as orações não atendidas também são desejadas por Deus, quando elas incluem a disposição de se unir a Sua vontade”.35 Isso porque, como lembra C. S. Lewis, até Jesus Cristo, “no Getsêmani, dirigiu uma súplica a Deus (não obteve o que pediu)”.36 E por ter tal humanidade, Jesus é referência perpétua dos discípulos. Quem, entre nós, se soubesse desde o início que não seria atendido, mesmo assim oraria e aceitaria, resignado, a vontade de Deus? Essa atitude também é parte da terceira petição.


Fonte deste: Retirado
O Sermão do Monte
A Justiça sob a Ótica de Jesus
Autor: César Moisés Carvalho


quarta-feira, 3 de maio de 2017

(Subsídio Teológico Lição 6/ 2º Trim 2017) JÔNATAS: UM EXEMPLO DE LEALDADE


Jônatas, o filho mais velho de Saul, entrou para a história à sombra do pai, mas pouca coisa herdou de seu genitor. Ele demonstrou ser um jovem guerreiro, cheio de coragem e determinação. E, aliada à sua coragem, logo afloraram sua humildade, sua fé e obediência a Deus. Os fatos analisados neste capítulo indicam ser Jônatas possuidor de um caráter bem diferente do de seu pai. Sua amizade por Davi não foi fruto de um conhecimento familiar ou de amizade de longa data. A amizade entre eles nasceu de forma inesperada, quando o príncipe assistiu de perto a grande vitória do jovem pastor de ovelhas sobre o imbatível gigante Golias, o campeão dos filisteus, que desafiava os exércitos israelitas e afrontava o nome do Senhor dos Exércitos.
         Foi então que, após a grande vitória, Jônatas, que assistia ao duelo ao lado de Saul, teve grande admiração por Davi e aliou-se a ele com uma amizade verdadeira e sincera, tornando-se seu melhor amigo. Essa amizade, porém, tornou-se motivo de ciúme por parte do pai, que passou a ver em Davi a maior ameaça a seu reino, com apoio do próprio filho. A desconfiança transformou-se em ódio, e Saul fez tudo para matar Davi.
         Entretanto, Jônatas, jovem temente a Deus, viu em Davi um homem talhado para ser o futuro rei de Israel. Contrariando a visão carnal e diabólica do pai, Jônatas fez “aliança do Senhor” com Davi, confiando que Deus tinha o controle da história. Sua lealdade foi demonstrada em todas as ocasiões até o último dia em que se encontraram pela última vez antes da morte de Jônatas. Ocasião esta em que Davi fez um grave lamento, relembrando o amor fraternal e caloroso do seu amigo.

I - CIRCUNSTÂNCIAS QUE UNIRAM JÔNATAS E DAVI

1. Quem Era Jônatas
         Era o filho mais velho do rei Saul. Seu nome significa “dado por Deus” ou “presente de Deus”. Era um jovem guerreiro que participava das batalhas contra os inimigos de Israel, nas quais seu pai era envolvido. Certamente, assim como acontecia com os primogênitos, Saul sonhava em preparar seu filho para ser seu substituto no trono quando chegasse a ocasião oportuna. Ele tinha todas as condições para ser um príncipe e substituto de seu pai: era valente e hábil no combate. Sua bravura já fora provada quando, em Micmás, ele derrotou toda uma guarnição dos filisteus, contando apenas com a ajuda de seu fiel escudeiro, colocando sua fé em ação (1 Sm 14.1-14). Entretanto, por direção de Deus, os rumos da história de Saul e de seu filho foram mudados completamente, e isso ocorreu de forma surpreendente.

2. Uma Batalha que Mudou a História
         Israel estava no campo de batalha contra os filisteus, num monte, “no vale do carvalho”, e os filisteus estavam do lado oposto do vale, também sobre um monte (1 Sm 17.1-3). A batalha tomou um rumo inesperado. Do lado dos filisteus, levantou-se Golias, um guerreiro de quase 3 metros de altura. Devidamente bem equipado, o gigante filisteu era imbatível num combate individual. Armado com lança, espada, escudo, couraça e capacete de bronze, além de auxiliado por um escudeiro, ninguém estaria mais bem preparado para a guerra. E o filisteu desafiava os exércitos de Israel, clamando, em tom arrogante, que fosse enviado um homem para lutar contra ele. Caso fosse derrotado, Israel seria vencedor, e seu povo subjugado. Se vencesse, Israel deveria entregar-se em servidão. Seu desafio era intimidador: “Disse mais o filisteu: Hoje, desafio as companhias de Israel, dizendo: Dai-me um homem, para que ambos pelejemos. Ouvindo, então, Saul e todo o Israel essas palavras do filisteu, espantaram-se e temeram muito” (1 Sm 17.10,11). Ninguém tinha coragem de enfrentar o gigante Golias. O clima de medo prenunciava a provável derrota de Israel.

II - UMA AMIZADE APROVADA POR DEUS

1. Jônatas Torna-se Amigo de Davi
         A atuação corajosa de Davi na batalha contra Golias impressionou a todos os combatentes de Israel. O povo de Israel jubilou diante da tremenda vitória. Saul ficou estupefato e mandou Abner, o chefe do exército, chamar Davi, que levou a cabeça do filisteu como troféu da batalha inusitada (1 Sm 17.52-58). Porém Jônatas, filho de Saul, foi quem mais foi tocado em suas emoções e sentimentos fraternos em relação ao jovem pastor, que derrotou o gigante com o uso de uma simples funda e um tiro de pedra. De imediato, aquela admiração despertou em Jônatas um sentimento de amizade e de amor fraternal que haveria de marcar para sempre a história dos dois personagens que sequer se conheciam antes. Deus tem seus caminhos e, quando Ele quer, cria ou muda circunstâncias conforme seus propósitos soberanos.

2. Uma Amizade Fiel e Duradoura
         Logo após a batalha desigual contra Golias, todos se aproximavam e admiravam Davi. E foi naquele momento que começou a amizade especial entre Jônatas e o jovem pastor de ovelhas. A Bíblia registra com expressão tocante os sentimentos fraternos de Jônatas por Davi. Diz o texto bíblico: “E Sucedeu que, acabando ele de falar com Saul, a alma de Jônatas se ligou com a alma de Davi; e Jônatas o amou como à sua própria alma” (1 Sm 18.1). Saul tomou Davi para viver no palácio e não permitiu ele voltar para sua casa em Belém. Mais uma vez, a Bíblia indica a profunda admiração de Jônatas, dizendo: “E Jônatas e Davi fizeram aliança; porque Jônatas o amava como à sua própria alma. E Jônatas se despojou da capa que trazia sobre si e a deu a Davi, como também as suas vestes, até a sua espada, e o seu arco, e o seu cinto” (1 Sm 18.3,4). Essas expressões significam que Jônatas não só admirava grandemente a coragem e audácia de Davi, como também sentiu no seu íntimo que deveria nutrir por ele profunda amizade fraternal.

3. Uma Aliança do Senhor
         Grupos homossexuais procuram distorcer o sentido desse texto em que a Bíblia diz que Jônatas fez aliança com Davi, porque “o amava como à sua própria alma” e entregou a Davi suas vestes e equipamentos de combate (1 Sm 18.3,4); e fazem-no de forma desonesta e tendenciosa, afirmando que Jônatas sentiu atração sexual por Davi e que os dois deram início a uma relação homoafetiva. Nada é mais incoerente com a verdade bíblica. Jônatas era casado e pai de um filho, cujo nome era Mefibosete (2 Sm 4.4). Em nenhum texto da Bíblia, é dito que Jônatas desobedeceu a Deus e à sua Lei. Ele sabia que, se fosse homossexual, estaria cometendo “abominação ao Senhor” e sofreria a pena de morte (Lv 18.22; 20.13).1 O fato de Jônatas despojar-se de suas vestes, de sua espada, de seu arco e de seu cinto indica que ele consciente e amorosamente transferiu o direito ao trono a seu amigo Davi.
         Na verdade, aquela amizade calorosa foi inspirada por Deus, pois Jônatas havería de ser, tempos depois, o amigo que livraria Davi da sanha ciumenta e sanguinária de Saul. Eles fizeram uma aliança aprovada por Deus, e não uma parceria abominável aos olhos do Senhor: “E Jônatas e Davi fizeram aliança; porque Jônatas o amava como à sua própria alma” (1 Sm 18.3). Mais tarde, eles confirmaram-na como uma “aliança do Senhor”: “Usa, pois, de misericórdia com o teu servo, porque fizeste a teu servo entrar contigo em aliança do Senhor [...]” (1 Sm 20.8a). Esses grupos que vivem na prática de abominações valem-se da declaração de Davi quando da morte de Jônatas para reforçar seus argumentos maliciosos.
         Ao saber da morte do amigo, Davi fez um lamento de grande emoção e tristeza ao lado de seu pai: “Angustiado estou por ti, meu irmão Jônatas; quão amabilíssimo me eras! Mais maravilhoso me era o teu amor do que o amor das mulheres” (2 Sm 1.26). Tal afirmação revela que o amor fraternal entre eles tinha um sentido espiritual e emocional tão profundo que superava até mesmo o amor das mulheres. Jamais Jônatas e Davi, que fizeram “aliança do Senhor”, poderíam viver na prática do que o Senhor chama de atos abomináveis (Lv 18.22; 20.13). Somente a má-fé de quem usa a Palavra de Deus para justificar seus pecados pode afirmar que os dois amigos eram homossexuais.

III - O CARÁTER DE JÔNATAS E SUAS LIÇÕES
         Há um ditado que diz: “Tal pai, tal filho”, sugerindo que os filhos tendem a demonstrar o mesmo comportamento de seus pais. Mas tal entendimento não pode ser generalizado, e o exemplo de Jônatas é prova disso. Seu caráter era praticamente oposto ao de seu pai. Vejamos alguns aspectos do caráter de Jônatas.

1. Um Homem de Coragem
         Saul era um homem inseguro e medroso. Jônatas não herdou e muito menos desenvolveu esse traço da personalidade do pai, pois ele era corajoso. Em Micmás, ele lutou contra a guarnição dos filisteus com seu pajem de armas e derrotou-os, pois confiara em Deus. Sua coragem, porém, não era apenas física e emocional. Ele também tinha grandeza espiritual que lhe dava confiança diante das adversidades (1 Sm 14.1-4). Jônatas revelou firmeza diante dos inimigos, pois poderia ter recuado, mas lutou bravamente e venceu — uma grande lição para quem quer ser vencedor: não se desanimar nem se amedrontar diante das adversidades. O crente fiel deve ter em mente que é Deus quem dá a vitória. O indispensável é ter a convicção de que se está no centro da vontade de Deus (Sl 144.10; 1 Co 15.57).

2. Um Homem Humilde
         Sua coragem moral fê-lo não ter medo de perder para Davi a posição de herdeiro do trono. Jônatas soube reconhecer que seu amigo tinha a direção de Deus, bem como as condições humanas para substituir Saul no cargo de monarca de Israel (1 Sm 16.1,12,13) — um exemplo para os dias de hoje. Há, em igrejas evangélicas, muitos que brigam por cargos e posições, agindo, muitas vezes, com métodos carnais, seguindo o exemplo dos ímpios. Trata-se de obreiros carnais dominados por “torpe ganância” (1 Tm 3.3). Humildade é uma qualidade que só os que têm grandeza de alma possuem, e Deus agrada-se dos humildes. Pedro diz: “Humilhai-vos, pois, debaixo da potente mão de Deus, para que, a seu tempo, vos exalte” (1 Pe 5.6).

3. Um Homem Leal
         A amizade de Jônatas para com Davi revelou-se mais firme e leal a cada dia. Quanto mais Deus abençoava Davi dando-lhe sucessivas vitórias no reino de Saul, mais Jônatas afeiçoava-se a ele como amigo e confidente. Os resultados dessa amizade não tardaram a provocar ciúmes no coração de Saul. Jônatas, porém, jamais ficou ao lado do pai quando o mesmo voltou-se contra o seu amigo fiel.
         1) Defendeu Davi perante Saul. Em todas as ocasiões depois que se tornou amigo de Davi, Jônatas demonstrou sua lealdade. Ele era fiel, dedicado e sincero — características próprias de quem é leal. Jônatas podería ter ficado ao lado do seu pai, mas não cedeu aos caprichos de Saul quando este, injustamente, quis eliminar a vida de Davi. Quando soube do plano de Saul para matar Davi, Jônatas procurou o amigo e advertiu-lhe do perigo de morte (1 Sm 19.1-3). Depois, em particular, ele conversou com seu pai e falou bem de Davi, lembrando que Davi colocou sua vida em risco no combate contra Golias, tendo sido motivo de grande livramento para Israel. A princípio, Saul concordou e prometeu não fazer mal a Davi. Mas, depois, instigado por um “espírito mau da parte do Senhor”, ou seja, por permissão de Deus, Saul quis matar Davi quando este tocava sua harpa. “Porém o espírito mau, da parte do Senhor, se tornou sobre Saul, estando ele assentado em sua casa e tendo na mão a sua lança, e tangendo Davi com a mão o instrumento de música” (1 Sm 19.9). Quando um homem sai da vontade do Senhor e desvia-se de seus caminhos, fica vulnerável a todo o tipo de ação do Diabo em sua vida. Jesus disse que seu último estado é pior do que o primeiro: “Quando o espírito imundo tem saído do homem, anda por lugares secos, buscando repouso; e, não o achando, diz: Tornarei para minha casa, de onde saí. E, chegando, acha-a varrida e adornada. Então, vai e leva consigo outros sete espíritos piores do que ele; e, entrando, habitam ali; e o último estado desse homem é pior do que o primeiro” (Lc 11.24-26).
        2) Fuga e aliança diante de Deus. Diante de tão grande ameaça, Davi resolveu escapar, fugindo de Saul, sendo ajudado por Mical, filha de Saul. E acabou indo para Naiote, em Ramá, onde se encontrou com o profeta Samuel, deixando-o ciente dos graves acontecimentos que o envolviam, por causa do ciúme e da maldade de Saul. Sabendo onde encontrar Davi, Saul continuou sua perseguição (1 Sm 19.11-24). Davi foi ao encontro de Jônatas, e ambos analisaram a situação delicada em que ele estava. Ali, fizeram um pacto para o futuro, acordando que Davi faria beneficência à casa de Jônatas, sob juramento eterno (1 Sm 20.11-17). Depois, Jônatas combinou com Davi sobre como havería de alertá-lo em relação às reações de Saul quando este descobrisse que Davi havia fugido. Davi ficou no campo, e Jônatas voltou ao palácio.
        3) Jônatas defende Davi e é ameaçado por Saul. Quando Saul notou a ausência de Davi, inquiriu de Jônatas o que ele já sabia. Jônatas disse que Davi pedira para ir à sua terra para uma reunião da família. Saul ficou encolerizado e demonstrou sua ira e insegurança quanto ao futuro do seu reino, tendo Davi como uma séria ameaça. “Então, se acendeu a ira de Saul contra Jônatas, e disse-lhe: Filho da perversa em rebeldia; não sei eu que tens elegido o filho de Jessé, para vergonha tua e para vergonha da nudez de tua mãe? Porque todos os dias que o filho de Jessé viver sobre a terra nem tu serás firme, nem o teu reino; pelo que envia e traze-mo nesta hora, porque é digno de morte” (1 Sm 20.30,31).
         Naquela ocasião, Jônatas mais uma vez provou sua amizade e lealdade a Davi, defendendo-o ante a cólera do pai: “Então, respondeu Jônatas a Saul, seu pai, e lhe disse: Por que há de ele morrer? Que tem feito? Então, Saul atirou-lhe com a lança, para o ferir; assim, entendeu Jônatas que já seu pai tinha determinado matar a Davi” (1 Sm 20.32,33). Um homem que é dominado pela sede de poder e pelo medo de perder sua posição é um fraco, um tolo que destrói a si próprio e prejudica os que estão a seu redor, a seus familiares, aos amigos e a todos à sua volta. Diz o patriarca Jó: “Porque a ira destrói o louco; e o zelo (ciúme) mata o tolo” (Jó 5.2 - parêntese acrescentado).
        4) Último encontro entre Jônatas e Davi. Diante de tal reação descontrolada e violenta, Jônatas retirou-se e foi avisar a Davi que Saul queria mesmo matá-lo. Quando se encontraram, os dois amigos demonstraram seu amor fraternal profundo. “[...] e beijaram-se um ao outro e choraram juntos, até que Davi chorou muito mais. E disse Jônatas a Davi: Vai-te em paz, porque nós temos jurado ambos em nome do Senhor, dizendo: O Senhor seja perpetuamente entre mim e ti e entre minha semente e a tua semente. Então, se levantou Davi e se foi; e Jônatas entrou na cidade” (1 Sm 20.41-43). Dali em diante, os dois amigos nunca mais se encontraram. Saul continuou perseguindo Davi até ser morto na batalha contra os filisteus na montanha de Gilboa.
Neste mesmo lugar, também foi morto Jônatas ao lado de seu pai. Ao saber da morte trágica de Jônatas, Davi expressou-se em angustiado lamento: “Como caíram os valentes no meio da peleja! Jônatas nos teus altos foi ferido! Angustiado estou por ti, meu irmão Jônatas; quão amabilíssimo me eras! Mais maravilhoso me era o teu-amor do que o amor das mulheres. Como caíram os valentes, e pereceram as armas de guerra!” (2 Sm 1.25-27).
CONCLUSÃO
         Deus usa homens das mais diferentes formas e em meio a circunstâncias que escapam à lógica humana e racional. Jônatas tinha tudo para ser o sucessor do pai segundo as regras sucessórias estabelecidas na Lei e nos costumes da época. Deus, no entanto, não está sujeito às leis nem aos costumes dos povos. Ele estabelece sua vontade diretiva de forma inexorável, contrariando todas as expectativas e previsões históricas ou políticas. Assim, em meio a um grave desafio contra o povo de Israel, levantou o jovem Davi para derrotar o gigante filisteu. Assistindo à extraordinária vitória, Jônatas sentiu profunda admiração pelo jovem pastor de Belém e compreendeu que ele seria o escolhido por Deus. Em lugar de inveja ou ciúme, Jônatas tornou-se o maior e mais leal amigo de Davi.



Fonte :

Livro o Caráter do Cristão
Moldado pela Palavra de Deus e provado como ouro


Elinaldo Renovato de Lima