Seguindo o raciocínio de Joachim Jeremias, a justiça
a ser contrastada agora com a do Reino é a dos fariseus. Enquanto os escribas,
tal como apresentado nos Evangelhos, “são mais bem compreendidos como
burocratas e também peritos da vida judaica”,1 os fariseus, ou perushim, isto é, do “hebraico parash, separar, interpretar”, expressão que
“literalmente significa ‘separados ou separadores’ e pode ser entendida, como
‘intérpretes ou comentadores’, isto é, aqueles que distinguem, separam e expõem
a lei”,2 eram judeus piedosos e, pela sua popularidade, considerados “mentores
religiosos da ‘ralé’”.3 De acordo com Evaristo Miranda e José Schorr Malca, a
“piedade farisaica, como norma para a vida cotidiana, não tinha necessidade de
outro centro, de outro lugar, de outro templo que não fosse o próprio homem”.4 Como
ambos têm uma posição “pró-fariseus”, eles denominam a prática religiosa desse
grupo judaico como “farisianismo”. O que interessa, no momento, a este estudo é
o fato de que o referido grupo tinha como característica o ser “leigo,
heterogêneo e piedoso”.5 Portanto, como concorda a maioria dos autores, a
esmola, a oração e o jejum, eram as exigências básicas da justiça, segundo o
judaísmo, e, portanto, muito prezadas pelos fariseus.
Em que consistia então a “censura” de Jesus? A tradução que
traz a palavra “justiça”, no versículo um, em vez de “esmola”, parece expressar
mais fielmente a ideia a ser trabalhada pelo Mestre. Na verdade, a maioria dos
exegetas afirma que a expressão literal é “fazer a vossa justiça” [dikaiosynê, “retidão”, “justiça”], isto é,
realizar as exigências básicas da religião oficial de Israel. Como corretamente
observa Dumais, as “três estrofes” (Mt 6.1-8,16-18), estruturadas da forma que
aqui está sendo apresentada, deixando o Pai-Nosso para análise à parte, “se
estruturam exatamente da mesma maneira, em dois quadros paralelos: mandamento
negativo - motivação - sanção; mandamento positivo - motivação - sanção” e,
continua o mesmo autor, “estão marcadas pelas mesmas oposições: público /
oculto; visto pelos homens / visto pelo Pai; recompensa já recebida /
recompensa a receber do Pai”. O teólogo
francês assinala que tal “jogo das oposições mostra que a intenção desta
passagem não é exortar à prática dessas três obras de piedade, habituais na
comunidade de Mt, mas propor a melhor maneira de as exercer”. Em outras palavras, tal deve ser praticado,
porém, de forma correta e com motivações nobres. Mesmo porque, como observa
Joachim Jeremias, o fato de Jesus recorrentemente falar acerca da necessidade
de se dar esmolas aos pobres só pode ser entendido pelos leitores modernos
quando se descobre, ou se tem “em mente que ‘dar esmolas’ no Oriente não é
apoio à mendicância, mas a forma da ajuda social por excelência”.8 Alinha-se a
Dumais, Élian Cuvillier, ao dissertar a respeito da mesma passagem nos
seguintes termos:
O que,
em substância, essa reinterpretação manifesta pode ser resumido na forma de uma
alternativa: ou uma “ética do parecer”, pela qual o crente tem sua vida
assegurada pelo olhar dos outros, ou uma “ética do segredo”, segundo a qual a
identidade não depende do que faz o homem sob o olhar dos outros, mas da
relação filial com o Pai que vê no segredo. Não se trata tanto de contestar a
validade das obras de piedade quanto de sublinhar que a entrada no Reino (em
outras palavras: a “recompensa”, [...], w. 1.2.5.16) é concedida de acordo com
critérios que não são os do mundo e de sua lógica, à qual pertence a ordem
religiosa. Na lógica do Reino dos céus, que é a do segredo e do íntimo, o ato
ético ou o gesto de piedade é justamente o inverso do que se pode constatar a
olho nu: a justiça do Reino não tem nada a ver com a justiça dos homens. [...]
É diante do “Pai” que o sujeito se descobre na verdade. E é por isso que, em
vez de se preocupar com as coisas deste mundo, os ouvintes do [Sermão do Monte]
são convidados à confiança absoluta no Pai (w. 19-34). Pertencer ao Reino dos
céus e sua justiça (w. 33) é viver na confiança, isto é, reinterpretados [e na]
compreensão de si mesmo e dos outros como seres em relação (7,12) e não apenas
um viver juntos de maneira razoável que a lei, como mandamento, torna possível.
O
tríplice uso da expressão “hipócritas” [hypokritês]
(w.2,5,16),
termo grego originalmente utilizado no teatro para os atores que representavam,
denota a seriedade com que são encarados os que fazem o bem com motivações
escusas. É impossível não lembrar-se de Mateus 25.31-46, quando as ovelhas
forem separadas dos bodes, justamente por causa das boas obras executadas.
Obras que, vale ressaltar, eram praticadas sem nenhum outro interesse por parte
de quem praticava a não ser o bem da pessoa necessitada. Aliás, os benfeitores
estavam fazendo ao próprio Filho de Deus, mas eles sequer sabiam disso! Nada
fora feito para representar, pois eles sequer sabiam que estavam sendo
observados e suas obras anotadas e contabilizadas. É assim que, conforme
observa Dumais, uma “ação praticada diante do Pai em segredo’ (w. 4.6.18) não
significa uma ação secreta’; designa toda ação, até pública, que se faz de verdade
diante do Pai, que vê o que está oculto’, isto é, que penetra a intenção
profunda dos corações”.10 O feito de qualquer um, isto é, qualquer obra, jamais
será “oculta” diante dos olhos de quem tudo vê e conhece. Inclusive as ações,
não precisam ser necessariamente ocultas, escondidas, pois se não houver outra
forma ou local, elas podem ser realizadas publicamente. A intenção com que elas
irão acontecer não passará despercebida dos olhos do Pai. Portanto, o que se
desaconselha aqui é a dramatização, o representar, o querer passar-se por
piedoso, sendo hipócrita. Estes nada devem esperar por parte do Pai.
A observação do Mestre não fica centrada em apenas o que se
pode oferecer ao próximo como uma forma de autoendeusamento, mas ela atinge até
mesmo a vida devocional, pois a hipocrisia não poupa nem mesmo esta área. O
ponto todo, conforme observa Shelton, é que “Jesus está mais preocupado com a
ardilosa orquestração de religiosidade”.11 Uma experiência pessoal talvez
ilustre melhor o que está sendo dito. Há muitos anos, quando ainda residia no
interior do Paraná, fui convidado a participar de um evento em uma cidade da
região oeste do estado. Lá, após o culto, conheci um ancião que me relatou uma
experiência que jamais esquecerei. Ele contou, em lágrimas, que certa feita
resolveu contabilizar, pelo resto de sua vida, quantas horas ele havia orado.
Comprou um caderno e pôs-se a registrar cada minuto em que “se dirigia” a Deus.
Já havia se passado um bom tempo, quando um dia Deus lhe falou que todos
aqueles momentos nada tinham valido diante dEle.
Fora tudo em vão! Aliás, era para ele
abandonar aquela prática e destruir aquele caderno, pois estava se tornando um
motivo de exaltação pessoal e orgulho. Nunca me esquecerei dessa experiência e
o quanto a piedade — inclusive sincera —, pode nos afastar de Deus e nos tornar
autólatras. Como afirma Benedict Viviano, o ensinamento dos versículos 5 a 8,
“não depreciam a adoração pública como tal, uma vez que Jesus participava nos
cultos na sinagoga”.12 O Mestre também chegou a orar em público, e mais de uma
vez, pois o ponto é a hipocrisia e não o orar publicamente (Jo 11.41,42;
12.27,28).
Shelton diz que o “jejum era acompanhado tradicionalmente
pelos procedimentos de vestir-se com pano de saco, não tomar banho e não ungir
o corpo ou a cabeça com óleo”.
A questão da hipocrisia, do representar e ser
“ator” fica ainda mais evidente quando se sabe que, de acordo com o mesmo
autor, “Alguns fariseus faziam um espetáculo com os jejuns que observavam,
cobrindo a cabeça ou aplicando copiosas demãos de cinza e sujeira no rosto,
tornando-os pouco reconhecíveis”.13 O Mestre não condena o jejum e pressupõe
sua legitimidade ao recomendar a forma natural com que se deve proceder nesse
ato (w.17,18). Viviano observa que, de acordo com o Didaquê 8,1, “os judeus jejuavam em segredo às segundas e quintas- feiras, ao
passo que os cristãos escolheram as quartas e sextas-feiras (esta última em
memória do sofrimento de Jesus)”.14 Portanto, o jejum consciente, não mecânico,
discreto e em sinal de humilhação, torna-se importante recurso ao lado da
oração. Na verdade, conforme instruiu o Senhor Jesus Cristo, o jejum e a oração
são aliados dos que se colocam à disposição de Deus para auxiliar as pessoas no
processo de libertação de possessões malignas (Mt 17.21).
Finalmente, resta perguntar pelas três ocorrências
da expressão “teu Pai, que vê o que está oculto te recompensará” (w.6,18; no
v.4 “secreto”,), em que consiste tal “recompensa”. De acordo com Dumais, a
referida recompensa não está definida, mas o “conjunto da passagem e o contexto
que a acompanha (cf. Mt 5,43-48; 6,9- 13) convidam a ligar o tema da recompensa
ao do Pai e da relação Pai-filho”. Isto é, mantendo o “mistério da recompensa
inteiramente intato, pode-se pensar que, em resposta aos gestos humanos,
expressivos do estar-diante-do-Pai, o que vai acontecer, em primeiro lugar, é a
reciprocidade da relação por parte do Pai”. Assim, tais “atos religiosos autênticos
vão produzir seus frutos intrínsecos: Deus retorna (‘dá em retorno’) a relação
que se estabelece com ele”, ou seja, a “recompensa é, de certo modo, imanente:
consiste no crescimento da relação Pai-filho”.15 O que pode ser mais importante
que tal relação? Moisés a suplicou e Davi não queria que se retirasse dele o
Espírito do Senhor (Êx 33.1-23; SI 51.11). Quanto ao fato de tais atos gerarem
galardão no Tribunal de Cristo (1 Co 3.12-15), não há como se concluir, mas o
certo é que o Mestre fala de galardão e recompensa, sejam estas na eternidade,
no Julgamento das Nações ou agora mesmo com a presença do seu Espírito, o
importante é agradar ao Senhor e ter comunhão com Ele. Entretanto, é importante
lembrar que a questão toda gira em torno da discrição e sinceridade, mas isso
também não significa ocultação de quem se é ou viver uma espécie de
“criptocristianismo”, pois o sal da Terra e a luz do mundo têm uma missão a
cumprir: revelar à humanidade a “nova justiça”, excedendo a justiça dos
fariseus, isto é, dos religiosos.
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