A
mais conhecida oração do mundo saiu dos lábios do Nosso Senhor Jesus Cristo.
Depois de falar a respeito do segundo ato básico da justiça do judaísmo, o
Mestre instrui os seus discípulos acerca de como se devia orar (v.9). Embora
não tenha sido tratado no capítulo anterior, é importante que, antes de pensar
em uma análise do Pai-Nosso,1 se faça uma digressão a respeito dessa importante
prática cristã, posto que há grandes riscos que cercam a vida devocional. A
parábola do fariseu e do publicano demonstra tal perigo, pois o primeiro não
ora a Deus, mas a si mesmo e aos homens (Lc 18.9-14). A. W. Tozer diz que ao
“orarmos, deveriamos avaliar quem está agindo: o desejo do nosso coração ou o
Espírito Santo”. Sua conclusão caminha no sentido de que, se a “oração tem sua
origem no Espírito, então a luta espiritual pode ser bela e maravilhosa; mas,
se somos vítimas de desejos alimentados em nosso coração, a nossa oração pode
tornar-se tão carnal quanto qualquer outro ato”.2 Isso significa que propósitos
egoístas podem estar escondidos sob uma aparente piedade ritualística. Uma voz
melancólica, chorosa e que parece mais teatral que espontânea, longe de
evidenciar um perfil piedoso, revela a perspectiva enganosa de alguns em
relação a Deus. Não são a mera aparência ou a posição física, a tonalidade ou o
timbre da voz, as palavras ou as expressões faciais que levam a oração a ser
aceitável diante do Senhor, mas a disposição do coração, as intenções e a
motivação com que nos dirigimos a Ele. E é exatamente isso que o Senhor quer
ensinar aos seus discípulos, a oração na perspectiva da justiça superior.
No
tocante às motivações para orar, N. T. Wright afirma que quando “nos detemos
diante de algumas impressionantes promessas do Novo Testamento (‘Se
permanecerdes em mim, e as minhas palavras permanecerem em vós, pedireis o que
quiserdes, e vos será feito’ [Jo 15.7]), descobrimos que elas estão
equilibradas por um estranho fenômeno”. Qual seja, quando “reivindicamos
ousadamente essas promessas, descobrimos que, se formos sinceros, nossos
desejos e esperanças serão suavemente, porém firmemente remodelados, separados
e colocados novamente em ordem”.3 Em outras palavras, nossas prioridades terão
sido colocadas de cabeça para baixo e, como na Oração do Pai-Nosso (Mt 6.9-13),
em vez de petições meramente temporais e transitórias, certamente, desejaremos
o Reino de Deus, a santificação do Nome do Senhor, a vontade soberana e
benfazeja dEle, e somente nos lembraremos de nós mesmos em último lugar.
Se
fôssemos falar sobre o conteúdo, orações “cristãs” que se parecem mais com o
que é praticado no paganismo, “onde”, segundo N. T. Wright, “o ser humano tenta
invocar, apaziguar, adular ou subornar o deus do mar, o deus da guerra, o deus
do rio ou o deus do casamento para obter favores especiais ou evitar perigos
específicos”,4 talvez façam qualquer coisa, menos glorificar ao Senhor. Obviamente
que isso não quer dizer que não se pode pedir algo que se deseja ou suplicar
socorro em momentos de apreensão. Todavia, imaginar Deus como um ser alheio às
nossas motivações (algo que, tudo indica, pesa mais que as palavras, os gestos
e a posição física), diminui-lhe a divindade, pois faz com que um de seus
principais atributos seja negado. “Dizemos”, como afirmou C. S. Lewis, “que
Deus é onisciente; contudo, boa parte de nossas orações parece consistir em
transmitir-lhe informação”.5
Ultimamente
tenho aprendido que o nosso palavrório diante de Deus, “priva-o” de
responder-nos e impede-nos de ouvi-lo. Como pentecostais, aprendemos que a “boa
oração” é a mais barulhenta, altissonante e verborrágica, não obstante, após
fazê-la, é possível que saiamos do ambiente ou que nos levantemos do lugar,
muito mais orgulhosos que humildes, e mais cheios de si que do Espírito. Assim,
reconsidero historicamente a importância do hesicasmo, não como movimento ou
ordem monástica, mas como “prática do silêncio”. Alister McGath, afirma que o
“tema do ‘silêncio’ pode estar relacionado ao tema apofático do mistério de
Deus, isto é, ao reconhecimento de que a linguagem humana nunca será capaz de
fazer jus a Deus”. Tal assunto aponta para a verdade, dita pelo mesmo autor, de
que no lugar de “pronunciar clichês banais, a resposta certa ao confronto com
toda a maravilha de Deus é o silêncio”. E isso por uma razão muito simples:
“Estar em silêncio muitas vezes é condição prévia para a oração eficaz (que
pode ser pensada como ‘ouvir Deus’)”. Esse “silêncio” não significa inércia ou
frieza espiritual, pois antes de qualquer coisa, não se está discutindo o mero
ato de quietude, de afastamento do convívio social, mas o distanciar-se de
“todas as distrações para se concentrar em Deus”.6
Antes
de falar da questão principal da mais famosa oração cristã e de sua relação com
o cerne do Sermão do Monte, diria que a “prática do silêncio” colocada por
McGrath leva-nos a pensar o quanto os afazeres e o corre-corre das obrigações
diárias, quando não nos priva de orar, conseguem tirar a nossa concentração no
momento de falar com Deus. Para C. S. Lewis, o grande problema não está
especificamente na falta de atenção, mas no que ele chama de “oração como
dever”: “Ora, o que incomoda não é o simples fato de cumprirmos o dever de orar
às pressas e de qualquer jeito. O que incomoda de verdade é o fato puro e
simples de a oração ser contada entre os deveres”. Essa percepção, segundo
Lewis, não indica que estamos fazendo algo para o que não fomos criados, antes,
demonstra que se “fôssemos perfeitos, a oração não seria um dever, mas
deleite”. Assim, as dificuldades enfrentadas no período da oração ou nos
momentos que o antecedem demonstram apenas que “justo as atividades para as
quais fomos criados são, enquanto vivemos na Terra, impedidas de várias
maneiras: pelo mau em nós mesmos e nos outros. Não praticá-las é abandonar
nossa humanidade. Praticá-las com naturalidade e prazer ainda não é possível.
Essa situação cria a categoria do dever, todo o reino do especificamente
moral’.7 Mas chegará o dia em que orar não mais será um dever, e tudo o que
aqui se vive em perspectiva, será efetivamente real (1 Co 13.12), e a oração se
transformará em relacionamento sólido e verdadeiro com Deus Pai, Deus Filho e
Deus Espírito Santo. Até lá, porém, deve-se praticar o dever de orar, buscando
sempre o auxílio do Espírito Santo — real e verdadeiro Intercessor (Rm 8.26) —
fazendo com que o antegozo daqui, supra momentaneamente a necessidade que
somente se satisfará de maneira plena quando o Reino de Deus for instaurado por
completo.
Assim,
acredito que esta seja uma oportunidade única para se refletir o quão distinta
é a perspectiva divina da oração em relação ao que se acha dela. Para grande
parte dos cristãos, influenciada pelo pragmatismo, a oração parece ser uma
ferramenta ou uma técnica capaz de fazer com que Deus obedeça às suas ordens ou
desejos egoístas. Não acredito em nenhuma “teoria infalível” que pretenda ser
uma “receita de bolo” para ensinar os cristãos a “saquearem o céu”. Esse tipo
de incentivo ao que pretende ser “oração” se parece mais com egoísmo,
existencialismo ou qualquer outra postura filosófica desse ou de qualquer outro
tempo, mas nada tem com o que as Escrituras apresentam (se não de maneira
normativa, ao menos, descritiva), em termos de relacionamento com o Eterno —
algo que, de minha parte, define a essência do ato de orar.
O
entendimento corrente que reduz a oração ao mero ato de pedir, torna-se
inviável diante da atitude de Jesus Cristo para com ela. Várias passagens dos
Evangelhos informam que o Senhor retirava-se para orar (Mt 14.23; 26.36,39,44;
Mc 6.46; Lc 6.12; 9.28). A despeito das discussões acerca da kenosis, o Senhor
não deixou de ser Deus por encarnar-se, mas optou momentaneamente pelo estado
de limitação humana, se autoprivando da imunidade, e sendo vulnerável a todas
as demais limitações comuns aos mortais. Ao refletir sobre a inegável verdade
de que Jesus Cristo é Deus, raramente se reflete sobre a questão de o porquê de
Ele orar. Se Cristo era e é Deus, existe necessidade de Deus orar? Rapidamente
alguém responderá que na condição humana Ele precisava de Deus. Bem isso
desconstruiria a verdade de que Ele apenas esvaziou-se, mas não deixou de ser
Deus. A grande lição é que, como já foi dito, a perspectiva divina acerca da
oração é diametralmente oposta à nossa. Refletir acerca desse exemplo por parte
do nosso Salvador destrói qualquer postura utilitarista a respeito da oração.
Jesus Cristo não precisava orar, mas assim procedia pelo fato de que se
relacionar com o Pai é algo da própria natureza de sua divindade. Por outro
lado, a perspectiva divina de petição pode ser vista com clareza através da
composição do Pai-Nosso, com suas seis petições8 que, juntamente com os demais
elementos dessa oração, serão analisadas de modo sucinto.
“Pai
Nosso"
Acerca
da primeira frase do Pai-Nosso, informa-nos Agostinho que, em toda a Bíblia,
“não se encontra um só lugar em que se ordene ao povo de Israel que diga Pai
nosso ou que ore a Deus Pai, e isso porque o Senhor se manifestou àquele povo
como a servidores, ou seja, como a quem vivia ainda segundo a carne”.9 A oração
traz, portanto, essa primeira grande inovação, que é o fato de um indivíduo
dirigir-se a Deus como “Pai” (v.9). Ninguém ousara dirigir- se de forma tão
pessoal a Deus. Jesus assim se dirigia e não somente ensinou aos discípulos,
mas lhes deu tal direito (Jo 1.12). Apesar de “estar” no céu, o invocamos como
Pai e sentimos sua proximidade, pois, parafraseando Agostinho, Deus “está mais
dentro de nós do que nossa parte mais íntima”.10
A
Primeira Petição
Há
muito se discute se o pedido da primeira súplica — “santificado seja o teu
nome” (v.9b) — deve ser atendido por Deus, a quem se ora e cujo caráter é
indiscutivelmente santo, ou pelo próprio orante. Uma vez que, como é sabido, em
toda a Bíblia o nome define aquele que é chamado, e visto que o “nome” de Deus
revelado por Jesus Cristo no Sermão do Monte é “Pai”, Marcei Dumais diz que tal
súplica poderia ser traduzida como ‘“Faz-te reconhecer como Pai”’ e, continua o
mesmo autor, levando “em conta toda a riqueza de sentido da imagem do Pai no
SM, pode-se parafrasear: Que todos consigam reconhecer que têm um Pai, que está
na fonte de seu ser, que quer o bem e o crescimento de todos e que convida cada
um a colocar-se diante dele como filho ou filha”.11 Será que é realmente isso
que se quer quando, ao orar, o orante dirige-se a Deus como “Pai”?
A
Segunda Petição
A
segunda súplica é a mais teológica de todas. Qual o sentido de se pedir pela
“vinda” de um Reino que já “veio”? Aqui, torna-se evidente a importância do
conceito de Reino de Deus como “já” e “ainda não”, desenvolvido por Oscar
Cullmann e já mencionado no capítulo 3, inclusive por autores pentecostais. O
Reino de Deus está presente, mas'também “espera” sua “realização final”.
Corretamente falando, a opção por essa forma de explicação do discurso de Jesus
acerca do Reino de Deus não se trata de simples preferência teológica ou coisa
que o valha; é exatamente o oposto. A posição culmanniana honra as Escrituras e
demonstra a coerência no discurso de Jesus, que disse ambas as coisas: O Reino
de Deus está, mas não ainda completamente (Lc 10.9,11; 17.20,21; 21.31; Mt
6.10)! Em vez de enfurnar-se em um malabarismo hermenêutico que nada explica,
Cullmann demonstra através de uma teologia da História como, em Jesus, o tempo
é dividido de uma nova maneira. Caso se queira resolver o assunto de forma
semântica ou “histórico-gramatical”, segundo o autor, o próprio conceito remete
ao entendimento desenvolvido anteriormente em sua obra Cristo e o Tempo:
O
termo grego basileia pode ser compreendido de maneira estática, como um lugar,
ou dinâmica, como um reino, ou seja, o exercício da soberania real. No
judaísmo, esses dois significados são encontrados, mas o segundo aparece bem
mais frequentemente. Nas palavras de Jesus, se encontra um quase tão
frequentemente quanto o outro. Quando em Mt 7.21, por exemplo, a questão é a
“entrada no Reino dos Céus”, ou em Mt 8.11 do “banquete no Reino de Deus”,
trata-se da concepção espacial. Por outro lado, o anúncio de que o Reino de
Deus está próximo (Mc 1.15; Mt 4.17) e que já veio (Mt 12.28; Lc 11.20) se
relaciona antes ao governo real de Deus. Quando no Pai Nosso se ora para que
venha o basileia, sem dúvida, pode-se pensar também, em primeiro lugar, neste
último sentido. O exercício da soberania de Deus no céu, em seu Reino, deve se
tornar realidade em todos os lugares, sobre a terra, também.12
Em
resposta a tensão entre o “já” e o “ainda não” presente na segunda petição do
Pai-Nosso, em A Oração no Novo Testamento, sugere Cullmann que “quando os
cristãos oram: ‘Venha o teu Reino’, eles pronunciam essa oração com o judaísmo;
todavia, seguindo Jesus, eles oram para que se concretize um Reino que, com
ele, já chegou”.13 À luz dessa perspectiva, é perfeitamente aceitável e
prudente que em lugar de “quando?”, se pense em “o quê?” Dessa forma, seguindo
o raciocínio de Cullmann, de “maneira tanto mais fervorosa devemos orar,
enquanto discípulos de Jesus, ‘Venha o teu Reino’, e, assim fazendo, pensar
também sobre o nosso dever ético”.14 Aqui, faço minhas as palavras de Giuseppe
Barbaglio, quando ele afirma que a chave hermenêutica de todo o discurso
escatológico de Mateus 24 e 25 “é um olhar profético sobre o futuro visando
fundar escatologicamente uma ética atual para a Igreja”.15 Em outras palavras,
a expectativa do futuro deve provocar reações positivas no tempo presente.
Está, pois, claro que o Reino de Deus não dependeu de militância humana para
ser iniciado, e muito menos precisa ou precisará dela para sua instauração definitiva
ou final. Essa afirmação, porém, remete o assunto para outro aspecto
imprescindível na tematização do Reino de Deus, presente na terceira petição do
Pai-Nosso.
A
Terceira Petição
A
terceira petição suplica que seja feita a vontade do Pai, “tanto na terra como
no céu” (v.10). Como qualquer estudioso da Bíblia sabe, as palavras em itálico
nas edições da ARC não constam nas cópias dos melhores manuscritos e são
inseridas pelos editores para melhorar o sentido no português.16 Na quase
totalidade dos casos, esse recurso auxilia, mas o estudioso nunca deve deixar
de comparar as versões, pois algumas vezes o recurso pode condicionar a
interpretação em um sentido completamente diverso da intenção original. A
terceira petição ilustra perfeitamente esse aspecto. Se o versículo for lido
tal como se encontra no texto — “Seja feita a tua vontade, tanto na terra como
no céu” —, a impressão é que o orante deve suplicar que a vontade de Deus seja
feita, não apenas na Terra, mas também no céu quando, na realidade, basta
suprimir o “tanto”, para se entender que é justamente o contrário: “Seja feita
a tua vontade, na terra como no céu”. A súplica refere-se a pedir que aqui na
Terra, onde o livre-arbítrio possibilita agir de forma contrária à vontade de
Deus, seja como no céu, onde a vontade de Deus é prevalente. O pedido é
justamente para que haja uma convergência e uma identificação tal entre as
vontades, tanto humana quanto divina, a ponto de elas se transformarem em uma
só. Mas tal simbiose não anularia a vontade humana? E ao orar pedindo algo que
não está no plano de Deus, isso não anularia a vontade divina?
Se
a oração é realmente uma forma de diálogo entre duas pessoas, é preciso que
isso se dê como uma “via de mão-dupla”. Contudo, Deus não é uma “pessoa comum”.
Por isso, diz C. S. Lewis, na oração, o “que era passivo torna-se ativo”, isto
é, a “mudança está em nós” e isso acontece pelo simples fato de que, em lugar
“de sermos apenas conhecidos, nós nos mostramos, nos manifestamos e nos
oferecemos à vista”.17 Assim é que, orar pela vinda do Reino é pedir que “se
realize aqui, assim como se realiza lá”.18 No entanto, a súplica que pede para
que a vontade de Deus seja feita, de acordo com Lewis, não deve ser
interpretada como “ato exclusivo de submissão”,19 tal como se pensa que fez
Cristo, “passivamente”, no Getsêmani (Mt 26.39,42). A postura de Jesus é a de
alguém que toma uma atitude. Por isso, tal “súplica”, diz o mesmo autor, “não
significa que eu deva ser mero paciente da vontade divina, mas que devo
realizá-la com determinação”. Em outras palavras, preciso “ser agente tanto
quanto paciente” e o pedido consiste em suplicar a capacidade de ser assim, ou
seja, “Em última análise, peço que me seja dada a mesma mente de Cristo
Jesus’”.20 O ponto em que se dá tal encontro entre divino e humano, mas que
mantêm a ambos inconfundíveis em suas esferas é o grande mistério ou, nas
palavras de Lewis, “o que acontece [em tal] Fronteira, no misterioso ponto de
junção e de separação onde o ser absoluto revela o ser derivado”.21 Tal
discussão, que parece ser a mesma em que se encrespam deterministas-fatalistas
de um lado e os adeptos da livre-escolha de outro, é exemplificada nas palavras
do literato irlandês:
Uma
tentativa de definir causalmente o que acontece ali culminou com o quebra-cabeça
entre graça e livre-arbítrio.
Você
verá que a Escritura quase não trata do assunto. “Ponham em ação a salvação de
vocês com tremor e temor” [F12.12] — isso é puro pelagianismo. Mas por quê?
“Pois é Deus quem efetua em vocês” [F1 2.13] — puro agostinianismo.22 Talvez
sejam apenas nossos pressupostos que tornem esse raciocínio paradoxal. Em nosso
secularismo, partimos do princípio de que a ação divina e a humana são
mutuamente excludentes, tal como as ações de criaturas da mesma espécie, de modo
que “Deus fez isto” e “eu fiz aquilo” não podem ambas ser verdades do mesmo
ato, exceto no sentido de que cada um teve sua participação.23
Ainda
de acordo com a ideia de que o relacionamento entre o divino e o humano é uma
via de mão dupla, a posição compatibilista de Lewis, que aventa o que chamei de
“coexistência pacífica entre soberania divina e livre- arbítrio” ou
“compatibilidade incognoscível”,24 é exemplificada pelo autor de As Crônicas de
Nárnia, com a ideia de perdão. A necessidade de tal ato da parte de Deus,
“move” a divindade e, “Nesse sentido”, diz ele, “a ação divina é consequência
do nosso comportamento, [e] é por ele condicionada e induzida”. Lewis então
questiona retoricamente: “Será que isso significa que podemos ‘influenciar’
Deus?” O anglicano acredita que é até possível responder afirmativamente caso
se quiser e diz que, se isso for dessa forma, é preciso então que se
flexibilize a noção de “impassibilidade” divina, “de forma que admita isso”,
aventando a hipótese de que o comportamento humano, de alguma forma,
“influencia” o Criador, “pois sabemos que Deus perdoa muito mais do que
entendemos o significado de ‘impassível’”. Assim é que, a respeito dessa
questão, Lewis diz que prefere “dizer que, antes de existirem todos os mundos,
Seu ato providencial e criativo (porque são uma coisa só) leva em conta todas
as situações engendradas pelos atos de suas criaturas”. Mas, questiona, “se
Deus leva em conta nossos pecados, por que não nossas súplicas?”.25 Isso
significa que a oração, a súplica, move a Deus. Numa palavra, “Deus e o homem
não se excluem mutuamente, como o homem exclui ao seu semelhante no ponto de
junção, por assim dizer, entre Criador e criatura; no ponto em que o mistério
da criação
—
infinito para Deus e incessante no tempo para nós — ocorre de fato”. Isso
significa que, ‘“Deus fez (ou disse) tal coisa’ e eu fiz (ou disse) tal coisa
podem ambos ser verdadeiros”.26 Esta, inclusive, é a forma arminiana e
pentecostal de crer. A soberania divina coexiste com o livre-arbítrio e qualquer
tentativa de explicar como isso ocorre leva a equívocos e discussões
desnecessárias.
A
Quarta Petição
A
quarta petição — “O pão nosso de cada dia, dá-nos hoje” (v.l 1)
—
que, à primeira vista, parece ser muito fácil e sem necessidade de maiores
desdobramentos, revela-se, contudo, complexa quando se descobre que a expressão
grega epiousios (“de cada dia”), de acordo com a Bíblia de Estudo
Palavras-Chave, só ocorre “na oração do Senhor” e em nenhuma outra parte do
Novo Testamento27 e até nos escritos seculares daquela época.28 Assim, devido à
complexidade de tal expressão, a petição pode ter, ao menos, três possíveis
significados. Nas palavras de James Shelton:
· 1.
Pode ser referência às bodas messiânicas do tempo do fim. O solicitante está pedindo
o cumprimento do Reino agora. A consumação do seu Reino resulta em abundância
de comida (e.g. Is 55.1,2; 61.1-6).
· 2.
O pedido para o suprimento do pão de amanhã não enfraquece necessariamente a
impressão de que o discípulo é totalmente dependente de Deus. Ele proveu para
hoje, Ele pode prover para amanhã. É provavelmente intencional o paralelo da
provisão diária de Deus do maná no deserto. No aspecto prático de uma casa
palestina daqueles dias, seria necessária a provisão de comida na véspera para
a preparação da mesma para o dia seguinte.
· 3.
O pão simboliza todas as necessidades materiais. Em Mateus 6.24-34, Jesus
explica a necessidade de depender de Deus para as necessidades básicas. A
despeito do intento original da palavra epiousios (diariamente/ amanhã), tanto
a aplicação escatológica quanto a vigente estão evidentes no contexto de
Mateus.2
De
qualquer forma, o fato é que o suplicante confia ao Pai a provisão — em todos
os aspectos —, para o seu sustento, seja na área física, seja na esfera
espiritual. E nisto, como se verá no próximo capítulo, demonstra mais uma vez
que a justiça do Reino não é igual à do mundo, pois o discípulo confia
inteiramente no Pai.
A
Quinta Petição
“Perdoa-nos
as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores” (v.12), é uma
petição que, por incrível que pareça, não necessita de praticamente nenhuma
discussão, pois o discípulo já sabe que, como foi visto na primeira antítese,
no capítulo 4, se para quem pretende apresentar uma oferta no Templo e se
recorda que o seu irmão tem algo contra si, é necessário que o ofertante
primeiramente se reconcilie com ele (Mt 5.23,24), que dirá aos discípulos que
foram chamados à justiça superior e, por isso, dirigem-se diretamente ao Pai.
Para além da discussão teológica de que haja, ou não, uma subordinação entre o
perdão de Deus e o dos discípulos em relação a outros (algo que os versículos
14 e 15 deixam claro e nenhuma margem para dúvida), Cullmann pontua que, uma
vez alcançado pelo Evangelho, o discípulo é colocado na esfera, ou dimensão, do
“campo de força divino” cuja característica marcante é justamente o perdão.
Portanto, “pronunciar a quinta súplica pressupõe, no momento mesmo da oração,
que nós nos colocamos na esfera do perdão de Deus e estamos prontos a ali
permanecer nela em nossas relações com nossos semelhantes”.30 Não perdoar, de
acordo com Cullmann, que coaduna com a Bíblia (w.14,15), equivale a estar fora
do “campo de força divino” ou da “esfera do perdão de Deus” e, neste caso, a
quinta petição já não faria sentido algum em ser pronunciada.
A
Sexta Petição
Finalmente,
a última e sexta petição, é uma das mais polêmicas, posto que parece sugerir
que Deus, às vezes, induz as pessoas à tentação (v.l3a) ou, no mínimo, a
permite. E quando tal acontece, como se pode ver nos exemplos de Jó, no Antigo
Testamento, e de Jesus, no Novo Testamento, a tentação parece ser ainda mais
terrível. Não obstante, por esses mesmos exemplos, é possível perceber que
existe um propósito e uma intencionalidade em tais tentações. Assim, Cullmann,
em vez de recorrer ao texto de Tiago 1.13 e evitar a dificuldade, enfrenta a
questão colocada pela sexta petição nos dizendo que a exortação dirigida por
Jesus aos seus discípulos no Getsêmani, de orarem para que não caíssem em
tentação, tem em primeiro lugar por objetivo que eles sejam preservados de
sucumbir na tentação iminente, mas que, em relação com a oração do próprio
Jesus a que “o cálice passasse ao longe”, a súplica para que fosse poupado da
tentação não está inteiramente ausente. Pois a oração pela qual Jesus exorta os
discípulos implica também a vontade de que os eventos dolorosos absolutamente
não acontecessem. Com efeito, por causa da fraqueza humana dos discípulos, que
Jesus conhecia, estes eventos se tornam por si mesmos para eles uma tentação
fugir e renegar a seu mestre. — A própria súplica para que se seja poupado da
tentação não deve, pois, ser excluída inteiramente da oração dos discípulos no
Getsêmani, se bem que ela entre em consideração somente em segundo lugar.
—
No Pai Nosso, por outro lado, a súplica para que se seja poupado da tentação se
encontra, de maneira inversa, em primeiro plano, e isso em relação com a
submissão, requerida para toda oração, à vontade de Deus, que pode recusá-la,
mesmo que nossa súplica chegue com a adição “livrai-nos do mal”, que, em sua
fórmula geral, implica também a súplica pelo sustento na tentação.
O
que se quer ensinar com a sexta petição é que o discípulo, humildemente, peça a
Deus que não o introduza na tentação e o livre do mal, ou seja, havendo o temor
a respeito de uma tentação específica (cada um sabe de sua inclinação ou
fraqueza), o Mestre instrui que “temos o direito de orar para que nossa união
com Deus, a qual buscamos em cada oração, seja tão estreita que esta precisa
[específica] tentação permaneça longe de nós, mesmo se o fato de que sejamos
tentados faça parte do plano de Deus”.32 Essa confiança filial, que Jesus
possuía e ao ensinar aos discípulos a chamar Deus de Pai também autorizou-os a
ter, deve ser a base para a sexta súplica. Shelton diz que os discípulos devem
“orar por livramento ou salvamento oportuno da possibilidade da tentação pelo
‘mal’ ou ‘o Diabo”’, pois tal “atitude humilde foi apresentada anteriormente em
duas das bem-aventuranças” (as de número um e cinco) e, por isso mesmo,
continua o mesmo autor, “os discípulos percebem que a vontade e a perseverança
são pequenas e que estão desesperadamente carentes da fortificação de Deus”.33
Só esse reconhecimento já leva o discípulo a uma atitude diferente diante de
Deus, pois sua alegria e o ser abençoado não dependem das circunstâncias. É
lícito pedir ao Pai que o livre da tentação, no entanto, se esta for
inevitável, é orando que se obterá forças para vencê-la.
A
Doxologia
Quanto
ao final do Pai-Nosso — “porque teu é o Reino, e o poder, e a glória para sempre.
Amém!” (v.13) —, Shelton diz, sem meias palavras, que tal parte “não é achada
nas cópias mais antigas e melhores de Mateus, nem se encontra na maioria dos
manuscritos do paralelo em Lucas”. O mesmo autor ainda acrescenta que “Sua
forma litúrgica apareceu nas cópias gregas mais tardias de Mateus, sendo
incorporada em nossas versões”.34 A despeito disso, ela em nada ofende o ensino
geral das Escrituras, dos ensinamentos de Jesus e muito menos da própria oração
do Pai-Nosso.
Uma
das lições mais poderosas que o estudo da oração no contexto do Novo Testamento
deixa é o fato de que, conforme instrui Cullmann, até mesmo “as orações não
atendidas também são desejadas por Deus, quando elas incluem a disposição de se
unir a Sua vontade”.35 Isso porque, como lembra C. S. Lewis, até Jesus Cristo,
“no Getsêmani, dirigiu uma súplica a Deus (não obteve o que pediu)”.36 E por
ter tal humanidade, Jesus é referência perpétua dos discípulos. Quem, entre
nós, se soubesse desde o início que não seria atendido, mesmo assim oraria e
aceitaria, resignado, a vontade de Deus? Essa atitude também é parte da
terceira petição.
Fonte deste: Retirado
O Sermão do Monte
A Justiça sob a Ótica de Jesus
Autor: César Moisés
Carvalho
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