Esta grande porção
escriturística, conhecida como “antíteses” de Jesus, cujo número é seis (w.
22,28,32,34,39 e 44),1 constitui, juntamente com sua conclusão, “a ilustração
direta do quadro hermenêutico apresentado em 5,17-20”,2 isto da justiça do
Reino, explicitada no capítulo anterior. Alinho-me a Cuvillier, na ideia de que
não se trata simplesmente de “máximas morais ou, em outros termos, de um
‘mandamento’ (5,18-19), mas é a ‘justiça superior’”3 contraposta à justiça dos
fariseus, conforme o entendimento de Joachim Jeremias, anteriormente colocado
na introdução. Para o mesmo autor, a “lógica que prevalece nessa passagem é a
do excesso” e, continua ele, “se se trata de excesso, do incalculável, o outro
não é simplesmente uma pessoa, objeto de um respeito quantificável em vista de
um mandamento, mas se torna ‘sujeito’ que encontramos como próximo para além da
regra”. Neste caso, Cuvillier explica que a “utilização da hipérbole indica que
[tal] palavra [...] não visa à descrição precisa de uma prática, que arriscaria
se tornar razoável e a reduzir a ‘justiça superior’ da ordem do Reino de Deus à
letra do ‘mandamento’ da ordem deste mundo”.4 O que está sendo dito é que,
enquanto o mandamento, por mais objetivo que fosse, não conseguia contemplar as
múltiplas formas de o pecado se manifestar, a justiça superior não pode ser
convertida em regras, apesar
de elas existirem, pois sua abrangência visa ao estado de consciência e aos
hábitos do coração. Ela não se contenta com a não concretização do erro e da
transgressão, quando qualquer um pode constatar o que de fato ocorreu. Sua
atuação baseia-se no amor ao próximo, da mesma forma como Cristo ama a
humanidade, um amor sem precedentes, posto que não exige reciprocidade e existe
muito antes de o próximo saber de nossa existência objetiva.
É Günther Bornkamm quem
lembra que “Jesus apresenta- se como escriba” (apesar de Ele não ter exercido
tal atividade oficialmente) e, como prova disso, cita o fato de que até mesmo
em questões judiciais de conflito de herança sua opinião, como resposta
decisiva, era solicitada (Lc 12.13,14). O mesmo autor diz que apesar de as
pessoas se dirigirem a Ele como “Rabi”, “não consta que tivesse estudado’ na
escola de algum rabi famoso; seus adversários até o chamam de ‘iletrado’ (Jo
7.15; cf. Mc 6.2)” e sua “ordenação tampouco é mencionada em lugar algum”.
Ainda assim, não é possível ignorar que sua atividade se assemelha muito, em
algumas ocasiões, a dos escribas, pois “no judaísmo, o mestre é, de acordo com
a natureza da lei, ao mesmo tempo teólogo e jurista”.5 E é como um autêntico
teólogo, mas também profeta, que Ele disserta acerca da Lei e a reinterpreta,
mostrando que a intenção do mandamento visava formar um caráter com a densidade
necessária para transformar a mentalidade e o coração do indivíduo, levando-o a
ter hábitos e uma filosofia de vida que não fossem orientados meramente pela
observação mecânica de regras e mandamentos, mas pela valorização do outro que,
mesmo à distância, não deve ser alvo da malícia interior de ninguém. Isto é,
ninguém pode ser saudável apresentando-se, exteriormente, como puritano,
enquanto cultiva, interiormente, o ódio, a perfídia, a maledicência, os desejos
vis, a perversidade, a vulgaridade, a inveja, etc.
Dessa forma, as antíteses de Jesus como justiça do
Reino, de acordo com Bornkamm, deixam claro que “a Torá não é mais, como o era
para a totalidade do judaísmo, a fonte que única e exclusivamente
comunica a vontade de Deus, mas que esta passa a vigorar de modo autônomo e livre
na palavra de Jesus”. Mas tal ocorre
porque as antíteses de Jesus “pode ser
tudo, menos o dogma de um iluminista”, isto é, “trata-se, antes, da atualização
da vontade de Deus por ele proclamada”,7 e, por isso mesmo, diz o mesmo autor,
“elas partem do que foi dito ‘aos antigos’ e que é considerado tradição
compromissiva pelos ouvintes, dando-lhe, porém, uma interpretação mais
incisiva”.
Numa palavra, e de acordo com o mesmo
autor, “Justiça, nos termos de Jesus, significa: não só dar lugar ao homicídio,
mas também evitar já sua primeira manifestação, a palavra de ira que escapa
contra o irmão; não só não cometer adultério, mas também evitar já o olhar
lascivo e a ideia concupiscente e manter o matrimônio indissolúvel”9 e assim
por diante. Na verdade, uma vez que a vontade de Deus foi deturpada “em um
emaranhado de estatutos legais, tradições religiosas e morais”, a justiça do
Reino “liberta a vontade de Deus da petrificação das tábuas da lei e estende a
mão na direção do coração humano que se encontra encerrado e assegurado na
custódia do legalismo”.10 E por que em direção ao coração? Pelo simples fato de
que a chamada “casuística do legalismo judaico”, pontos em que arbitravam e se
subdividiam os escribas em suas múltiplas escolas rabínicas, e também por
vaidade, acabava por prevalecer, levando a exceção a se transformar em regra.
Assim, a referida casuística que “se caracteriza por trançar uma rede com
malhas cada vez mais finas, visando capturar toda a vida do ser humano”,
acabava gerando um efeito contrário, isto é, a “cada nova malha, ela deixa um
novo furo, e com seu zelo para tornar-se concreta, ela, na verdade, deixa de
lado o coração humano”. Bornkamm diz que tal ‘“falta de coração’ é inerente a
toda casuística” e que, por isso mesmo, as “orientações concretas de Jesus, em
contrapartida, estendem a mão pelas lacunas e buracos em direção ao coração do
ser humano e atingem o ponto em que sua existência diante do outro e diante de
Deus realmente está em jogo”.11 O mesmo autor exemplifica sua tese dizendo que;
Isto se torna claro justamente nas antíteses do
Sermão da Montanha. Nelas, a exigência de Deus se torna extremamente
simples.
O que o ser humano faz é relativizado de maneira singular, sendo dado
todo o peso ao como de seu agir. Isso não significa de forma alguma que
o agir não mais seja importante e que só a “mentalidade” tenha valor. Essa
distinção entre a ação e a intenção, que se tornou corrente na ética moderna, é
totalmente alheia à proclamação de Jesus. Justamente as antíteses mostram que
Jesus já considerou a mentalidade como ação; elas têm por objetivo a obediência
até à ação concreta; “Quem ouvir estas minhas palavras e as puser em
prática...!”. Isto quer dizer: a “relativização” da ação significa, antes de
mais nada, que ela é colocada em relação a aquilo que o ser humano na verdade é
e quer. Agora ela já não é uma obra que parece comparecer diante do ser humano,
assim como a lei já não é um estatuto que pudesse comparecer diante de
Deus.
Uma última palavra de Marcei Dumais torna-se
necessária antes de falar sucintamente de cada uma das seis “antíteses”. O
referido autor diz não ser apropriada essa expressão para referir- se ao texto
objeto de estudo deste capítulo em sua completude, posto que não há apenas
contraposições nesse texto e sim também ajustamentos na Lei. Sendo assim,
Dumais defende que elas seriam mais bem denominadas como “‘contra-tese’ ou
contraste’”. Além disso, uma vez que o “ensinamento de Mt 5,21-48 está expresso
em linguagem simbólica e não jurídica: indicajndo] mais uma diretiva e uma
qualidade de agir do que um comando de comportamentos determinados”, é
incorreto designá-la de “Lei nova”. Desta forma, a divisão dessa porção
escriturística, com suas seis perícopes, de acordo com Dumais, seria a
seguinte: “Aprofundamento da Lei antiga: ant. 1 (morte /
cólera); ant. 2 (adultério / cobiça); ant. 6 (amar seu próximo / amar seu
inimigo)” e “Revogação da Lei antiga: ant. 3 (divórcio
permitido / nada de divórcio); ant. 4 (juramento permitido / nada de
juramento); ant. 5 (lei do talião / nada de talião)”. A explicação é que há
exegetas que “concordam em designar as antíteses 1 e 2 como portadoras de um
aprofundamento da Lei citada, e as antíteses 3 e 5, como anuladoras desta Lei,
ultrapassando-a”. Dumais ainda cita outros intérpretes dizendo que de acordo
com eles, “a antítese 4 radicaliza a Lei, que é mantida, e a antítese 6 derroga o texto da Lei, que é enunciado”, enquanto outros
acreditam que seja justamente o contrário. O teólogo francês alinha-se aos
últimos e diz que “a antítese 4 derroga o direito de fazer juramentos, que se
inclui na Lei antiga de cumprir os teus juramentos para com o Senhor’ (5,33)”.
Assim, Dumais diz que na “última antítese, Jesus, é verdade, vai na direção
oposta da fórmula citada: odiarás o teu inimigo’, mas esta nem procede do
A. T.”.13 Esta última observação torna uma vez mais necessária a leitura do
apêndice que distingue a Torá da Halaká.
Lembrando
igualmente que a “justiça” que está sendo contraposta é a dos escribas,
intérpretes e doutores da Lei, portanto, dos teólogos da época.
Primeira Antítese
A primeira antítese refere-se ao sexto mandamento
(Êx 20.13; Dt 5.17). Nossa tradução do versículo 22 que parece sugerir, à
primeira vista, que a ira “com motivo” é permitida, de acordo com Agostinho, os
“códices gregos não dizem sem motivo, como aqui se acrescenta, conquanto o
sentido seja o mesmo”. Para o Bispo de Hipona, quem se ira contra o pecado do
irmão não se ira contra a pessoa e sim contra o ato, no entanto, “o que se ira
contra seu irmão e não contra o pecado deste, esse se ira sem motivo”.14 Mas a admiração dos leitores, antigos e modernos, está na
rigorosidade apresentada no versículo 22 que parece desproporcional em relação
ao que se está fazendo, pois se trata apenas de “injúrias” ou xingamentos sem
maiores “implicações”. No entanto, conforme oportunamente coloca Bonhoeffer, a
“intenção é atingir, machucar, destruir”, visto que a “injúria consciente ataca
a honra pública do irmão, visa torná-lo desprezível também a outros, busca no
ódio a destruição de sua existência íntima e externa”.15 Enquanto o juízo se
reservava apenas a quem matasse (Êx 21.12; Nm 35.16; Lv 24.17), o Mestre diz
que a ira e, seus corolários (as injúrias), já colocam a pessoa sub judice, gerando até mesmo uma gradação — juízo, Sinédrio e Geena —, tal como apreciavam os juristas. No entanto, radicaliza a questão e, à
“maneira dos sábios de Israel e dos rabinos, Jesus não hesita em empregar a
linguagem retórica do paradoxo e da ironia, aqui e alhures, no [Sermão do Monte]
(cf. 5,29.39; 6,3)”.16 Nas palavras de Shelton:
Jesus leva esta regra além dos limites dos seus
contemporâneos. Na comunidade de Qumran, a pessoa que usasse linguagem
impudente ou blasfema teria sua ração de comida reduzida por até um ano; tal
pessoa seria evitada e, em alguns casos, até expulsa da comunidade (Normas
da Comunidade 6.23—7.5,15-18). Jesus leva a ofensa ao precipício do
inferno. O uso de Mateus da palavra geena com o significado de inferno é
tipicamente judaico. No vale de Hinom (do qual a palavra geena é
derivada), onde outrora se faziam sacrifícios humanos a deuses estrangeiros, os
judeus de Jerusalém queimavam lixo; por conseguinte o lugar tornou-se símbolo
de maldição abrasadora e irrevogável.
Os versículos 23 a 26, que aparecem de forma
resumida em Lucas 12.58,59, deixam entrever o improvável não apenas para os
escribas, mas a qualquer um. Apesar de o fato de a conexão entre culto e
reconciliação não ser algo especificamente neotestamentário, posto que a
oferenda, como se vê desde Caim e Abel, representa o próprio ofertante, o
“novo” da observação de Jesus nesses versículos é a ideia de que se o ofertante
souber que o seu irmão tem algo contra ele, sua oferta deve ser suspensa e
retomada apenas depois de reatado o relacionamento. O que está implícito é que
não se concebe a postura de um ofertante que tem algo contra o seu irmão e
ainda assim apresenta-se para ofertar a Deus, como se nada estivesse
acontecendo, que conhece a ambos. Isso seria um absurdo. Portanto, não é se o
ofertante tem algo contra o outro (pois nem deveria ter!) que a oferta não pode
ser apresentada, mas se o outro tem algo contra ele! Isso, independente de que
o ofertante esteja “certo” e o outro “errado”. A recomendação é reconciliar-se
depressa com o irmão, antes que a querela ganhe as instâncias judiciais, tanto
humanas quanto divinas. Nas palavras de Franz Zeilinger, retribuir com amor a
“uma pessoa que me quer mal nada mais tem a ver, certamente, com justiça
vindicativa, mas antes com o Reinado dos Céus, que, desde agora, determina o
pensar e o agir, pois, permite que o mundo humano transpareça numa luz
diferente numa luz divina”.
Segunda Antítese
Na segunda antítese, o
Senhor considera mais um mandamento, o sétimo (Êx 20.14; Dt 5.18). Não
obstante, o décimo também parece ser contemplado aqui quando se fala da cobiça
(Êx 20.17; Dt 5.21 cf. v.28). Contudo, conforme Giuseppe Barbaglio, “estava-se
longe de colocar a dupla proibição no mesmo plano”.19 Isso porque, conforme já
dito por Bornkamm, na justiça do Reino de Deus, a justiça superior, intenção é
ação, ato. Quanto à radicalidade dos versículos 29 e 30, evidentemente que não
tem um sentido literal, visto que a intenção nas está nos membros, ou órgãos,
citados (olho e mão), e sim no “coração”, onde tudo tem início, portanto, a
linguagem refere- se a uma demonstração da seriedade do assunto e a forma
austera com que se deve lutar contra tais sentimentos egoísticos, visando
extirpá-los sumariamente.
Terceira Antítese
Os versículos 31 e 32 não trazem simplesmente uma
antítese, mas sim uma revogação. A referida antítese alude ao texto de
Deuteronômio 24.1-4 e refere-se à normatização do rompimento da relação
conjugal. Em uma sociedade patriarcal e marcada pela predominância masculina, a
“carta de divórcio”, ou de repúdio, era um documento que visava proteger a
mulher, posto que a partir do casamento ela “deixava” de ser propriedade do pai
para se tornar propriedade do marido. Sendo assim, se caso o marido a
despedisse sem dar-lhe o “libelo de repúdio”, a mulher não poderia casar-se com
outro homem, ficando completamente desassistida, indo parar na mendicância ou
na prostituição. Assim, a despeito de tal ato ser uma inovação e representar um
avanço no mundo antigo, nessa antítese Jesus despreza tanto a opinião dos
escribas adeptos da “escola rigorista de Shammãi [que] interpretava o motivo
dado em Dt 24,1 (algo de inconveniente’) como indicador de uma ‘falta sexual”’,
quanto a ala dos escribas pertencentes “a escola liberal de Hillel [que] entendia [Dt 24.1-4] em sentido mais amplo:
tudo o que constitui um comportamento desagradável para com o seu marido”.20
Shelton diz tais “comportamentos desagradáveis” incluíam uma simples falta,
inclusive involuntária, como por exemplo, queimar uma refeição!21 A questão mais
complexa dessa antítese é que enquanto Moisés “autoriza” o divórcio, Jesus o
proíbe, mostrando sua autoridade sobre o grande legislador hebreu. Enquanto o
primeiro parece ter sido mais flexível, o segundo diz que quem casa com a
mulher repudiada, igualmente comente adultério. Algo extremamente inovador,
sobretudo, pela responsabilização masculina (coisa raríssima de se ver naquela
sociedade). Todavia, há uma exceção para o divórcio22 e esta merece o
comentário à parte:
No subsequente estado adúltero da mulher que se
casa com novo companheiro, a falta é colocada aos pés do primeiro homem que, de
acordo com Jesus, obtém um divórcio frívolo.
Ele precipita um estado adúltero da mulher que se
casa outra vez (que então pode não ter tido voz ativa no segundo matrimônio,
dado seu estado social). Mais tarde, quando Jesus insistiu nesta visão estrita
do divórcio, os fariseus perguntaram: “Então, por que mandou Moisés dar-lhe
carta de divórcio e repudiá-la?” Ele respondeu que Moisés tolerou esta prática
“por causa da dureza do vosso coração”. Jesus manteve a posição anterior
exarada pela lei natural quando instruiu o povo que o Criador designou que o
marido e a esposa fossem uma só carne e nunca se separassem (Mt 19.4- 11). Na
passagem em foco, Jesus diz que o homem que se divorcia da esposa por qualquer
razão, exceto por infidelidade matrimonial, e se casa com outra mulher, comete
adultério. A vontade de Deus é a permanência do matrimônio nesta terra.
Assim
Malaquias escreve que Deus diz que o casal é uma carne e que Ele “aborrece o
repúdio [ou odeia o divórcio]”, sobretudo por causa dos efeitos sobre os filhos
(Ml 2.14-16).
O que chama a atenção,
particularmente nesta antítese, diz Kümmel, “é que Jesus não apresenta nenhuma
fundamentação das Sagradas Escrituras ou da tradição para fazer a afirmação”.24
A questão está mais do que clara na antítese: O padrão divino, retratado neste
caso na nova justiça que se contrasta com a dos escribas, é o mesmo do início
quando o Criador criou o primeiro casal (Gn 1.27; 2.24 cf. Ml 19.4-6). Mas, ao
fazer isso, o Mestre demonstra que a legislação do divórcio (Dt 24) e a
tradição dela decorrente são igualmente sentenciados como não correspondentes à
vontade de Deus”. Em outras palavras, “Jesus coloca o seu conhecimento e a sua interpretação da vontade de Deus em
contraposição à compreensão dessa vontade, representada pela tradição farisaica
que se baseava nas Escrituras Sagradas” e, em “procedendo assim, Jesus
contradiz mais de uma vez aos textos das próprias Sagradas Escrituras”.25 Aqui,
é importante lembrar como o próprio Cristo fez questão de dizer, em mais um
episódio envolvendo a controvérsia do sábado, que Davi transgrediu tal lei e os
próprios sacerdotes também a violavam, pois o que estava em jogo era a “vida” e
esta, como será visto no capítulo 7, é mais valiosa que as regras. Ao final da
primeira controvérsia, Jesus acrescentou que Ele era “maior que o templo” e que
o “Filho do Homem até do sábado é Senhor” (Mt 12.1-8). Portanto, como Deus, Ele
tem todo o direito de desdizer o que havia sido prescrito em uma determinada
época e cuja finalidade já tinha cumprido seu tempo.
Quarta Antítese
Nos versículos 33 a 37, há mais uma revogação.
Enquanto a Lei não apenas permitia, mas em alguns casos até exigia a
necessidade do juramento (Nm 5.19), Jesus contraria terminantemente tal
raciocínio. É bem verdade que, conforme o nono mandamento deixa implícito,
havia juramentos ou promessas e ainda votos que não poderíam ser revogados sem
que isso deixasse de causar prejuízos à pessoa (Êx 20.16; Lv 19.12; Dt
23.21-23; SI 50.14). Uma vez que no “mundo judaico”, diz Barbaglio, “se fazia
muito uso do juramento, [ainda que] preocupava-se de evitar o nome de Deus”, os
judeus lançavam mão de um recurso adotando “fórmulas substitutivas”, isto é,
Jurava-se chamando como testemunho o céu, ou a
terra, ou Jerusalém. Prestava-se juramento até sobre a própria cabeça.
Grupos judeu-cristãos, apegados aos usos e costumes
do ambiente do qual provinham, aplicaram as palavras de Jesus a este problema:
qual forma de juramento é lícito adotar?
Assim, [a resposta encontra-se no] texto dos w.
34b-37, no qual é abolida toda forma que, direta ou indiretamente, chame Deus
sem causa. Mas admite-se o recurso à fórmula mais simples de juramento, que
consiste no repetir a afirmação ou a negação: Sim sim e não não.
Em síntese, na “nova
justiça”, na justiça do Reino, o que deve valer é a palavra pura e simples do
discípulo, tal como explicita o Salmo 15. Nada mais deve ser requerido da parte
de pessoas cujas ações correspondem às intenções e vice-versa.
Quinta Antítese
O texto dos versículos 38
a 42 referem-se a conhecidíssima “Lei do Talião” que possui paralelo na Lei
Mosaica (Êx 22.23-25; Lv 24.20; Dt 19.21). Enquanto a convivência em sociedade
impunha leis rigorosas que, sabe-se claramente, não se aplicavam de forma
igualitária a todos, pois se tal ocorresse não haveria necessidade de outras
leis, logo na sequência, para punir os legisladores que privilegiassem o
infrator poderoso em detrimento da vítima pobre (Êx 23.6-9). Esta é mais uma
que Jesus revoga. E o faz porque sabe que uma lei como esta, dada no passado,
com o intuito de coibir a violência, acabou (como quase tudo o que o ser humano
arbitra), completamente deturpada e uma desculpa para a vingança. A exceção
casuística foi transformada em regra ordinária, gerando uma “violência
divinamente autorizada”. Este é o raciocínio de Karl Hermann Schelkle, a
respeito dessa antítese, em particular:
Jesus acusa a casuística de torcer a lei no próprio
interesse, transformando-a em puro legalismo. Ele previne contra este abuso e
exige cumprimento do mandamento em todo o seu sentido.
Assim,
na norma jurídica da pena equivalente; olho por olho, dente por dente (Mt
5,38-41). Originariamente, esta lei foi dada
para pôr um freio à desmedida vingança do homem. A
casuística, porém, fez dela um direito à vingança, Jesus exige novamente o
sentido da lei, que pede justiça e, além disso, benignidade e ânimo
conciliador: “Não resistais ao mau! Se alguém te ferir na face direita,
oferece-lhe também a outra!” (Mt 5,39).
Sobre esta perícope,
Joachim Jeremias informa que no tempo de Jesus, tal lei, apesar de não estar
mais em vigor da forma estritamente expedida no Pentateuco, ainda assim
“constituía o fundamento de todo o direito civil”, ou seja, “era usada para
estabelecer o princípio de que o grau de punição devia corresponder à gravidade
do delito”. Cristo, continua o mesmo autor, “ao contrário, diz aos seus
discípulos: no tocante à vossa proteção legal através da lei civil, eu vos
proibo de apresentar queixa quando se vos ofende”. J. Jeremias explica que
Jesus “escolheu como exemplo uma ofensa particularmente grave, pois a bofetada
na face direita, a bofetada com o dorso da mão, é ainda hoje no Oriente a mais
humilhante”. Numa palavra:
Jesus, porém, — e isto é muito importante para
entender que este assunto não está falando de uma ofensa qualquer: a bofetada
humilhante situa-se numa ocasião bem determinada: atinge o discípulo por ser
tido como herege.
Isso não é dito expressamente, mas se deduz de um
fato constante: sempre que Jesus fala de ofensa, de perseguição, de maldição ou
de desonra para os seus, trata-se de um desprezo que eles recebem devido à sua
condição de discípulos. Se te desonram chamando-te de herege — diz Jesus — não
busques a proteção da lei; ao contrário, sendo capaz de sofrer o ódio e o
ultraje, de vencer o mal, de perdoar a injustiça, tu te mostrarás verdadeiro
discípulo meu. Aqui, de novo, é mister que alguma coisa tenha precedido: a
pessoa se pôs a seguir a Jesus, confessou publicamente sua adesão a ele e é isto
que provoca o ódio fanático.
Os demais exemplos concretos dados por Jesus — capa,
milha e empréstimo — referem-se a direitos e pontos discutidos pelos
escribas, pois, conforme
disse Bornkamm, eles atuavam também como juristas. O fato é que os discípulos
precisam ter disposição para agir de acordo com uma justiça diferente da que os
homens estabeleceram. Que desafio e contraste com os nossos dias quando parece
que, ao menor sinal de algo que possa trazer algum sacrifício de nossa parte
para viver a fé, gera-se protestos e outras ações para pressionar o governo a
fim de que haja uma atmosfera favorável à fé!
Sexta Antítese
A sexta e última das antíteses refere-se ao texto de
Levítico 19.18 com o acréscimo da tradição dos anciãos, ou seja, proveniente do
exercício teológico dos escribas e encontrada “nos textos de Qumran, de ódio
aos inimigos”. Ela não revoga o que lá se diz, mas amplia, considerável e
substancialmente, o mandamento de amor ao próximo, posto que inclui o inimigo.
O filósofo alemão Arthur Schopenhauer afirmou que, apesar de a caridade existir
como ideal de virtude em praticamente todos os tempos, ela “foi trazida à baila
teoricamente e estabelecida como a maior de todas, estendendo-se mesmo aos inimigos,
em primeiro lugar pelo cristianismo, cujo maior mérito consiste nisto”.32
Portanto, devido ao desprezo generalizado que havia por parte dos judeus, e não
apenas dos escribas, em relação aos publicanos, é que Jesus vai dizer que amar
apenas os amigos e os que os cumprimentavam, tornavam eles iguais aos seus
irmãos que trabalhavam cobrando impostos para o Estado. A exigência da “nova
justiça” era que o comportamento deles fosse imparcial, tal como o de Deus, que
faz com que a chuva e o sol, recursos naturais básicos e necessários à
sobrevivência humana, sejam distribuídos de forma igualitária a justos e
injustos. Como mais tarde será revelado (Jo 13.34), o tipo de amor requerido
por Jesus, na perspectiva do Reino, é o mesmo que Ele teve por seus discípulos
e vai muito além de amar o semelhante, sobretudo quando este geralmente se
parece consigo e pensa exatamente igual a mim.
Perfeição
Divina
Com essa exposição, fica claro que a intenção de
Jesus não é abolir a Lei, dizer que não há regras, mas justamente o contrário,
pois “Ele mostra que o cumprimento tem de exceder a simples letra da lei e que
o cumprimento tem de partir do coração”.34 Quanto às situações, foram
escolhidas propositalmente por serem as mais corriqueiras e cuja dependência
social das respostas era muito grande, daí o domínio exercido pelos escribas
sobre as pessoas. No último versículo (48) aparece uma vez mais a expressão teleios e, nesse contexto, conforme Werner Georg Kümmel, “Não pretende designar
uma perfeição moral que gradativamente pudesse ser conquistada pelo homem, mas
a pureza semelhante à de um animal a ser sacrificado”.35 Como se pode
facilmente depreender da conexão desse texto com o versículo 45, o que
demonstra que os seres humanos são filhos de Deus, é justamente o fato de estes
comportarem-se como o Pai celestial. Portanto, não se exige que os falíveis,
mutáveis e fracos seres humanos sejam como Deus no sentido mais impossível da
expressão, mas que se identifiquem com sua expressão humana — Jesus Cristo.
EXTRAÍDO DO LIVRO O SERMÃO DO MONTE
A JUSTIÇA SOB A ÓTICA DE JESUS.
CESAR MOISÉS CARVALHO.
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