Retirado do livro : A Igreja do Arrebatamento
O Padrão dos Tessalonicenses para estes Últimos Dias
Thiago Brazil.
Paulo
é um escritor muito atento ao seu tempo; não é à toa que, quando esteve entre
os gregos no Areópago, como registra Lucas em Atos, o apóstolo utilizou de toda
sua retórica, certamente advinda de sua formação educacional num contexto
romano. Agora, escrevendo aos tessalonicenses,
o missionário sabe que a temática relativa às últimas coisas é uma questão a
ser encarada de forma complexa, pois, em virtude da presença do forte
politeísmo existente ali naquela cidade e com muito mais atenção à questão do
orfismo e do culto a Dioniso, Paulo precisa esclarecer bem os tessalonicenses
sobre problemas escatológicos.
Reflitamos, então, sobre a abordagem
acerca das coisas futuras presente em 1 Tessalonicenses, tomando como pano de
fundo a informação de que, por influência de sua tradição cultural, aqueles
irmãos já possuíam crenças sobre ressurreição, vida post mortem, num conceito de
parusia, etc., todas atreladas à veneração das divindades ali reverenciadas.
A
Imensa Variabilidade Cúltica em Tessalônica
Sendo a cidade de destaque na região
da Macedônia — considerada por alguns como a “segunda Roma”12 —, Tessalônica abrigava uma
infinidade de tradições e práticas
cúlticas. Havia uma forte influência da religiosidade egípcia e greco-romana;
na verdade, instalou-se naquela cidade um conjunto de ações religiosas sincréticas,
chegando ao ponto de construir-se naquela cidade um templo destinado à adoração
simultânea de deuses romanos e egípcios.13
As divindades reverenciadas
majoritariamente em Tessalônica até antes do primeiro século da era cristã eram
Apolo, Atena e Hércules. Todavia, já no contexto da escrita da carta, as
religiões mistéricas, assim como o culto a Dioniso, Asclépio e Deméter, ganharam
grande espaço no seio daquela comunidade. Como nos afirma Ramos:
O
mundo religioso de Tessalônica “compilava” religiões estrangeiras
juntamente com os cultos locais. As evidências históricas que nos chegam
falam-nos da adoração ou veneração de muitos dos deuses do
panteão grego, tais como: Zeus, Apolo, Atena, Héracles, Afrodite, Deméter,
Perséfone, Poseidon, Pan (Fauno) e Hades, entre outros. Várias divindades
gozavam, em Tessalônica, de uma proeminência
especial, destacando-se, neste
sentido, Cabirus [...],
Dionísio e os deuses
Egípcios, aos quais também nos referiremos. (RAMOS, 2014, p.32)
Ao tomarmos conhecimento desse
aspecto histórico da comunidade em Tessalônica, podemos refletir no enorme
desafio missionário que se impôs a Paulo na evangelização daquela cidade. Se o
anúncio das Boas-Novas não houvesse sido feito debaixo da orientação e graça
divinas, Jesus seria apenas mais um dos deuses a entrar na lista da
religiosidade sincrética dos tessalonicenses.
É por isso que a conversão daqueles
irmãos constitui-se como um enorme milagre em si mesmo. Em primeiro lugar,
porque o anúncio do amor sacrificial de Jesus, que, literalmente, se entregou
pela humanidade, foi capaz de tocar os corações entenebrecidos dos
tessalonicenses a ponto de estes acreditarem na mensagem salvífica.
É necessário lembrar que havia todo
um repertório de histórias fantásticas associadas aos deuses que eram cultuados
ali. Diante da extraordinária narrativa de Paulo sobre Jesus de Nazaré, aquela
população poderia identificá-la apenas como mais uma narrativa mítica dentre
várias contadas e recontadas naquela cidade. O poder da Palavra, todavia, fez
com que a fé para a salvação brotasse no coração daqueles irmãos.
A proximidade temporal, de menos de
30 anos, corroborou para o estabelecimento do cristianismo entre os
tessalonicenses. A verdade do evangelho ante a ficcionalidade dos mitos
greco-romanos constituiu-se como o
alicerce para edificar uma igreja viva e dinâmica naquela região
culturalmente politeísta.
Outro enorme desafio enfrentado por
Paulo para concretizar o discipulado dos tessalonicenses era a naturalidade com
que estes entendiam o sincretismo religioso. Uma vez sendo o discurso dos
missionários cristãos apresentado àquela comunidade, corria-se o risco de que o
mesmo fosse apenas assimilado e
associado às outras práticas religiosas já vigentes.
Entre os cultos e exercícios
espirituais praticados em Tessalônica, havia vários conceitos que poderiam
muito bem ser equiparados ao do recém- chegado cristianismo. Coube a Paulo e a
sua equipe, no pouco tempo que lhe foi possível ficar ali, defender a
necessidade de um exclusivismo cúltico para Jesus. Diferentemente dos deuses do
paganismo egípcio-greco-romano que os tessalonicenses estavam acostumados, a
adoração a Jesus Cristo exigia separação e consagração total.
Sobre o caráter sincrético da
religiosidade tessalonicense, afirma-nos
Abreu:
A
terceira característica era seu caráter plurirreligioso, pois, como outras
cidades de sua época, ela mantinha certa dependência ideológica para com a
capital do Império; isso obrigava seu povo a cumprir os
cultos ao imperador, mas não lhe proibia
de cultivar suas próprias práticas religiosas, de modo que a cidade prestava
culto a divindades egípcias, gregas e asiáticas, possibilitando uma convivência
entre essas crenças e favorecendo o sincretismo (ABREU, 2015, p.83).
Diante de um choque de realidade tão
grande, a possibilidade de haver uma rejeição completa de tudo o que estava
sendo anunciado era muito grande. Contudo, o efeito foi muito eficaz na vida de
uma parcela considerável de pessoas de Tessalônica. Houve uma significativa
adesão, e, como o próprio apóstolo testemunha, os tessalonicenses
converteram-se dos ídolos a Deus (ver 1 Ts 1.9).
A variabilidade cúltica impunha-se a
Paulo como um enorme desafio a ser superado, uma vez que a religiosidade, como
se sabe, transcende os aspectos litúrgicos ou ritualísticos da própria
religião, associando-se, na maioria dos casos e de maneira íntima, a
componentes sociais e culturais de um povo.
Dessa forma, não bastava anunciar
Cristo como salvador das almas — o orfismo muito difundido em Tessalônica já
fazia isso. Era necessário demonstrar
que Jesus mudava
o modo de
viver das pessoas.
Daí, tantas orientações práticas que se podem
encontrar no curso de todas as duas epístolas.
Conheçamos, então, algumas das
divindades e dos cultos reverenciados em Tessalônica para, assim,
compreendermos ainda mais o significado de algumas exortações e orientações
paulinas em 1 Tessalonicenses.
Cabiros
e o Mito da Divindade que Socorre os Vulneráveis
Cabiros são entidades da religião
pública grega que paulatinamente foram apropriadas pelos cultos dos mistérios.
Segundo a tradição helênica, eram divindades mistéricas (de quantidade
variável; conforme algumas narrativas três; em outras, quatro ou seis) e filhos
de Hefestos. Seu culto estava associado a rituais sexuais e eram protetores dos
navegantes.14 Já de acordo com as lendas oriundas
da Samotrácia (At 16.11) — região de onde provavelmente o culto a essas
entidades migrou para Tessalônica e popularizou-se —, os Cabiros eram três,
sendo que um dos irmãos foi assassinado de maneira covarde e cruel pelos outros
dois.15
Após o assassinato, a cabeça do
morto foi enterrada no sopé do Monte Olimpo para que jamais fosse encontrada.
Todavia, por benevolência dos deuses, este ser volta à vida, devotado, agora, a
ajudar àqueles que enfrentam dificuldades no mar, os que são escravizados e
oprimidos militarmente.16
O culto aos Cabiros estava
intimamente associado a possessões violentas, com manifestações de
agressividade e gritos amedrontadores. Segundo uma tradição antiga, apenas os
iniciados nos mistérios poderiam invocá-los, sob a pena de serem sacrificados
aqueles que, de maneira inadvertida, ousavam chamar essas divindades.
Dessa maneira, foi mais do que
natural tal culto popularizar-se e tornar-se o mais importante entre a maior
parte da população, que era majoritariamente pobre e escrava. Havia, assim, a
crença de que o Cabiro assassinado
regressou da morte para ajudar os mais frágeis e vulneráveis.
Destaque-se aqui, ainda que sinteticamente, que a ideia de uma divindade que
retorna para
ajudar os desvalidos e perseguidos
não era uma novidade entre os tessalonicenses. A grande questão no discurso de
Paulo diz respeito à motivação do retorno de Jesus e aos acontecimentos que se
desencadearão a partir desse fato.
Como afirma WANAMAKER (1990, p.5),
com o passar do tempo, o culto a essas
divindades acabou sendo incorporado pela aristocracia — que, naquele contexto
histórico, governava Tessalônica localmente — e, dessa maneira, foi
institucionalizado, a ponto de haver registro de moedas cunhadas com a efígie
do deus.
Nesse novo contexto, os Cabiros
tornaram-se as divindades favoritas dos ricos, que, por sua vez, as utilizavam
como elemento de unificação comunitária e defendiam que o ataque a tais seres
era sinônimo de ataque à própria comunidade. Entretanto, os Cabiros tornaram-se
rejeitados pela população mais pobre exatamente por sua associação com a
aristocracia que a oprimia.17 Em determinado momento histórico, os
Cabiros tornaram-se as divindades patronas de Tessalônica (Green, 2002, p.3).
Sobre os testemunhos antigos acerca
dos rituais celebrativos aos Cabiros, Ramos afirma:
Estrabão
descreve os crentes ou adoradores neste culto e noutros similares como
«uma
espécie de pessoas inspiradas, sujeitas ao delírio báquico, e, disfarçados de
ministros, que espalham o terror na celebração de ritos sagrados por meio de
danças de guerra, acompanhadas de armas e clamores». Não é possível
determinarmos com exatidão como era celebrado o culto de Cabiros em
Tessalônica, porém, aparentemente o Falo tinha um papel preponderante nas
celebrações. (RAMOS, 2014, p.32)
Diante desse quadro religioso, Paulo
ainda enfrentava outro sério problema: a associação entre o mito dos Cabiros e
a história de Jesus. Que credibilidade receberia um pregoeiro que anunciasse
uma nova divindade com uma história
tão similar a do deus local? Um Deus
que se associasse aos mais vulneráveis, que fora morto por seus irmãos, que
ressuscitara e agora vivia para ajudar pobres e escravos. De fato, esse era um
enorme desafio, pois, ao que parece, naturalmente haveria uma rejeição, em
virtude da opção de permanecer com o
deus local.
Além disso, a institucionalização do
culto aos Cabiros por parte da aristocracia e a rejeição da parcela mais pobre
da população conduziriam a outro grave problema: a introdução de outro culto
soaria aos responsáveis pelo comando da cidade como um desrespeito à divindade
local; já entre os mais frágeis, a associação entre Jesus de Nazaré e os Cabiros
produziria um desprezo imediato ao primeiro.
Conforme lemos na epístola aos
tessalonicenses, houve, no entanto, uma boa parcela da população da cidade que
creu no anúncio das Boas-Novas trazidas por Paulo e seu grupo de cooperadores.
De forma que Paulo escreve àquela igreja assegurando que a salvação que eles
receberam teria seu ápice não num ritual de iniciação misterioso, com a
necessidade de práticas sexuais coletivas, e sim num encontro triunfal com o
redentor nos ares, juntamente com todos os santos que ressuscitarão.18
Dioniso como Simulacro de Jesus
O estabelecimento do culto a Jesus
passava ainda pelo desafio de superar a forte imagem de Dioniso entre os
tessalonicenses. Assim como os Cabiros, Dioniso é um deus “importado” pela
comunidade de Tessalônica, muito provavelmente como resultado das múltiplas
interações sociais e culturais estabelecidas naquela destacada cidade da
província da Macedônia.
Assim como no mito de Cabiros, há
muitas similaridades entre a história de Jesus e os mitos que se relacionam a
Dioniso; senão, vejamos: Dioniso/Baco é filho de Zeus — potestade máxima do
Olimpo — e nasceu de forma miraculosa. Fruto de um adultério, Zeus, disfarçado
em forma humana, engravidou a mortal Sêmele; Hera, a esposa do soberano do Olimpo,
quando
soube do fato, também se disfarçou de humana e manipulou Sêmele para que esta
exigisse que seu amante apresentasse a sua verdadeira face.
Ora, diante da insistência
enlouquecedora da humana, o deus do relâmpago manifesta-se, sendo que o
resplendor de sua glória fulmina Sêmele. Todavia, antes de permitir que a
criança seja também destruída ainda na barriga, Hermes salva-a e esconde-a,
costurando-a na coxa, o que permitirá não apenas a continuação de sua gestação,
mas, na verdade, uma nova gestação e um novo nascimento, porém, agora, divinos.
Por essa causa, Dioniso é, dentre os deuses do panteão grego, um genuíno filho
de Zeus, carne da mesma carne do rei do Olimpo.
Em razão da fúria de Hera, Dioniso
torna-se um deus errante, fugitivo e, mais tarde, um ocioso. Inicialmente, ele
é disfarçado sob a forma de bode para esconder-se da mulher de Zeus. Por viver
sob os cuidados das ninfas, ele cresce com trejeitos afeminados. Em suas muitas
andanças, torna-se companheiro de Sátiros e Mênades, que lhe servem, além de
patrono do vinho e dos bacanais.
Segundo as tradições da Grécia
arcaica, isto é, na primeira referência a Dioniso na Ilíada (Canto VI,
130-140), este é descrito ainda na adolescência sob forte perseguição de
Licurgo, rei dos Edônios na Trácia. Diante dessa situação desesperadora, tomado
pela mania (loucura divina), Dioniso lança- se no mar — como num atormentado
ato de desprezo pela vida —, mas acaba sendo salvo por Tétis (uma das
divindades do mar) e vingado por Zeus.19
Sobre o caráter contraditório de
Dioniso, defende Almeida:
Diônisos
confunde as fronteiras que poderiam parecer tão estabelecidas, entre homem e mulher, grego e bárbaro, deus, homem
e animal; tudo se amalgama, tudo muda. [...] Não se trata de algo
contraditório, é complementar. [...] Ao avaliarmos o deus do vinho como ksénos,
não um bárbaro, um estrangeiro que pertence
ao mundo helênico, visualizamos
melhor porque Diônisos está tanto na esfera pública quanto na cênica. Ele é
outro e este outro não deixa de ser um grego... (ALMEIDA, 2014, p. 36)
É por isso que, já na Antiguidade,
diversos autores debruçaram-se sobre a tarefa de descrever e refletir sobre o
êxtase báquico. De ano em ano, as três festas que se celebravam oficialmente a
Dioniso eram regadas de muito vinho, de
procissões fálicas, de danças e êxtases coletivos.20 Se as outras divindades são
celebradas na intimidade de templos, cavernas ou lugares secretos, o culto a
Dioniso é feito a céu aberto, diante de todos, envolvendo especialmente
mulheres e escravos — estes eram tão desprestigiados socialmente que sequer
possuíam direitos de cidadania —, aos quais se apresenta a possibilidade de
vivência não apenas de deslumbramento individual, mas também de um êxtase
coletivo e contagiante, sempre e necessariamente, vivenciado em grupo.
O persistente uso da imagem do falo
nos rituais dionisíacos tinha, como bem
nos atesta, uma dupla finalidade: associar-se à imagem campestre da
fertilidade, voltada mais para a população pobre do campo, e a autoridade
patriarcal familiar, muito forte no espaço urbano, especialmente com relação ao
desenvolvimento da política.
Estando sob o domínio de Baco, os
excessos e descontroles de qualquer pessoa seriam vistos como aceitáveis,
compreensíveis e, em alguns casos, desejáveis. Diante de um contexto como esse,
Paulo precisa anunciar uma santidade que denuncia diretamente os excessos do
dionisismo.
Além desses importantes fatos da
biografia de Dioniso, há dois acontecimentos que a tradição mítica narra e que
serão de extrema importância para a compreensão do discurso de Paulo sobre as
últimas coisas: a morte e a ressurreição de Dioniso.
Segundo outro mito sobre o
nascimento e infância de Dioniso, sendo este o mais amado entre os filhos do
deus do Olimpo, ele estava destinado a suceder Zeus no trono; todavia, por medo
de Hera, o pai dos deuses do Olimpo pôs o pequeno Dioniso sobre os cuidados de
Apolo, que o escondeu nas florestas do Parnaso. A enfurecida mulher de Zeus,
entretanto, encontrou a criança divina e ordenou aos Titãs — divindades
pré-olímpicas — que o matassem.
Disfarçados, os Titãs atraem a
criança divina por meio da oferta de brinquedos. Seduzida, a criança divina é
raptada, morta, despedaçada, cozida e devorada pelos Titãs, que deixam apenas o
coração de Dioniso como prova de seu ato malévolo. Zeus, irado, fulmina os
Titãs. Das cinzas destes, surgem os homens — parcialmente maus, por sua
ancestralidade titânica e parcialmente bons, por sua ascendência dionisíaca.
Resta dizer que, do coração não devorado, Zeus faz ressurgir o imortal Dioniso.
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As semelhanças do mito de Dioniso
com a história de Jesus de Nazaré são gritantes: São duas crianças perseguidas,
que precisam fugir e esconder-se para sobreviver. Diante de suas fragilidades,
seus pais livram-lhes da morte que constantemente o cerca. São covardemente
assassinados; todavia, ressurgem de maneira sobrenatural. O fato de o texto aos
tessalonicenses ressaltar essas semelhanças em vários momentos serviria como
elemento de aproximação discursivo-retórica — estratégia esta utilizada por
Paulo em Atenas (At 17), por exemplo — para melhor anúncio do evangelho entre
os cidadãos de Tessalônica.
Paulo, o Império e a Pregação do
Evangelho em Tessalônica Como já anteriormente discutido, Tessalônica gozava de um alto
prestígio junto ao Império Romano na época da missão paulina na cidade. Em
virtude desse fato, ela possuía um conjunto de instituições que se reunia
para as decisões de
repercussão coletiva.21 Foi
tomando esse status como elemento de
justificação que algumas lideranças locais da cidade armaram-se contra Paulo e
sua equipe. O discurso era de que a pregação do evangelho tanto causava
distúrbios sociais, como disseminava um discurso anti-imperial (At 17.6,7).
Como já foi afirmado em capítulos
anteriores, havia um forte culto imperial em Tessalônica; por isso, é
importante lembrar que algumas das denominações que Jesus recebe nessas duas
cartas paulinas são as mesmas utilizadas para o culto dos imperadores em Roma:
“filho de Deus”, “Salvador”, “Senhor”. O que se tem a partir desse uso cristão
dos mesmos termos do culto ao imperador é o estabelecimento de um conflito
político- religioso: se chamar César de “filho de Deus” e “Salvador” seria
divinizar a imagem de um homem, denominar Jesus como “Senhor” é, por outro
lado, o mesmo que o declarar imperador e governante não apenas de Tessalônica
ou do império romano, mas de todo o mundo.
Sobre esse caráter confrontador do
evangelho de Paulo em Tessalônica, conclui Green:
O
Evangelho de Cristo (1.5) é a proclamação de que Jesus, e não o imperador ou a
autoridade política, é o poder último e soberano. A mensagem é anti-imperial e
significa o juízo da idolatria de qualquer que exalte o poder político e a
posição absoluta do Estado. O evangelho proclamado em Tessalônica não pode ser
separado das realidades históricas e políticas da cidade. (GREEN, 2006, p. 21)
Pode-se, assim, compreender que o
anúncio do evangelho entre os tessalonicenses teve não apenas repercussões
espirituais-religiosas, mas também consequências sociais e políticas. Esse é o
caráter do verdadeiro evangelho de Cristo. O Senhor que os tessalonicenses
deveriam esperar viria do céu, e não de Roma!
A crítica de Jesus ao falso anúncio
de paz e segurança desmascara diretamente o conjunto de práticas
político-militares que o Império tomou para instaurar aquilo que se notabilizou
como a Pax Romana. Declarada em
28
a.C. por César
Augusto, essas medidas
tinham como pretexto
trazer
unidade e paz aos territórios do
vasto Império Romano; todavia, o que se testemunhou foi a implementação voraz e
violenta de um imperialismo que massacrava e silenciava as vozes discordantes
do Império. Sem qualquer sombra de dúvidas, nesse contexto, Paulo e seus
cooperadores constituíram- se sérios inimigos da relação de privilégios e
subordinação de Tessalônica com Roma.
Mais uma vez, Green, refletindo
sobre essa relação das instituições romanas e a igreja em Tessalônica,
ajuda-nos a compreender alguns argumentos presentes no texto paulino:
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Por fim, pode-se ainda fazer
referência aos conceitos de parusia e apantesis que, apropriados pelo
cristianismo, passaram a ter um determinado sentido no texto bíblico, mas que
originalmente eram oriundos do mundo político romano. Denominava-se de parusia a
entrada triunfal e festiva de uma autoridade política (imperador, senador,
etc.); apantesis, por sua vez, é a parte
mais importante da cerimônia da parusia, onde a população em procissão
celebrativa saía da cidade para encontrar-se com a autoridade que estava para
chegar. Segundo esses cerimoniais, a apantesis constituiria uma escolta de honra
que conduziria o dignitário político à cidade em que ele
visitaria.
Se em 1 Ts 4.15, Paulo anuncia a parusia
do Senhor Jesus, em 1 Ts 4.17, ele descreve a apantesis da Igreja com o seu
Senhor nos ares.22 Dessa maneira, apropriando-se dos
cerimoniais políticos que eram amplamente conhecidos pelos tessalonicenses,
Paulo ressignifica-os para anunciar o retorno triunfal de Cristo para vir
buscar sua Igreja.
Entretanto, diferentemente daquilo
que acontecia nas cidades e colônias romanas antigas, no retorno de Cristo, Ele
não virá para adentrar a uma província a ser visitada, mas, antes, levará
consigo aqueles que foram esmagados e perseguidos por Roma durante a vida, mas
que viverão eternamente na celestial cidade.
Talvez, o que angustiasse aqueles
irmãos fosse o fato de como os santos já mortos iriam participar da apantesis ao
Senhor Jesus; pois se só os participantes deste celebrativo encontro seriam
conduzidos pelo rei não de volta à Tessalônica, mas à vida eterna, o que
aconteceria com os piedosos que já haviam morrido? É nesse instante que Paulo
introduz a temática da ressurreição dos mortos para elucidar as dúvidas
daqueles novos irmãos.
Como se percebe, naquele contexto
histórico, conforme os termos técnico- políticos utilizados pelo apóstolo em 1
Tessalonicenses, era muito mais fácil para aqueles irmãos recém-convertidos
entenderem como os súditos de Jesus de Nazaré ainda vivos — apesar da
perseguição — encontrar-se-iam com seu Senhor do que entender como isso
aconteceria com aqueles que já haviam morrido.
De uma só vez, Paulo reforça seu
discurso de consolo ante as fortes perseguições e esclarece os tessalonicenses
sobre o glorioso futuro da Igreja.
Conclusão
Feitas as devidas contextualizações histórico-sociais,
as palavras apostólicas sobre as últimas
coisas ganham maior
significância. É claro
que o texto paulino tem muito a
falar-nos hoje; todavia, ao buscarmos a compreensão pormenorizada da situação
dos tessalonicenses, alguns detalhes da fala de Paulo ganham mais clareza.
Não é pelo auxílio de nenhuma
divindade helênica que esperamos, mas, sim, pelo socorro bem presente de
Cristo. A ressurreição de nosso Senhor não foi um ato misericordioso de um deus
que se envolveu em escândalos conjugais, mas a prova material da vitória sobre
a morte. A chegada triunfal de Jesus, o Senhor, superará em glória e majestade
a parusia do mais destacado governante humano. Não haverá alegria tal como no
encontro, isto é, na apantesis, da Igreja com seu único e verdadeiro Rei. Ali,
eternamente no Reino celeste, haverá uma
verdadeira paz que não passará.
Bibliografia
ABREU, Odailson Volpe de. O trabalho como elemento formativo nas
Cartas de Paulo de Tarso. Dissertação (Mestrado em Educação). Maringá, 2015. 113f.
ALMEIDA, João Estavam Lima de. Um
deus a céu aberto: Diônisos e a expressão material do teatro na passagem da
pólis na Grécia arcaica e clássica – Séc. VI-III a.C. Dissertação (Mestrado em
Arqueologia) São Paulo: USP, 2014. 251 f.
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia
grega. vol. I, II, III. Petrópolis: Editora Vozes, 2001.
CLARO, Francisco Eloi Martinho Prior. Marcas helenistas na
Primeira Carta de São Paulo aos Tessalonicenses: A inculturação no primeiro escrito bíblico cristão. Dissertação
(Mestrado em Teologia). Porto, 2017. 116f.
GREEN, Eugenio. El anuncio del evangelio ante el poder imperial en
Tesalónica. Kairós, nº 39, Jul-Dic 2006. p. 9-22.
. La
Pax Romana y el día del Señor - 1 Tesalonicenses 5:1-
11. Kairós, nº 41, Jul-Dic, 2007. p.
9-28.
PAGANOTTO, Diones Rafael. A parusia de Cristo segundo Paulo: Um
estudo exegético-teológico de 1Ts 4,13-18. Dissertação (Mestrado em Teologia).
São Paulo, 2015.RAMOS, José Patrício Seara Pereira. A salvação na história: o
contributo de Paulo e da comunidade em Tessalônica para a reflexão
escatológica. Dissertação (Mestrado em Teologia). Porto, 2014. 128f.
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12 Cf. ASCOUGH, 1997, p. 48.
13O referido templo é o Grande
Sarapeum, descoberto em escavações arqueológicas em 1920, no qual foram
encontrados inúmeros objetos e imagens associados tanto à religiosidade egípcia
como aos cultos da religião privada grega.
GRIMAL, P. Dicionário da Mitologia
Grega e Romana. Trad. V. Jabouille.
Lisboa: DIFEL, 2ª ed., 1993. P. 76,77.
15Para a maior parte dos especialistas,
apenas uma das três entidades, especificamente a assassinada, denominada de Cabirus,
era reverenciada com maior destaque; todavia, a despeito dessa possibilidade,
sempre nos referiremos ao conjunto das divindades, nunca apenas a Cabirus.
16Cf. GREEN, Gene L. The Letters to the Tessalonians. The Pillar New
Testament Commentary. Michigan: PNTC, Eerdmans, 2002, p. 43,44.
MURPHY-O’CONNOR, Jerome. Paulo de Tarso, História de um Apóstolo. São
Paulo. Edições Loyola, 2007. p. 74,75.
17Cf. PAGANOTTO, Diones Rafael. A parusia
de Cristo segundo Paulo. Um estudo exegético-teológico de 1 Ts 4.13-18.
(Dissertação) Mestrado em Teologia. São Paulo, 2015. 200f (p.114).
18Se o encontro dos adoradores de
Cabiro dava-se em cavernas escuras e isoladas, a volta do Senhor Jesus será um evento público,
através do qual todos saberão sobre o poder e a glória do Rei dos reis.
19 Para alguns autores,
como Brandão (2001,
p. 115), esse episódio em Homero associa-se
a duas informações sobre Dioniso: 1) Explicaria, de forma mítica,
a origem estrangeira da divindade, que posteriormente acaba sendo apropriada
pela cultura helênica de tal forma que, no início da era cristã, Dioniso já era
enumerado entre as 12 principais potestades olímpicas que regiam o cosmos junto
a Zeus; 2) Justificaria os rituais iniciáticos dos cultos mistéricos ligados a Dioniso que se
utilizavam da água como elemento de purificação, ou seja, catarse da alma.
20Perceba, aqui, a correlação que se pode
estabelecer entre as procissões que se formavam para chegar até a Dioniso e o
grande encontro do povo de Deus nos ares com Jesus Cristo. Enquanto os tessalonicenses que
celebravam a Baco faziam-no por meio de ações
e imagens sexuais, a procissão de santos que encontrará o Senhor no céu
é constituída por aqueles que foram santificados e que superaram toda
dependência do prazer para aguardarem a felicidade eterna com confiança.
21A condição de cidade livre concedia à
Tessalônica o direito de ter uma assembleia de cidadãos (demos) que tinha poder
de decisões políticas, um conselho de anciãos (bulé) que administrava os recursos da cidade e um
grupo de líderes que exercia o governo (politárcos).
22Cf. excelente pesquisa de Paganotto
(2015) sobre o conceito de parusia e apantesis em 1 Tessalonicenses.
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