Autor:
Claudionor de Andrade.
Embora seja visto, às vezes, como um manual de cerimônias
estressante e monótono, o livro de Levítico vai além das celebrações e ritos
que prescreve. No cânon divino, surge como parte viva, orgânica e essencial da
História Sagrada. Por essa razão, sua atualidade não pode ser ignorada por
nenhum cristão. Isso não significa, porém, que devamos submeter-nos à sua
liturgia que, como muito bem explica o apóstolo Paulo, cumpriu-se plenamente em
Cristo. Enveredando-se pelo caminho dos judaizantes, os gálatas caíram da
graça; quase pereceram.
Os
princípios teológicos e devocionais de Levítico, todavia, são eternos; eram
necessários ontem e continuam imprescindíveis hoje.
Nessa porção sagrada, deparamo-nos com três
palavras-chave: adoração, santidade e serviço. Tais proposições servem de
alicerce tanto à congregação israelita quanto à Igreja de Cristo. Ambas
precisaram aprender, cada uma a seu tempo, a adorar a Deus e a reconhecê-lo
como o Criador, Senhor e Mantenedor de todas as coisas. Em seguida, aprendemos com
Moisés e Arão que, para agradar ao Senhor, temos de apartar-nos do mundo e
separar-nos exclusivamente ao serviço divino. Eis o cerne da santificação
preconizada em cada seção do livro de Levítico.
Já em suas primeiras linhas, é possível concluir que a adoração
nada é sem a santificação, e a santificação, por sua vez, nenhum valor terá se
não resultar em serviços ao Reino de Deus. Aqui está o fulcro do terceiro livro
do Pentateuco. Ao chegarmos à última etapa desta obra, concluiremos: o Levítico
é tão vivo, hoje, como no dia em que Moisés, inspirado pelo Espírito Santo,
lavrou-o num papiro a caminho da Terra Prometida.
I - Levítico, um
livro por excelência.
À
semelhança dos demais livros do Cânon Sagrado, o Levítico destaca-se por sua
singularidade, origem e excelência. Vejamos, em primeiro lugar, a razão de seu
nome e de sua estrutura.
1.
O nome do livro. No original hebraico, o livro de Levítico é conhecido por
suas palavras iniciais: Vaicrá que,
literalmente, significam “e chamou” (Lv 1.1). Numa primeira instância, veremos,
nesse enunciado, um chamado indireto de Deus a Moisés a escrever a terceira
porção do Pentateuco. Em seguida, enxerguemo-la como a vocação direta de Deus a
Israel a reerguer-se como nação santa, profética, real e sacerdotal.
Vaicrá tem, ainda, mais duas traduções possíveis: “e
separou” e “e santificou”. Teologicamente, o chamado de Deus implica em nossa
separação do mundo e em nossa imediata santificação ao serviço de seu Reino.
Na
erudição judaica, o livro é conhecido também como Torath_Kohanim
– A Lei dos Sacerdotes.
Já
na Septuaginta, a versão grega do Antigo Testamento, o livro recebe o nome de
Leuitikon, denotando-lhe o tema e o propósito: as coisas pertencentes ao
ministério dos levitas. No latim, a sua designação é Leviticus.
E, tendo em vista a origem românica do idioma português, nossos tradutores
houveram por bem denominá-lo de Levítico pelas razões já apontadas.
2.
Estrutura do livro. Terceiro livro das Sagradas Escrituras, o Levítico é
composto por 27 capítulos, 859 versículos e, aproximadamente, 24 mil palavras.
Nele, são encontrados mandamentos, proposições, narrativas e profecias. Em suas
páginas, há 26 promessas quanto ao proceder obediente de quem professa adorar a
Deus.
3.
Singularidade do livro. O Levítico é um livro singular por
duas razões: 1) É o único manual que temos na Bíblia referente à forma correta
de se adorar a Deus; e 2) Embora dirigido aos sacerdotes, foi redigido por um
profeta (Lv 1.1).
4.
As divisões de Levítico. Utilizaremos A
Bíblia Explicada para esboçar o Levítico. Esse livro sagrado, de acordo
com S. E. Macnair, pode ser dividido em nove seções principais: 1) As ofertas
(caps. 1—6.7). 2) A lei das ofertas (caps. 6.8—7.38). 3) Consagração (caps.
8.1—9.24).
4)
Uma transgressão e um exemplo (cap. 10.1—20). 5) Um Deus santo exige um povo
santo (caps. 11—15). 6) Expiação (cap. 16). 7)
A
conduta do povo de Deus (caps. 17 e 22). 8) As festas de Jeová (cap. 23). 9)
Instruções e avisos (caps. 24—27).
5.
Origem divina e humana do livro. À semelhança dos demais
livros das Sagradas Escrituras, o Levítico é um texto verdadeiramente humano e
verdadeiramente divino. Sua autoria _cabem patente logo no primeiro versículo:
“E hamou o SENHOR a Moisés, e falou com ele da tenda da congregação” (Lv 1.1).
O
livro tem como fonte o próprio Deus e, como medianeiro, Moisés.
Inspirado
pelo Espírito Santo, o profeta e legislador dos hebreus redigiu-o e
encarregou-se de transmiti-lo aos levitas e aos demais filhos de Israel, seus
leitores e ouvintes imediatos, e, depois, a nós, a Igreja de Cristo. É uma
obra, pois, de dupla procedência e autoria: divino-humana.
6.
Excelência literária do livro. Que o livro de Levítico
é inspirado pelo Espírito Santo, não há dúvida. Nós ouvimos a voz de Deus em
cada uma de suas páginas; é um texto comprovadamente divino. Todavia, o que
podemos dizer acerca de suas qualidades literárias?
Apesar
de ser uma obra técnica, o Levítico não se perde naqueles jargões e tecnicismos
que caracterizam os manuais. O seu autor humano, sempre guiado pelo Espírito de
Deus, redigiu-o de tal forma que, passados mais de três milênios, sentimo-lo
como se tivesse acabado de ser escrito. É importante observarmos que a sua
redação não secciona a narrativa pentateutica da
peregrinação dos israelitas à Terra Prometida.
Moisés
escreveu o Levítico com tanto “engenho e arte”, que se tem a impressão de que
essa porção da Bíblia Sagrada é a continuidade do Êxodo e a transição natural
para os livros de Números e Deuteronômio.
Temos,
pois, diante de nós, uma obra de comprovada excelência literária. É bela e
sublime; em seu gênero, inigualável.
II.
A Certeza da Autoria Mosaica
Neste
tópico, ressaltaremos as qualidades literárias de Moisés. Em seguida, veremos o
idioma e a escrita usada pelo autor sagrado.
1.
Deus, o autor divino. Do primeiro ao último versículo de
Levítico, sente-se claramente que Deus é o seu autor (Lv 1.1). Tal convicção
não advém apenas das reivindicações formais do livro; advém, principalmente, da
experiência do leitor com a obra. Pelo menos essa é a minha experiência
pessoal.
Do
início ao final de Levítico, o Senhor dirige-se a Moisés em 38 ocasiões
diferentes. Patenteia-se, dessa forma, a origem divina da terceira seção do
Pentateuco. Não há dúvida: é a palavra inspirada, inerente e completa de Deus.
2.
Moisés, o autor humano. Não exagero ao afirmar que Moisés
foi o homem mais sábio que o mundo já conheceu. É claro que faço essa afirmação
depois de excetuar o Senhor Jesus Cristo que, além de sapientíssimo, era e é a
própria sabedoria. Aliás, Ele é a Palavra de Deus encarnada. Nesse sentido,
toda a palavra do Levítico era, essencial e tipologicamente,
o oráculo do Filho de Deus.
Vejamos
algumas qualidades literárias de Moisés.
Educado
na corte faraônica, Moisés tornou-se um homem poderoso em palavras e obras. Sua
cultura não se restringia ao Egito; era universal.
Ele
podia transitar por todo o Oriente Médio sem constrangimento algum.
Já
refugiado em Canaã, entrou em contato com a escrita sináitica:
um
meio termo entre a pictografia egípcia e o alfabeto assurítico, que, no tempo
de Esdras, seria adotado pelos escribas judeus.
Ali,
nos prados midianitas, Moisés foi induzido, providencialmente, a trocar a
primeira forma de escrita pela segunda. Em termos técnicos, pode-se considerar
os signos sinaíticos como uma espécie de alfabeto.
Será
que os intelectuais egípcios conheciam os signos do Sinai? Talvez.
Mas,
à semelhança dos chineses, resolveram manter o seu complexo sistema de
linguagem, a _m de não popularizar o conhecimento.
O
estilo literário de Moisés foi divinamente forjado no deserto. Fugindo às
ladainhas egípcias, foi conduzido didaticamente a sair da movediça e fantástica
literatura faraônica até firmar-se num estilo firrme, racional e próprio da literatura
histórico-profética. Nesse período, deixa-se impregnar pela dicção poética,
campesina e pastoral de seu povo. E, assim, depois de quarenta anos no exílio
e, após muito pensar, o filho de Anrão e Joquebede estava preparado a lavrar as
palavras que Deus, por intermédio do Espírito Santo, assoprar-lhe-ia na alma.
3.
O idioma original. Ao ser intimado por Deus a ser o pai da nação eleita,
Abraão ainda não falava o hebraico, embora fosse reconhecido como hebreu (Gn
14.13). Seu idioma materno era, mui provavelmente, um caldaico primitivo que
ainda lutava por desvencilhar-se das influências dialetais da Acádia. Nesse
sentido, a língua de suas peregrinações pode ser classificada como
pré-hebraica. Isso porque, em suas caminhadas por Canaã foi mesclando sua
língua materna aos diversos falares cananeus.
Como
estes se expressavam em línguas igualmente semíticas, o patriarca não teve
dificuldades em transitar pelos diversos reinos cananeus e, com estes, negociar
e estabelecer alianças. O capítulo 14 de Gênesis mostra, implicitamente, a
desenvoltura linguística de Abraão entre os povos de Canaã. Seria como um
lusófono, alguém que fala português, a andejar numa área onde predominasse a
hispanofonia, uma comunidade linguística que envolve todas as pessoas que têm
em comum a língua espanhola.
Nos
lábios dos patriarcas, a língua hebraica foi sendo paulatinamente formada ao
longo de cinco séculos: do chamado de Abraão ao chamamento de Moisés. Um
período que vai, de acordo com a cronologia bíblica geralmente aceita, do ano
2.000 a 1.500 a.C.
A
estadia de Israel no Egito foi decisiva à consolidação do idioma hebraico. Ali,
na distante Gósen, isolada no delta oriental do Nilo, os israelitas puderam
desenvolver o seu idioma, livres das influências linguísticas dos cananeus e
dos egípcios. Apesar de residirem no Egito, os filhos de Israel não mantinham
contato com os habitantes da terra, uma vez que estes os consideravam
abominação (Gn 46.34). Os súditos de Faraó não toleravam pastores de ovelhas,
pois tinham o gado vacum e ovino como divindade.
Por
conseguinte, quando o Senhor chamou Moisés a escrever os primeiros cinco livros
da Bíblia Sagrada, a língua hebraica já estava devidamente formada.
Faltava-lhe, porém, um sistema de escrita. Que signos adotar? Os hieróglifos
egípcios? Ou a escrita cuneiforme das antigas Suméria e Acádia? Se Moisés
tivesse optado quer pelos primeiros quer pela segunda, hoje não teríamos acesso
às revelações do Gênesis e às narrativas da redenção de Israel.
4.
A escrita pentatêutica. Foi nesse período que Moisés
descobriu a escrita sinaítica. Se comparada aos hieróglifos egípcios e às
cunhas mesopotâmicas, ela pode ser considerada, de fato, um sistema alfabético.
No
entanto, prefiro classificá-la de pré-alfabética por duas razões: ela ainda
estruturava-se em sinais pictóricos, e estava bem longe de usar vogais em seus
fonemas. Mesmo assim, era um avanço admirável em relação às grafias dos vales
do Nilo e do Eufrates.
O
que poderia ter acontecido se Moisés, ao invés de usar a escrita sinaítica,
tivesse optado pela egípcia ou pela mesopotâmica? Certamente, hoje, a História
Sagrada seria um amontoado de signos incompreensíveis e sujeitos às mais
bizarras interpretações. Aliás, nem os próprios israelitas achariam nelas
qualquer sentido. Mas, graças a Deus, o profeta foi não apenas inspirado a
escrever inerrantemente o Pentateuco, como também foi dirigido, pelo mesmo
Espírito, a escolher o sistema de escrituração mais eficaz da época, para
narrar os princípios da História Sagrada até a libertação completa dos hebreus.
O alfabeto sinaítico (chamemo-lo assim) foi rapidamente assimilado pelos sábios
de Israel que, sempre dirigidos e supervisionados pelo Espírito Santo, puderam
dar continuidade à História Sagrada. Josué, Samuel, Davi e Gade, por exemplo,
tornaram-se mestres na escrita do Sinai; grandes literatos (Js 24.26; 1 Sm
10.25; Sl 45.1). Aliás, pelo que inferimos de algumas passagens, era um sistema
já bastante utilizado naquela região (Jz 8.14).
Na
verdade, a escrita sinaítica nasceu entre os fenícios que, já naqueles dias,
dominavam o comércio na região do Oriente Médio. E, para agilizar suas
escriturações contábeis, entenderam por bem criar um sistema de registro mais
dinâmico e eficaz. E, tendo como base os hieróglifos egípcios, elaboraram um
pré-alfabeto que, séculos depois, seria adotado e aperfeiçoado pelos gregos e
romanos.
Se
bem atentarmos à história de Israel, perceberemos que, durante o exílio
babilônico, os judeus vieram a trocar, de fato, o seu alfabeto pelo assurítico.
Denominado escrita quadrática, devido à forma de suas letras, foi introduzido
na cópia das Sagradas Escrituras mui provavelmente por Esdras. O eruditíssimo
doutor e escriba, aliás, foi quem procedeu a última reforma editorial e gráfica
do Antigo Testamento. Sem o seu trabalho, as Sagradas Escrituras corriam o
risco de se tornarem um todo incompreensível. E, dessa maneira, viriam a cair
no esquecimento.
O
hebraico, como o lemos hoje no Antigo Testamento, é um legado tanto de Moisés
quanto de Esdras, intermediados por filólogos como os homens de Ezequias (Pv
25.1).
A
Moisés coube uma tripla e dificílima tarefa: adaptar a escrita sinaítica às
necessidades linguísticas de Israel; gramaticar o hebraico e, finalmente,
torná-lo uma língua literária. Nesse sentido, Moisés está para o hebraico como
Martinho Lutero (1483-1546) está para o alemão.
Sem
o trabalho de ambos, separados por trinta séculos, hoje não teríamos nem a
língua hebraica nem a alemã. Moisés, por esse motivo, não foi apenas o maior
profeta da História Sagrada, foi também um dos maiores linguistas e filólogos
que o mundo já conheceu. Infelizmente, os eruditos seculares, sempre
preocupados em desconstruir a Bíblia, ainda não atentam a esse fato. Quanto a
Esdras, coube-lhe uma missão dupla e igualmente dificílima. Em primeiro lugar,
adaptou o alfabeto assurítico, usado pelos falantes do aramaico, ao hebraico do
exílio. Já resolvido o problema alfabético, o grande e bem-conceituado doutor
pôs-se a revisar linguisticamente as Escrituras Sagradas até então lavradas.
Sua
revisão, frisamos, não avançou além do campo filológico; ele não fez nenhuma
mudança de conteúdo, pois a própria Escritura, a fim de preservar-se, proibia-o
terminantemente (Pv 30.5,6; Ap 22.18.19). E, sobre as adaptações linguísticas,
os editores sagrados não esconderam a sua participação (Gn 22.14; Dt 3.14; 1 Sm
5.5).
A
mudança da escrita sinaítica para o alfabeto assurítico, conhecido hoje como
hebraico, começou a ser feita no exato momento em que Daniel e seus
companheiros chegaram à corte babilônica. Eles foram não somente obrigados a
aprender a língua e a cultura dos caldeus, mas também constrangidos a assimilar
o seu alfabeto (Dn 1.4). Afinal, os documentos oficiais eram redigidos,
inicialmente, em arameu e no alfabeto assurítico, e, depois, nas demais línguas
e alfabetos.
Hoje,
temos o livro de Levítico na Bíblia Hebraica, não mais na escrita sinaítica,
mas no sistema alfabético assurítico. Concernente à língua hebraica, em si, o
que podemos dizer? O hebraico falado no tempo de Esdras seria perfeitamente
inteligível a um israelense de nossos dias. Deus, portanto, reservou os meios
mais eficazes (alfabeto, língua e trabalho editorial), para que tivéssemos,
hoje, a sua Palavra como Ele a inspirou a Moisés e aos demais profetas.
III.
Ocasião o Nascimento de Israel.
Ao
datarmos a redação do livro de Levítico, temos de levar em consideração três
coisas muito importantes: a ocasião da obra, a peregrinação e o aparente atraso
e, finalmente, o estabelecimento da congregação israelita no deserto.
1.
A data da redação do Levítico. De acordo com a
cronologia bíblica geralmente aceita, o livro de Levítico foi escrito por
Moisés em 1445 a.C.. É claro que essa data não pode ser considerada exata, mas
também não é absurda nem pode ser descartada. E, se levarmos em conta Êxodo
40.7, veremos que a redação da terceira parte do Pentateuco começou
a ser feita um ano depois de os israelitas terem saído do Egito. Foi nessa
ocasião, ainda, que o Senhor ordenou fosse erguido o Santo Tabernáculo no
deserto.
2.
O período do Levítico. Moisés escreveu o Levítico num
momento particularmente difícil da história de Israel. Os israelitas tinham
acabado de sair de uma segunda apostasia. A primeira, como se recorda, foi o
episódio do bezerro de ouro (Êx 32). Mas a segunda, embora não tivesse como
motivação a idolatria, foi pior do que a primeira; tinha como fundamento a
incredulidade que, a partir daquele momento, tornar-se-ia crônica na vida dos
judeus.
Embora
conhecessem a promessa feita por Deus a Abraão, os hebreus, contaminados pelo
desânimo, não se animaram a apossar-se de Canaã. Foram, por isso, condenados a
peregrinar no deserto por quarenta anos (Nm 14.34). Em meio a essa rebelião e
apostasia, foi que Moisés, inspirado pelo Espírito Santo, escreveu o Levítico,
a _m de ensinar o povo a adorar o Deus Santo, Vivo, Único e Verdadeiro.
3.
A peregrinação e o atraso. Não fossem as duas grandes
apostasias, Israel teria chegado a Canaã em, no máximo, dois meses. Mas, em
consequência de seus pecados, os hebreus tiveram de voltear o Sinai por um
período de quarenta anos, até que toda aquela geração de incrédulos caísse no
deserto e, no deserto, fosse sepultada. Sem esse longo contratempo, o livro de
Levítico poderia ter sido escrito em Canaã, sob circunstâncias mais favoráveis.
E, quem sabe, o lamentável episódio de Nadabe e Abiú teria sido igualmente
evitado, pois ambos, frutos daquela incredulidade, eram tão culpáveis quanto os
dez espias que esparramaram o desalento pelo arraial hebreu.
Todavia,
como o cronograma redentivo de Deus não pode ser atrasado pelas circunstâncias,
aprouve ao Senhor entregar as regras e mandamentos levíticos em pleno Sinai. E,
dessa forma, a nova geração de Israel adentraria Canaã com uma disposição
renovada, apossando-se de vez da terra que mana leite e mel. Sendo assim,
podemos dizer que o atraso ocorrido na peregrinação dos israelitas em direção à
Terra Prometida foi providencial e didático. Sem a longa estadia no deserto,
Israel jamais alcançaria o seu status de
nação profética, sacerdotal e real.
4.
A congregação no deserto. Foi nesse período conturbado, que
Deus ordenou a construção do Santo Tabernáculo. Neste ponto, vejo-me obrigado a
levantar esta questão: se não fossem as duas apostasias de Israel, no Sinai, a
tenda de adoração seria necessária?
Que
os israelitas careciam de um centro de adoração ninguém o pode negar.
Entretanto, se a peregrinação tivesse durado apenas sessenta dias, um tempo
mais do que razoável, acredito que, ao invés de um santuário portátil, os
israelitas seriam instruídos, pelo Senhor, a erguer uma casa definitiva. Isso,
porém, só viria a acontecer quatro séculos depois da entrada de Israel em seu
território. A desobediência traz retardos e atrasos em todos os sentidos. Eis
porque devemos primar por uma vida de obediência ao Senhor.
IV.
Objetivos de Levítico.
À
primeira vista, o livro de Levítico é um manual de cerimônia como outro
qualquer. Todavia, uma leitura mais atenta leva-nos a ver, em suas páginas,
pelo menos cinco objetivos: doxológico, hagiológico, didático, diaconológico e
missiológico.
1.
Objetivo doxológico. No Êxodo, o Senhor demanda de seu povo uma adoração
perfeita. Já no Levítico, ensina Ele, a esse mesmo povo, como alcançar esse
alvo. Em suas páginas, observamos que, além da intenção do adorador, a adoração
tem de processar-se de maneira correta e santa, pois o Senhor busca os que o
honram em espírito e em verdade. Por isso, a partir do sacerdócio araônico, a
adoração passa a ser considerada um serviço a ser prestado regular e
corretamente ao Deus Santo e Verdadeiro.
A
doxologia é o primeiro e mais elevado objetivo do livro de Levítico.
Eis
porque, no cerne de todo sacrifício e oferta, tem de estar o coração e a alma
do adorador. Menos que isso é inaceitável.
2.
Objetivo hagiológico. A hagiologia não se limita a estudar
a vida dos homens santos; seu objetivo inclui a pesquisa de coisas tidas como
santas e o processo de santificação que as acompanha. Por essa razão, temos de
ver os estágios de santificação de Israel como o segundo objetivo de Levítico.
Isso porque, o Deus Santo e Verdadeiro requer, de seus adoradores, a mesma
santidade e a mesma verdade. Aliás, o texto áureo desse livro é bastante claro
quanto aos seus objetivos hagiológicos:
“Fala
a toda a congregação dos filhos de Israel, e dize-lhes: Santos sereis, porque
eu, o SENHOR vosso Deus, sou santo” (Lv 19.2).
A
hagiologia bíblica abrange um duplo processo. O primeiro é separar o homem do
mundo, para que ele, pelos meios da graça, santifique-se ao Senhor. O segundo
leva esse mesmo homem, já separado do mundo, a santificar-se para o serviço de
Deus. Conclui-se que a doxologia só há de ser perfeita se a hagiologia for
completa na vida de quem professa amar e servir ao Senhor.
3.
Objetivo didático. Mas, como alcançar os objetivos doxológicos e
hagiológicos demandados no livro de Levítico? A fim de que a adoração de Israel
fosse perfeita, o Senhor providenciou um amplo e eficaz aparato didático.
Somente assim o perfeito e santo Deus seria perfeita e santamente adorado.
Devemos,
portanto, ver como didáticos os livros de Êxodo e de Levítico, pois o objetivo
de ambos é conduzir Israel, para que este, perfeita e completamente instruído,
viesse a servir a Deus em espírito e em verdade.
Se
levarmos em conta os ensinos das epístolas endereçadas aos gálatas e aos
cristãos hebreus, veremos o Santo Tabernáculo como um jardim de infância, no
qual os israelitas, sempre conduzidos pelas mãos de Arão e de Moisés, deveriam
aprender os primeiros rudimentos das verdades divinas (Gl 3.24,25).
Infelizmente,
eles recusaram-se a crescer na graça e no conhecimento do Senhor; optaram por
ficar na escola de pré-alfabetização; não avançaram jamais. Vendo esse retardo
atingir inclusive os cristãos, o autor sagrado exorta-os a deixar os tipos e
emblemas dos bens futuros e, nestes, fixarem-se (Hb 9.11; 10.1).
Hoje,
não são poucas as igrejas evangélicas gentias que, embevecidas pelo esplendor
do culto hebreu, buscam reviver festas e cerimônias judaicas, como se o templo
cristão fosse mera sinagoga. Nosso compromisso com Israel é orar pela paz de
Jerusalém, para que os filhos de Abraão retornem o mais depressa possível à sua
herança, conforme preconizam
os santos profetas. Quanto a nós, já saímos do jardim de infância espiritual.
Eis porque devemos cumprir a terceira ordenança de Jesus: evangelizar até aos
confins da terra.
4.
Objetivo diaconológico. Que Israel fora chamado a servir a
Deus era algo que não podia ser ignorado nem pela nação como um todo, nem pelo
adorador em particular. A doxologia, a hagiologia e a didática tinham de
resultar, naturalmente, na diaconia de quem professa conhecer o Deus Único e
Verdadeiro. Israel deveria erguer-se, necessária e
urgentemente, como a comunidade servidora por excelência. Mas não foi isso que
aconteceu. Os judeus tardaram em reconhecer a natureza de sua missão como
filhos de Deus e herdeiros de Abraão. Se nos detivermos no espírito de
Levítico, constataremos que o seu principal objetivo era preparar um povo
obreiro ao Senhor.
5.
Objetivo missiológico. O verdadeiro santo não é aquele que
se limita a não praticar o mal; é aquele que, apartando-se do mal, deleita-se
em fazer o bem e servir a Deus. Refugiar-se num convento pode até ser eficiente
para quem busca fugir à avareza, à prostituição e às intemperanças.
Todavia,
tal refúgio impedir-nos-á de praticar o bem. E quem sabe praticar o bem e não o
pratica ofende a Deus; faz-se tão pecador como aquele que, intemperando-se,
lança-se a todos os excessos. Por essa razão, entendamos de uma vez por todas:
fomos salvos para divulgar o testemunho de Jesus Cristo.
Tal
ensino pode ser encontrado na essência de Levítico. Portanto, à semelhança dos
demais livros das Sagradas Escrituras, ele é, também, um livro missiológico. Se
Israel, compenetrando-se de sua missão como povo de Deus, observasse os seus
mandamentos, teria partido dali mesmo, em pleno deserto, a anunciar as
grandezas de Deus. Mas, recolhido aos seus privilégios, limitou-se a reagir às
agressões dos gentios. De que modo estamos agindo como Igreja de Deus? Agimos?
Ou limitamo-nos a reagir às circunstâncias? Santifiquemo-nos! Testemunhemos de
Cristo em toda e qualquer circunstância.
Conclusão
Conforme
tivemos a oportunidade de ver, o livro de Levítico não é um simples manual de
cerimônias. Se o lermos com reverência e cuidado, constataremos estarmos diante
de um livro, cuja principal reivindicação é a nossa santificação para servir a
Deus. O Senhor intima-nos a ser santos, porque Ele é santo. Mas que a nossa
santidade não venha a isolar-nos do clamor do mundo. Embora separados deste,
neste ainda estamos. Eis porque, como santos de Deus, temos o dever de apregoar
a mensagem do Evangelho por todo o mundo.
O
livro de Levítico continua tão atual, hoje, como no dia em que Moisés,
inspirado pelo Espírito Santo, o escreveu. Que Deus nos ajude e, por intermédio
do Espírito Santo, santifique-nos a cada dia.
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