JOVENS (Subsídio Teológico Cap 6 / 2º Trim 2017) O Pai-Nosso (Mt 6.9-15)

A mais conhecida oração do mundo saiu dos lábios do Nosso Senhor Jesus Cristo. Depois de falar a respeito do segundo ato básico da justiça do judaísmo, o Mestre instrui os seus discípulos acerca de como se devia orar (v.9). Embora não tenha sido tratado no capítulo anterior, é importante que, antes de pensar em uma análise do Pai-Nosso,1 se faça uma digressão a respeito dessa importante prática cristã, posto que há grandes riscos que cercam a vida devocional. A parábola do fariseu e do publicano demonstra tal perigo, pois o primeiro não ora a Deus, mas a si mesmo e aos homens (Lc 18.9-14). A. W. Tozer diz que ao “orarmos, deveriamos avaliar quem está agindo: o desejo do nosso coração ou o Espírito Santo”. Sua conclusão caminha no sentido de que, se a “oração tem sua origem no Espírito, então a luta espiritual pode ser bela e maravilhosa; mas, se somos vítimas de desejos alimentados em nosso coração, a nossa oração pode tornar-se tão carnal quanto qualquer outro ato”.2 Isso significa que propósitos egoístas podem estar escondidos sob uma aparente piedade ritualística. Uma voz melancólica, chorosa e que parece mais teatral que espontânea, longe de evidenciar um perfil piedoso, revela a perspectiva enganosa de alguns em relação a Deus. Não são a mera aparência ou a posição física, a tonalidade ou o timbre da voz, as palavras ou as expressões faciais que levam a oração a ser aceitável diante do Senhor, mas a disposição do coração, as intenções e a motivação com que nos dirigimos a Ele. E é exatamente isso que o Senhor quer ensinar aos seus discípulos, a oração na perspectiva da justiça superior.

No tocante às motivações para orar, N. T. Wright afirma que quando “nos detemos diante de algumas impressionantes promessas do Novo Testamento (‘Se permanecerdes em mim, e as minhas palavras permanecerem em vós, pedireis o que quiserdes, e vos será feito’ [Jo 15.7]), descobrimos que elas estão equilibradas por um estranho fenômeno”. Qual seja, quando “reivindicamos ousadamente essas promessas, descobrimos que, se formos sinceros, nossos desejos e esperanças serão suavemente, porém firmemente remodelados, separados e colocados novamente em ordem”.3 Em outras palavras, nossas prioridades terão sido colocadas de cabeça para baixo e, como na Oração do Pai-Nosso (Mt 6.9-13), em vez de petições meramente temporais e transitórias, certamente, desejaremos o Reino de Deus, a santificação do Nome do Senhor, a vontade soberana e benfazeja dEle, e somente nos lembraremos de nós mesmos em último lugar.

Se fôssemos falar sobre o conteúdo, orações “cristãs” que se parecem mais com o que é praticado no paganismo, “onde”, segundo N. T. Wright, “o ser humano tenta invocar, apaziguar, adular ou subornar o deus do mar, o deus da guerra, o deus do rio ou o deus do casamento para obter favores especiais ou evitar perigos específicos”,4 talvez façam qualquer coisa, menos glorificar ao Senhor. Obviamente que isso não quer dizer que não se pode pedir algo que se deseja ou suplicar socorro em momentos de apreensão. Todavia, imaginar Deus como um ser alheio às nossas motivações (algo que, tudo indica, pesa mais que as palavras, os gestos e a posição física), diminui-lhe a divindade, pois faz com que um de seus principais atributos seja negado. “Dizemos”, como afirmou C. S. Lewis, “que Deus é onisciente; contudo, boa parte de nossas orações parece consistir em transmitir-lhe informação”.5

Ultimamente tenho aprendido que o nosso palavrório diante de Deus, “priva-o” de responder-nos e impede-nos de ouvi-lo. Como pentecostais, aprendemos que a “boa oração” é a mais barulhenta, altissonante e verborrágica, não obstante, após fazê-la, é possível que saiamos do ambiente ou que nos levantemos do lugar, muito mais orgulhosos que humildes, e mais cheios de si que do Espírito. Assim, reconsidero historicamente a importância do hesicasmo, não como movimento ou ordem monástica, mas como “prática do silêncio”. Alister McGath, afirma que o “tema do ‘silêncio’ pode estar relacionado ao tema apofático do mistério de Deus, isto é, ao reconhecimento de que a linguagem humana nunca será capaz de fazer jus a Deus”. Tal assunto aponta para a verdade, dita pelo mesmo autor, de que no lugar de “pronunciar clichês banais, a resposta certa ao confronto com toda a maravilha de Deus é o silêncio”. E isso por uma razão muito simples: “Estar em silêncio muitas vezes é condição prévia para a oração eficaz (que pode ser pensada como ‘ouvir Deus’)”. Esse “silêncio” não significa inércia ou frieza espiritual, pois antes de qualquer coisa, não se está discutindo o mero ato de quietude, de afastamento do convívio social, mas o distanciar-se de “todas as distrações para se concentrar em Deus”.6

Antes de falar da questão principal da mais famosa oração cristã e de sua relação com o cerne do Sermão do Monte, diria que a “prática do silêncio” colocada por McGrath leva-nos a pensar o quanto os afazeres e o corre-corre das obrigações diárias, quando não nos priva de orar, conseguem tirar a nossa concentração no momento de falar com Deus. Para C. S. Lewis, o grande problema não está especificamente na falta de atenção, mas no que ele chama de “oração como dever”: “Ora, o que incomoda não é o simples fato de cumprirmos o dever de orar às pressas e de qualquer jeito. O que incomoda de verdade é o fato puro e simples de a oração ser contada entre os deveres”. Essa percepção, segundo Lewis, não indica que estamos fazendo algo para o que não fomos criados, antes, demonstra que se “fôssemos perfeitos, a oração não seria um dever, mas deleite”. Assim, as dificuldades enfrentadas no período da oração ou nos momentos que o antecedem demonstram apenas que “justo as atividades para as quais fomos criados são, enquanto vivemos na Terra, impedidas de várias maneiras: pelo mau em nós mesmos e nos outros. Não praticá-las é abandonar nossa humanidade. Praticá-las com naturalidade e prazer ainda não é possível. Essa situação cria a categoria do dever, todo o reino do especificamente moral’.7 Mas chegará o dia em que orar não mais será um dever, e tudo o que aqui se vive em perspectiva, será efetivamente real (1 Co 13.12), e a oração se transformará em relacionamento sólido e verdadeiro com Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo. Até lá, porém, deve-se praticar o dever de orar, buscando sempre o auxílio do Espírito Santo — real e verdadeiro Intercessor (Rm 8.26) — fazendo com que o antegozo daqui, supra momentaneamente a necessidade que somente se satisfará de maneira plena quando o Reino de Deus for instaurado por completo.

Assim, acredito que esta seja uma oportunidade única para se refletir o quão distinta é a perspectiva divina da oração em relação ao que se acha dela. Para grande parte dos cristãos, influenciada pelo pragmatismo, a oração parece ser uma ferramenta ou uma técnica capaz de fazer com que Deus obedeça às suas ordens ou desejos egoístas. Não acredito em nenhuma “teoria infalível” que pretenda ser uma “receita de bolo” para ensinar os cristãos a “saquearem o céu”. Esse tipo de incentivo ao que pretende ser “oração” se parece mais com egoísmo, existencialismo ou qualquer outra postura filosófica desse ou de qualquer outro tempo, mas nada tem com o que as Escrituras apresentam (se não de maneira normativa, ao menos, descritiva), em termos de relacionamento com o Eterno — algo que, de minha parte, define a essência do ato de orar.

O entendimento corrente que reduz a oração ao mero ato de pedir, torna-se inviável diante da atitude de Jesus Cristo para com ela. Várias passagens dos Evangelhos informam que o Senhor retirava-se para orar (Mt 14.23; 26.36,39,44; Mc 6.46; Lc 6.12; 9.28). A despeito das discussões acerca da kenosis, o Senhor não deixou de ser Deus por encarnar-se, mas optou momentaneamente pelo estado de limitação humana, se autoprivando da imunidade, e sendo vulnerável a todas as demais limitações comuns aos mortais. Ao refletir sobre a inegável verdade de que Jesus Cristo é Deus, raramente se reflete sobre a questão de o porquê de Ele orar. Se Cristo era e é Deus, existe necessidade de Deus orar? Rapidamente alguém responderá que na condição humana Ele precisava de Deus. Bem isso desconstruiria a verdade de que Ele apenas esvaziou-se, mas não deixou de ser Deus. A grande lição é que, como já foi dito, a perspectiva divina acerca da oração é diametralmente oposta à nossa. Refletir acerca desse exemplo por parte do nosso Salvador destrói qualquer postura utilitarista a respeito da oração. Jesus Cristo não precisava orar, mas assim procedia pelo fato de que se relacionar com o Pai é algo da própria natureza de sua divindade. Por outro lado, a perspectiva divina de petição pode ser vista com clareza através da composição do Pai-Nosso, com suas seis petições8 que, juntamente com os demais elementos dessa oração, serão analisadas de modo sucinto.

Pai Nosso"
Acerca da primeira frase do Pai-Nosso, informa-nos Agostinho que, em toda a Bíblia, “não se encontra um só lugar em que se ordene ao povo de Israel que diga Pai nosso ou que ore a Deus Pai, e isso porque o Senhor se manifestou àquele povo como a servidores, ou seja, como a quem vivia ainda segundo a carne”.9 A oração traz, portanto, essa primeira grande inovação, que é o fato de um indivíduo dirigir-se a Deus como “Pai” (v.9). Ninguém ousara dirigir- se de forma tão pessoal a Deus. Jesus assim se dirigia e não somente ensinou aos discípulos, mas lhes deu tal direito (Jo 1.12). Apesar de “estar” no céu, o invocamos como Pai e sentimos sua proximidade, pois, parafraseando Agostinho, Deus “está mais dentro de nós do que nossa parte mais íntima”.10

A Primeira Petição
Há muito se discute se o pedido da primeira súplica — “santificado seja o teu nome” (v.9b) — deve ser atendido por Deus, a quem se ora e cujo caráter é indiscutivelmente santo, ou pelo próprio orante. Uma vez que, como é sabido, em toda a Bíblia o nome define aquele que é chamado, e visto que o “nome” de Deus revelado por Jesus Cristo no Sermão do Monte é “Pai”, Marcei Dumais diz que tal súplica poderia ser traduzida como ‘“Faz-te reconhecer como Pai”’ e, continua o mesmo autor, levando “em conta toda a riqueza de sentido da imagem do Pai no SM, pode-se parafrasear: Que todos consigam reconhecer que têm um Pai, que está na fonte de seu ser, que quer o bem e o crescimento de todos e que convida cada um a colocar-se diante dele como filho ou filha”.11 Será que é realmente isso que se quer quando, ao orar, o orante dirige-se a Deus como “Pai”?

A Segunda Petição
A segunda súplica é a mais teológica de todas. Qual o sentido de se pedir pela “vinda” de um Reino que já “veio”? Aqui, torna-se evidente a importância do conceito de Reino de Deus como “já” e “ainda não”, desenvolvido por Oscar Cullmann e já mencionado no capítulo 3, inclusive por autores pentecostais. O Reino de Deus está presente, mas'também “espera” sua “realização final”. Corretamente falando, a opção por essa forma de explicação do discurso de Jesus acerca do Reino de Deus não se trata de simples preferência teológica ou coisa que o valha; é exatamente o oposto. A posição culmanniana honra as Escrituras e demonstra a coerência no discurso de Jesus, que disse ambas as coisas: O Reino de Deus está, mas não ainda completamente (Lc 10.9,11; 17.20,21; 21.31; Mt 6.10)! Em vez de enfurnar-se em um malabarismo hermenêutico que nada explica, Cullmann demonstra através de uma teologia da História como, em Jesus, o tempo é dividido de uma nova maneira. Caso se queira resolver o assunto de forma semântica ou “histórico-gramatical”, segundo o autor, o próprio conceito remete ao entendimento desenvolvido anteriormente em sua obra Cristo e o Tempo:

O termo grego basileia pode ser compreendido de maneira estática, como um lugar, ou dinâmica, como um reino, ou seja, o exercício da soberania real. No judaísmo, esses dois significados são encontrados, mas o segundo aparece bem mais frequentemente. Nas palavras de Jesus, se encontra um quase tão frequentemente quanto o outro. Quando em Mt 7.21, por exemplo, a questão é a “entrada no Reino dos Céus”, ou em Mt 8.11 do “banquete no Reino de Deus”, trata-se da concepção espacial. Por outro lado, o anúncio de que o Reino de Deus está próximo (Mc 1.15; Mt 4.17) e que já veio (Mt 12.28; Lc 11.20) se relaciona antes ao governo real de Deus. Quando no Pai Nosso se ora para que venha o basileia, sem dúvida, pode-se pensar também, em primeiro lugar, neste último sentido. O exercício da soberania de Deus no céu, em seu Reino, deve se tornar realidade em todos os lugares, sobre a terra, também.12

Em resposta a tensão entre o “já” e o “ainda não” presente na segunda petição do Pai-Nosso, em A Oração no Novo Testamento, sugere Cullmann que “quando os cristãos oram: ‘Venha o teu Reino’, eles pronunciam essa oração com o judaísmo; todavia, seguindo Jesus, eles oram para que se concretize um Reino que, com ele, já chegou”.13 À luz dessa perspectiva, é perfeitamente aceitável e prudente que em lugar de “quando?”, se pense em “o quê?” Dessa forma, seguindo o raciocínio de Cullmann, de “maneira tanto mais fervorosa devemos orar, enquanto discípulos de Jesus, ‘Venha o teu Reino’, e, assim fazendo, pensar também sobre o nosso dever ético”.14 Aqui, faço minhas as palavras de Giuseppe Barbaglio, quando ele afirma que a chave hermenêutica de todo o discurso escatológico de Mateus 24 e 25 “é um olhar profético sobre o futuro visando fundar escatologicamente uma ética atual para a Igreja”.15 Em outras palavras, a expectativa do futuro deve provocar reações positivas no tempo presente. Está, pois, claro que o Reino de Deus não dependeu de militância humana para ser iniciado, e muito menos precisa ou precisará dela para sua instauração definitiva ou final. Essa afirmação, porém, remete o assunto para outro aspecto imprescindível na tematização do Reino de Deus, presente na terceira petição do Pai-Nosso.

A Terceira Petição
A terceira petição suplica que seja feita a vontade do Pai, “tanto na terra como no céu” (v.10). Como qualquer estudioso da Bíblia sabe, as palavras em itálico nas edições da ARC não constam nas cópias dos melhores manuscritos e são inseridas pelos editores para melhorar o sentido no português.16 Na quase totalidade dos casos, esse recurso auxilia, mas o estudioso nunca deve deixar de comparar as versões, pois algumas vezes o recurso pode condicionar a interpretação em um sentido completamente diverso da intenção original. A terceira petição ilustra perfeitamente esse aspecto. Se o versículo for lido tal como se encontra no texto — “Seja feita a tua vontade, tanto na terra como no céu” —, a impressão é que o orante deve suplicar que a vontade de Deus seja feita, não apenas na Terra, mas também no céu quando, na realidade, basta suprimir o “tanto”, para se entender que é justamente o contrário: “Seja feita a tua vontade, na terra como no céu”. A súplica refere-se a pedir que aqui na Terra, onde o livre-arbítrio possibilita agir de forma contrária à vontade de Deus, seja como no céu, onde a vontade de Deus é prevalente. O pedido é justamente para que haja uma convergência e uma identificação tal entre as vontades, tanto humana quanto divina, a ponto de elas se transformarem em uma só. Mas tal simbiose não anularia a vontade humana? E ao orar pedindo algo que não está no plano de Deus, isso não anularia a vontade divina?
Se a oração é realmente uma forma de diálogo entre duas pessoas, é preciso que isso se dê como uma “via de mão-dupla”. Contudo, Deus não é uma “pessoa comum”. Por isso, diz C. S. Lewis, na oração, o “que era passivo torna-se ativo”, isto é, a “mudança está em nós” e isso acontece pelo simples fato de que, em lugar “de sermos apenas conhecidos, nós nos mostramos, nos manifestamos e nos oferecemos à vista”.17 Assim é que, orar pela vinda do Reino é pedir que “se realize aqui, assim como se realiza lá”.18 No entanto, a súplica que pede para que a vontade de Deus seja feita, de acordo com Lewis, não deve ser interpretada como “ato exclusivo de submissão”,19 tal como se pensa que fez Cristo, “passivamente”, no Getsêmani (Mt 26.39,42). A postura de Jesus é a de alguém que toma uma atitude. Por isso, tal “súplica”, diz o mesmo autor, “não significa que eu deva ser mero paciente da vontade divina, mas que devo realizá-la com determinação”. Em outras palavras, preciso “ser agente tanto quanto paciente” e o pedido consiste em suplicar a capacidade de ser assim, ou seja, “Em última análise, peço que me seja dada a mesma mente de Cristo Jesus’”.20 O ponto em que se dá tal encontro entre divino e humano, mas que mantêm a ambos inconfundíveis em suas esferas é o grande mistério ou, nas palavras de Lewis, “o que acontece [em tal] Fronteira, no misterioso ponto de junção e de separação onde o ser absoluto revela o ser derivado”.21 Tal discussão, que parece ser a mesma em que se encrespam deterministas-fatalistas de um lado e os adeptos da livre-escolha de outro, é exemplificada nas palavras do literato irlandês:

Uma tentativa de definir causalmente o que acontece ali culminou com o quebra-cabeça entre graça e livre-arbítrio.
Você verá que a Escritura quase não trata do assunto. “Ponham em ação a salvação de vocês com tremor e temor” [F12.12] — isso é puro pelagianismo. Mas por quê? “Pois é Deus quem efetua em vocês” [F1 2.13] — puro agostinianismo.22 Talvez sejam apenas nossos pressupostos que tornem esse raciocínio paradoxal. Em nosso secularismo, partimos do princípio de que a ação divina e a humana são mutuamente excludentes, tal como as ações de criaturas da mesma espécie, de modo que “Deus fez isto” e “eu fiz aquilo” não podem ambas ser verdades do mesmo ato, exceto no sentido de que cada um teve sua participação.23

Ainda de acordo com a ideia de que o relacionamento entre o divino e o humano é uma via de mão dupla, a posição compatibilista de Lewis, que aventa o que chamei de “coexistência pacífica entre soberania divina e livre- arbítrio” ou “compatibilidade incognoscível”,24 é exemplificada pelo autor de As Crônicas de Nárnia, com a ideia de perdão. A necessidade de tal ato da parte de Deus, “move” a divindade e, “Nesse sentido”, diz ele, “a ação divina é consequência do nosso comportamento, [e] é por ele condicionada e induzida”. Lewis então questiona retoricamente: “Será que isso significa que podemos ‘influenciar’ Deus?” O anglicano acredita que é até possível responder afirmativamente caso se quiser e diz que, se isso for dessa forma, é preciso então que se flexibilize a noção de “impassibilidade” divina, “de forma que admita isso”, aventando a hipótese de que o comportamento humano, de alguma forma, “influencia” o Criador, “pois sabemos que Deus perdoa muito mais do que entendemos o significado de ‘impassível’”. Assim é que, a respeito dessa questão, Lewis diz que prefere “dizer que, antes de existirem todos os mundos, Seu ato providencial e criativo (porque são uma coisa só) leva em conta todas as situações engendradas pelos atos de suas criaturas”. Mas, questiona, “se Deus leva em conta nossos pecados, por que não nossas súplicas?”.25 Isso significa que a oração, a súplica, move a Deus. Numa palavra, “Deus e o homem não se excluem mutuamente, como o homem exclui ao seu semelhante no ponto de junção, por assim dizer, entre Criador e criatura; no ponto em que o mistério da criação
— infinito para Deus e incessante no tempo para nós — ocorre de fato”. Isso significa que, ‘“Deus fez (ou disse) tal coisa’ e eu fiz (ou disse) tal coisa podem ambos ser verdadeiros”.26 Esta, inclusive, é a forma arminiana e pentecostal de crer. A soberania divina coexiste com o livre-arbítrio e qualquer tentativa de explicar como isso ocorre leva a equívocos e discussões desnecessárias.

A Quarta Petição
A quarta petição — “O pão nosso de cada dia, dá-nos hoje” (v.l 1)
— que, à primeira vista, parece ser muito fácil e sem necessidade de maiores desdobramentos, revela-se, contudo, complexa quando se descobre que a expressão grega epiousios (“de cada dia”), de acordo com a Bíblia de Estudo Palavras-Chave, só ocorre “na oração do Senhor” e em nenhuma outra parte do Novo Testamento27 e até nos escritos seculares daquela época.28 Assim, devido à complexidade de tal expressão, a petição pode ter, ao menos, três possíveis significados. Nas palavras de James Shelton:

·         1. Pode ser referência às bodas messiânicas do tempo do fim. O solicitante está pedindo o cumprimento do Reino agora. A consumação do seu Reino resulta em abundância de comida (e.g. Is 55.1,2; 61.1-6).

·         2. O pedido para o suprimento do pão de amanhã não enfraquece necessariamente a impressão de que o discípulo é totalmente dependente de Deus. Ele proveu para hoje, Ele pode prover para amanhã. É provavelmente intencional o paralelo da provisão diária de Deus do maná no deserto. No aspecto prático de uma casa palestina daqueles dias, seria necessária a provisão de comida na véspera para a preparação da mesma para o dia seguinte.
·         3. O pão simboliza todas as necessidades materiais. Em Mateus 6.24-34, Jesus explica a necessidade de depender de Deus para as necessidades básicas. A despeito do intento original da palavra epiousios (diariamente/ amanhã), tanto a aplicação escatológica quanto a vigente estão evidentes no contexto de Mateus.2

De qualquer forma, o fato é que o suplicante confia ao Pai a provisão — em todos os aspectos —, para o seu sustento, seja na área física, seja na esfera espiritual. E nisto, como se verá no próximo capítulo, demonstra mais uma vez que a justiça do Reino não é igual à do mundo, pois o discípulo confia inteiramente no Pai.

A Quinta Petição
“Perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores” (v.12), é uma petição que, por incrível que pareça, não necessita de praticamente nenhuma discussão, pois o discípulo já sabe que, como foi visto na primeira antítese, no capítulo 4, se para quem pretende apresentar uma oferta no Templo e se recorda que o seu irmão tem algo contra si, é necessário que o ofertante primeiramente se reconcilie com ele (Mt 5.23,24), que dirá aos discípulos que foram chamados à justiça superior e, por isso, dirigem-se diretamente ao Pai. Para além da discussão teológica de que haja, ou não, uma subordinação entre o perdão de Deus e o dos discípulos em relação a outros (algo que os versículos 14 e 15 deixam claro e nenhuma margem para dúvida), Cullmann pontua que, uma vez alcançado pelo Evangelho, o discípulo é colocado na esfera, ou dimensão, do “campo de força divino” cuja característica marcante é justamente o perdão. Portanto, “pronunciar a quinta súplica pressupõe, no momento mesmo da oração, que nós nos colocamos na esfera do perdão de Deus e estamos prontos a ali permanecer nela em nossas relações com nossos semelhantes”.30 Não perdoar, de acordo com Cullmann, que coaduna com a Bíblia (w.14,15), equivale a estar fora do “campo de força divino” ou da “esfera do perdão de Deus” e, neste caso, a quinta petição já não faria sentido algum em ser pronunciada.

A Sexta Petição
Finalmente, a última e sexta petição, é uma das mais polêmicas, posto que parece sugerir que Deus, às vezes, induz as pessoas à tentação (v.l3a) ou, no mínimo, a permite. E quando tal acontece, como se pode ver nos exemplos de Jó, no Antigo Testamento, e de Jesus, no Novo Testamento, a tentação parece ser ainda mais terrível. Não obstante, por esses mesmos exemplos, é possível perceber que existe um propósito e uma intencionalidade em tais tentações. Assim, Cullmann, em vez de recorrer ao texto de Tiago 1.13 e evitar a dificuldade, enfrenta a questão colocada pela sexta petição nos dizendo que a exortação dirigida por Jesus aos seus discípulos no Getsêmani, de orarem para que não caíssem em tentação, tem em primeiro lugar por objetivo que eles sejam preservados de sucumbir na tentação iminente, mas que, em relação com a oração do próprio Jesus a que “o cálice passasse ao longe”, a súplica para que fosse poupado da tentação não está inteiramente ausente. Pois a oração pela qual Jesus exorta os discípulos implica também a vontade de que os eventos dolorosos absolutamente não acontecessem. Com efeito, por causa da fraqueza humana dos discípulos, que Jesus conhecia, estes eventos se tornam por si mesmos para eles uma tentação fugir e renegar a seu mestre. — A própria súplica para que se seja poupado da tentação não deve, pois, ser excluída inteiramente da oração dos discípulos no Getsêmani, se bem que ela entre em consideração somente em segundo lugar.
— No Pai Nosso, por outro lado, a súplica para que se seja poupado da tentação se encontra, de maneira inversa, em primeiro plano, e isso em relação com a submissão, requerida para toda oração, à vontade de Deus, que pode recusá-la, mesmo que nossa súplica chegue com a adição “livrai-nos do mal”, que, em sua fórmula geral, implica também a súplica pelo sustento na tentação.

O que se quer ensinar com a sexta petição é que o discípulo, humildemente, peça a Deus que não o introduza na tentação e o livre do mal, ou seja, havendo o temor a respeito de uma tentação específica (cada um sabe de sua inclinação ou fraqueza), o Mestre instrui que “temos o direito de orar para que nossa união com Deus, a qual buscamos em cada oração, seja tão estreita que esta precisa [específica] tentação permaneça longe de nós, mesmo se o fato de que sejamos tentados faça parte do plano de Deus”.32 Essa confiança filial, que Jesus possuía e ao ensinar aos discípulos a chamar Deus de Pai também autorizou-os a ter, deve ser a base para a sexta súplica. Shelton diz que os discípulos devem “orar por livramento ou salvamento oportuno da possibilidade da tentação pelo ‘mal’ ou ‘o Diabo”’, pois tal “atitude humilde foi apresentada anteriormente em duas das bem-aventuranças” (as de número um e cinco) e, por isso mesmo, continua o mesmo autor, “os discípulos percebem que a vontade e a perseverança são pequenas e que estão desesperadamente carentes da fortificação de Deus”.33 Só esse reconhecimento já leva o discípulo a uma atitude diferente diante de Deus, pois sua alegria e o ser abençoado não dependem das circunstâncias. É lícito pedir ao Pai que o livre da tentação, no entanto, se esta for inevitável, é orando que se obterá forças para vencê-la.

A Doxologia
Quanto ao final do Pai-Nosso — “porque teu é o Reino, e o poder, e a glória para sempre. Amém!” (v.13) —, Shelton diz, sem meias palavras, que tal parte “não é achada nas cópias mais antigas e melhores de Mateus, nem se encontra na maioria dos manuscritos do paralelo em Lucas”. O mesmo autor ainda acrescenta que “Sua forma litúrgica apareceu nas cópias gregas mais tardias de Mateus, sendo incorporada em nossas versões”.34 A despeito disso, ela em nada ofende o ensino geral das Escrituras, dos ensinamentos de Jesus e muito menos da própria oração do Pai-Nosso.
Uma das lições mais poderosas que o estudo da oração no contexto do Novo Testamento deixa é o fato de que, conforme instrui Cullmann, até mesmo “as orações não atendidas também são desejadas por Deus, quando elas incluem a disposição de se unir a Sua vontade”.35 Isso porque, como lembra C. S. Lewis, até Jesus Cristo, “no Getsêmani, dirigiu uma súplica a Deus (não obteve o que pediu)”.36 E por ter tal humanidade, Jesus é referência perpétua dos discípulos. Quem, entre nós, se soubesse desde o início que não seria atendido, mesmo assim oraria e aceitaria, resignado, a vontade de Deus? Essa atitude também é parte da terceira petição.


Fonte deste: Retirado
O Sermão do Monte
A Justiça sob a Ótica de Jesus
Autor: César Moisés Carvalho


Nenhum comentário: