Extraído do livro "A Difícil Doutrina do Amor de Deus"
É
melhor eu lhe avisar que nem todas as passagens a que faço referência usam na
verdade a palavra amor. Quando falo da doutrina do amor de Deus, incluo temas e
textos que retratam o amor de Deus sem nunca usar a palavra, assim como Jesus diz parábolas que
retratam a graça, sem usar a palavra graça.
Com
este aviso à frente, chamo a sua atenção para cinco maneiras distinguíveis com
que a Bíblia fala do amor de Deus. Esta não é uma lista exaustiva, mas é
heuristicamente útil.
(1) O amor peculiar do Pai pelo
Filho, e do Filho pelo Pai. O Evangelho de João é especialmente rico neste
tema. Duas vezes somos informados que o Pai ama o Filho, uma vez com o verbo
grego agapad (Jo 3.35), e uma vez comphiléõ (Jo 5.20). No entanto, o
evangelista insiste também que o mundo deve aprender que Jesus ama o Pai (Jo
14.31). Este amor intra-Trinitariano de Deus não só separa o monoteísmo cristão
de todos os outros monoteísmos, mas está ligado de maneirassurpreendentes com a
revelação e a redenção. Voltarei a este tema no próximo capítulo.
(2) O amor providencial de Deus
sobre tudo o que Ele fez. De um modo geral, a Bíblia não usa a palavra amor
neste sentido, mas o tema não é difícil de achar. Deus cria todas as coisas, e,
antes que haja um sopro de pecado, Ele anuncia que tudo o que fez foi
"bom" (Gn 1). Este é o produto de um Criador amoroso. O Senhor Jesus
retrata um mundo no qual Deus veste a erva dos campos com a glória das flores silvestres
talvez não vista por seres humanos, mas vista por Deus. O leão ruge e ataca a
sua presa, mas é Deus que alimenta o animal. As aves encontram alimento, mas
isto é o resultado da providência amorosa de Deus, e nenhuma delas cai sem a
autorização do Todo-Poderoso (Mt 6.26; 10.29).
Se
esta não fosse uma providência benevolente, uma providência amorosa, então a
lição moral que Jesus revela, isto é, que podemos confiar que este Deus é capaz
de prover o sustento do seu próprio povo, seria incoerente.
(3) A postura salvadora em relação
ao seu mundo caído. Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho (Jo
3.16). Eu sei que alguns calvinistas tentam tomar o grego kosmos
("mundo") aqui para se referir aos que eles chamam de eleitos. Mas isto
realmente não servirá. Todas as evidências do uso da palavra no Evangelho de
João são contrárias a esta sugestão. Para dizer a verdade, mundo em João não se
refere tanto a grandeza como a maldade. No vocabulário de João, mundo é
primeiramente a ordem moral em rebelião intencional e culpável contra.
Deus,
Em João 3.16 o amor de Deus ao enviar o Senhor Jesus deve ser admirado, não
porque seja estendido a algo tão grande
quanto o mundo, mas a algo tão mau; não a tantas pessoas, mas a pessoas tão
impiedosas. Entretanto, em outra passagem, João pôde falar de " todo o
mundo" (1 Jo 2.2), unindo assim a grandeza com a maldade. Mais importante
ainda, na teologia joanina os próprios discípulos pertenciam ao mundo, mas
foram tirados dele (por exemplo, João 15.19). Neste eixo, o amor de Deus pelo
mundo não pode ser reduzido ao seu amor pelos chamados eleitos» A mesma lição é
aprendida em muitas passagens e temas nas Escrituras. Embora Deus se coloque em
juízo sobre o mundo, Ele também se apresenta como o Deus que convida e ordena
que todos os seres humanos se arrependam.
Ele
ordena que o seu povo leve o Evangelho até os confins da terra, anunciando-o
aos homens e mulheres de toda parte.
Aos
rebeldes o Senhor soberano diz, "Vivo eu, (...), que não tenho prazer na
morte do ímpio, mas em que o ímpio se
converta do seu caminho e viva; convertei-vos, converteivos dos vossos maus
caminhos; pois por que razão morrereis,
ó casa de Israel?" (Ez 33.11).9
(4) O amor particular, efetivo e
seletivo de Deus em relação aos seus eleitos. Os eleitos podem ser toda a nação
de Israel, a Igreja como um corpo, ou os indivíduos. Em cada caso, Deus coloca
a sua afeição em seus escolhidos, de um modo que Ele não coloque a sua afeição
sobre outros. O povo de Israel é informado: "O Senhor não tomou prazer em
vós, nem vos escolheu, porque a vossa multidão era mais do que a de todos os
outros povos, pois vós éreis menos em números do que todos os povos, mas porque
o Senhor vos amava; e, para guardar o juramento que jurara a vossos pais, o
Senhor vos tirou com mão forte e vos resgatou da casa da servidão, da mão de
Faraó, rei do Egito" (Dt 7.7,8; cf. 4.37).
Outra
vez: "Eis que os céus e os céus dos céus são do Senhor, teu Deus, a terra
e tudo o que nela há. Tão somente o Senhor
tomou prazer em teus pais para os amar; e a vós, semente deles, escolheu depois
deles, de todos os povos, como
neste dia se vê" (10.14,15).
O
mais admirável sobre estas passagens é que quando Israel é contrastado com o
universo ou com outras nações, a
característica distinguível não tem nada de mérito pessoal ou nacional; não é
nada além do amor de Deus. Então, na própria
natureza do caso, nestas passagens, o amor de Deus é dirigido a Israel de um
modo que não é direcionado a outras
nações.
Obviamente,
esta maneira de tratar o amor de Deus é diferente das outras três que
observamos até agora. Esta característica aparentemente discriminatória do amor
de Deus emerge com certa freqüência. "Amei a Jacó e aborreci a Esaú"
(Ml 1.2,3), Deus declara. Permita todo o espaço que você desejar para a
natureza semita deste contraste, observando que a forma absoluta pode ser uma
maneira de articular uma preferência absoluta; no entanto, o fato é que o amor
de Deus nestas passagens é peculiarmente dirigido aos escolhidos.
Semelhantemente,
no Novo Testamento: Cristo "amou a igreja" (Ef 5.25). De forma
repetida, os textos do Novo Testamento nos contam que o amor de Deus (ou o amor
de Cristo) é dirigido àqueles que constituem a Igreja. Retomarei a esse assunto
no quarto capítulo.
(5) Finalmente, às vezes é dito que
o amor de Deus é dirigido ao seu próprio povo de uma maneira provisional ou
condicional condicionado, isto é, à obediência. Isto faz parte da estrutura relacional
de conhecer a Deus; não tem a ver com como nos tornamos verdadeiros seguidores
do Deus vivo, mas com o nosso relacionamento com Ele uma vez que o conhecemos.
"Conservai
a vós mesmos na caridade de Deus", Judas exorta os seus leitores (v. 21),
deixando a impressão inequívoca de que alguém poderia não se conservar no amor
de Deus.
Está
claro que este não é o amor providencial de Deus; é muito difícil escapar
disso. Nem é este o amor anelante de Deus,
refletindo a sua postura salvadora em relação à raça caída. Nem é este o seu
amor eterno e eletivo. As palavras têm os seus significados; e uma delas, como
veremos, também se afasta deste amor.
Judas
não é o único que fala nestes termos. O Senhor Jesus ordena aos seus discípulos
que permaneçam no seu amor
(Jo 15.9), e acrescenta, "Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis
no meu amor, do mesmo modo que
eu tenho guardado os mandamentos de meu Pai e permaneço no seu amor" (Jo
15.10). Permita-me fazer uma fraca analogia: Embora haja um sentido no qual o
meu amor pelos meus filhos seja imutável (Deus é testemunha) independentemente do
que eles façam, há um outro sentido no qual eles sabem muito bem que devem
permanecer no meu amor. Se não houver um bom motivo para que os meus filhos adolescentes
não cheguem em casa no horário combinado, o mínimo que eles experimentarão é
uma repreensão, e também poderão incorrer em algumas sanções restritivas.
Não adianta lembrá-los de que estou
agindo assim porque os amo. Isto é verdade, mas a manifestação do meu amor
por eles quando os coloco de castigo, e quando saio com eles para comer alguma
coisa, ou compareço em uma de
suas apresentações musicais, ou levo o meu filho para pescar, ou a minha filha
para uma excursão de algum tipo, é
bastante distinta nos dois casos. A diferença é apenas que o segundo caso se
parecerá muito mais com permanecer no meu amor, do que cair sob a minha ira.
Isto também não é apenas um fenômeno
da nova aliança. O Decálogo
declara que Deus é aquele que mostra o seu amor "a mil gerações daqueles
que me amam e guardam os meus mandamento (Êx 20.6). Sim, "Misericordioso e piedoso
é o Senhor; longânimo e grande em benignidade" (SI 103.8).
Neste
contexto, o seu amor é contrastado com a sua ira. Diferentemente de alguns
textos que examinaremos, o seu povo vive debaixo de seu amor ou debaixo de sua
ira, em função de sua fidelidade à aliança, pois Ele: "Não repreenderá
perpetuamente, nem para sempre conservará a sua ira. Não nos tratou segundo os
nossos pecados, nem nos retribuiu segundo as nossas iniqüidades. Pois quanto o
céu está elevado acima da terra, assim é grande a sua misericórdia para com os
que o temem. Como um pai se compadece de seus filhos, assim o Senhor se
compadece daqueles que o temem.
Mas a misericórdia do Senhor é de
eternidade a eternidade sobre aqueles que o temem, (...); sobre aqueles que
guardam o seu concerto, e sobre os que se lembram dos seus mandamentos para os
cumprirem" (SI 103.9-11,13,17,18; grifos meus). Esta é a linguagem do
relacionamento entre Deus e a comunidade da aliança.
Concluirei
este capítulo com:
C.
Três Observações Preliminares sobre estas Maneiras Distintas de Falar do Amor
de Deus Estas três reflexões serão abordadas um pouco mais nos capítulos restantes.
Entretanto, será útil unir alguns elementos.
(1)
É fácil ver o que irá acontecer se qualquer uma destas cinco maneiras bíblicas
de falar sobre o amor de Deus se
tomar
absoluta e exclusiva, ou se a rede de controle da discussão for as outras
maneiras de falar sobre o amor de Deus que, por sua vez, se tornaram relativas.
Se começarmos com o amor
intra-Trinitariano de Deus e usarmos isto como o modelo para todos os seus
relacionamentos amorosos, falharemos em observar as distinções que devem ser
mantidas. O amor do Pai pelo Filho e o amor do Filho pelo Pai são expressos em
um relacionamento de perfeição, sem ser atingido pelo pecado. Embora muito do
amor intra-Trinitariano sirva, como veremos, como um modelo do amor a ser
compartilhado entre Jesus e os seus seguidores, não há nenhum sentido no qual o
amor do Pai redima o Filho, ou o amor do Filho seja expresso em um
relacionamento de perdão concedido e recebido. Precioso e realmente extraordinário
é o amor intra-Trinitariano de Deus, um foco exclusivo nesta direção leva muito
pouco em consideração como Deus se manifesta em relação àqueles rebeldes que
levam a sua imagem, em ira e em amor, na cruz.
Se o amor de Deus não é nada mais do
que a sua ordem providencial para todas as coisas, não estamos longe de uma "força"
beneficente, e um tanto misteriosa. Seria fácil integrar este tipo de postura
no panteísmo ou em alguma outra forma de monismo. A ecologia verde pode assim
ser fortalecida, mas não a linha da história magnífica que nos leva da criação
para a nova criação, para o novo céu e a nova terra, por meio da cruz e
ressurreição do nosso Mestre e Senhor.
Se o amor de Deus for exclusivamente
retratado como uma paixão convidativa, desejosa, bastante perdida de amor, e
que busca o pecador, podemos fortalecer as mãos dos arminianos, semi-pelagianos,
pelagianos, e daqueles mais interessados
na vida emocional interior de Deus do que em sua justiça e glória; mas o custo
será imenso. Há alguma verdade
neste retrato de Deus, como veremos, alguma verdade gloriosa. Tornada absoluta,
porém, ela não só trata os textos
complementares como se não estivessem ali, mas rouba de Deus a soberania, e a
nossa segurança. Este pensamento adota uma teologia da graça muito diferente da
teologia da graça de Paulo, e pior ainda, termina com um Deus tão insípido que
Ele nem pode intervir para nos salvar, nem dispor a sua vara de castigo contra
nós. Seu amor é "incondicional" demais para isso. Este é um mundo
muito afastado das páginas das Escrituras.
Se o amor de Deus se referir
exclusivamente ao seu amor pelos eleitos, é fácil se desviar em direção a uma
bifurcação simples e absoluta: Deus ama os eleitos e odeia os reprováveis. Corretamente posicionada aqui, há uma verdade
nesta afirmação; desprovida das verdades bíblicas complementares, esta mesma
afirmação gerou o hiper-calvinismos Eu uso o termo
intencionalmente, me referindo a grupos dentro da tradição da Reforma que
proibiram a livre oferta do Evangelho. Spurgeon lutou contra eles em seus
dias. O número deles não é grande na
América hoje, mas seus ecos são encontrados em jovens ministros da Reforma que
sabem que é certo oferecer o Evangelho gratuitamente, mas que não fazem idéia
de como fazê-lo sem infringir algum elemento em sua concepção da teologia da
Reforma. Se o amor de Deus for explicado inteiramente dentro do tipo de
discurso que liga o amor de Deus à nossa obediência (por exemplo,
"Conservai a vós mesmos na caridade de Deus"), os perigos que nos
ameaçam mudam mais uma vez.
Na verdade, em uma igreja
caracterizada, antes, mais pela preferência pessoal e pelo antinomismo do que
pelo temor piedoso ao Senhor, tais passagens certamente têm algo a nos dizer.
Mas separados das declarações bíblicas complementares sobre o amor de Deus,
tais textos podem nos fazer retroceder na direção da teologia do mérito, uma irritação
incessante sobre se temos ou não sido suficientemente bons hoje para
desfrutarmos o amor de Deus para estarmos livres de todos os acessos de culpa
dos quais somente a cruz pode nos libertar.
Em resumo, precisamos de tudo o que
a Escritura diz sobre este assunto, ou as ramificações doutrinárias e pastorais
se mostrarão desastrosas.
(2)
Não devemos considerar estas maneiras de falar sobre o amor de Deus, como
amores independentes e compartimentados. Não será útil começar a falar com
muita freqüência sobre o amor providencial de Deus, seu amor eletivo,
seu amor intra-Trinitariano, e assim por diante, como se cada um deles
estivesse hermeticamente separado do outro. Nem podemos permitir que qualquer
uma destas maneiras de falar sobre o amor de Deus seja diminuída pelas outras,
mesmo quando não podemos, com as evidências bíblicas, permitir que qualquer
delas domestique todas as
outras. Deus é Deus, e Ele é um. Não só devemos agradecidamente reconhecer que
Deus na perfeição de sua sabedoria
achou melhor nos prover com estas várias maneiras de falar de seu amor, se
pensarmos nEle corretamente, mas devemos defender estas verdades e aprender a integrá-las
em proporção e equilíbrio bíblicos.
Devemos aplicá-las à nossa vida e à
vida daqueles a quem ministramos com inspiração e sensibilidade formadas pelo
modo como estas verdades funcionam nas Escrituras.
(3)
Dentro da estrutura estabelecida até agora, bem podemos nos perguntar como
certos clichês evangélicos perduram.
(a)
"O amor de Deus é incondicional". Sem dúvida alguma isto é verdadeiro
no quarto sentido, com respeito ao amor eletivo de Deus. Mas isto certamente
não é verdadeiro no quinto sentido: A disciplina de Deus aos seus filhos significa
que Ele pode vir sobre nós com o equivalente divino da "ira" de um
pai sobre um filho adolescente teimoso.
Na
verdade, citar o clichê "O amor de Deus é incondicional" para um
cristão que está se desviando para o pecado, pode
transmitir a impressão errada e causar grandes prejuízos. Estes cristãos
precisam ser informados de que só permanecerão
no amor de Deus se fizerem o que Ele diz.
Então,
é óbvio que é, pastoralmente, importante saber que passagens e temas aplicar a
quais pessoas em qualquer dado momento, (b) "Deus ama a todos exatamente
da mesma maneira".
Isto certamente é verdadeiro em
passagens pertencentes à segunda categoria, o domínio da providência. Afinal, Deus
manda o seu raio de sol e a sua chuva sobre o justo e o injusto, igualmente.
Mas certamente isto não é verdadeiro em passagens pertencentes à quarta
categoria, o domínio da eleição.
Mais
um ou dois clichês serão examinados depois nestes capítulos. Porém já fica
claro que o que a Bíblia diz sobre o amor
de Deus é mais complexo e diverso do que é permitido pelo mero uso de slogans.
Para
resumir: A fidelidade cristã vincula a nossa responsabilidade a crescermos em
nossa compreensão do que significa confessar que Deus é amor. A este fim
dedicamos os próximos capítulos.