Apesar
de desenvolver a lição na linha de que o “julgamento” aludido
pelo Mestre refere-se, como a expressão “kpivw
aqui julgar no
sentido de
pronunciar uma sentença [...],
condenar”, isto
é, “Kpíua
[...] julgar,
julgamento; aqui
sentença
(judicial)”,3 deixa
entrever, Marcei Dumais afirma que os “dois empregos do verbo grego
krinein (julgar),
em Mt (5,40; 19,28), não autorizam restringir a proibição só aos
julgamentos de condenação”,4 ou seja, a questão seria ainda mais
rigorosa do ponto de vista da observação do comportamento alheio e
da emissão de qualquer tipo de julgamento, mas na verdade, como
observa Benedict Viviano, o “ensinamento de Jesus adverte contra a
usurpação do julgamento definitivo de Deus, que é o único que vê
o coração”.5 Trata-se de exercer sobre si mesmo um cuidado quando
se pensa em “avaliar o comportamento de irmãos e irmãs (cf. v.
5b; 18,15-18)”, diz Dumais, evitando “todos os julgamentos que
não se fazem por amor do outro e que o reduzem à condição de
objeto (cf. 5,43-48; 22,34-40)”.6 Isso porque, diz o mesmo autor, a
“continuação da frase dá a razão a interdição de julgar o
outro”, pois o “leitor de cultura judaica percebe logo o emprego
do passivo teológico em alusão ao julgamento final”.7 Daí a
formalidade do ensinamento, isto é, “não julguemos os outros,
para que Deus não nos julgue da mesma maneira, vale dizer,
negativamente, no dia do julgamento”. O que está se ensinando é
exatamente o que já foi colocado acima por Viviano e, quanto ao
“julgar”, no sentido de “avaliar”, só deve ser feito, de
acordo com Dumais, “usando a medida do próprio Deus, isto é, o
amor e a misericórdia (cf. 18,23-35)”. Numa palavra:
O
“Não julgueis” de Jesus é uma palavra profunda, de grande
valor. Significa que não se pode identificar ninguém com os atos
que cometeu ou com as aparências que reflete. Convida- nos a
respeitar o mistério de cada pessoa, cujo conhecimento se reserva
para Deus. Para compreender o convite de Jesus, nada melhor que
contemplar sua atitude diante das pessoas.
Jesus
olha não para julgar, mas para criar. Seu olhar opera o novo naquele
em quem repousa, faz-se libertador, recriador.
Tal
exortação certamente entristece a muitos que gostam de se passar
por rigorosos e cuidadores da doutrina. Zeilinger diz que, a estes, o
“aplauso dos leitores é-lhes garantido, pois faz parte do aspecto
agradável da vida denunciar publicamente a falibilidade alheia e
encará-la com ‘repulsa e horror’”, mesmo porque, continua o
mesmo autor agora se referindo ao versículo 3, o “julgamento do
outro ‘engana-me acerca das verdadeiras relações, acerca de meu
próprio envolvimento com acontecimentos culposos’”.9 A indicação
do versículo 5 é a saída para quem quer, de fato, ajudar os outros
a corrigir o comportamento: primeiramente devo tirar a grande trave à
frente dos meus olhos para, posteriormente, pensar em corrigir o meu
irmão. Zeilinger observa mais uma vez que tal perícope está
intrinsecamente “ligada, quanto ao conteúdo, à quinta petição
do Pai-nosso e ao comentário atinente (6,14-15), não obstante não
haver nenhuma correspondência terminológica”.10 Já o versículo
6 é curiosamente enigmático, mas, conforme observa James Shelton,
certamente sinaliza para a grande verdade de que, conquanto seja
vedado ao discípulo exercer o papel de “juiz”, ele tem a
responsabilidade de ter discernimento e saber a diferençar as coisas
“santas” e “valiosas” das coisas profanas e vis.11
A
Bondade Divina e a Regra de Ouro (Mt 7.7-12)
Apesar
de esta porção relacionar-se com o que já se ensinou sobre oração
e, particularmente, a respeito da oração de petição (5.44; 6.5-
15), bem como acerca da bondade divina (5.45,48; 6.30-33), nunca é
demais lembrar que, a despeito de não haver “necessidade” de que
alguém lhe peça algo, certamente é do agrado do Pai que se ore,
pois através da oração Ele ensina preciosas lições. C. S. Lewis
diz que acredita que um dos “propósitos pelos quais Deus instituiu
a oração talvez tenha sido para dar testemunho do fato de que o
curso dos acontecimentos não é regido como se fosse um Estado, e
sim criado como uma obra de arte para a qual todos os seres dão sua
contribuição e (na oração) uma contribuição consciente, na qual
todo ser é tanto um fim quanto um meio”.12 Na verdade, a oração,
nessa perspectiva, não é somente um meio, como se pode pensar da
perícope, mas também, ela mesma, um fim. O que é digno de se
destacar desse texto é o fato de que (mesmo que a passagem não diga
explicitamente, ela deixa supor) “os que oram se colocam de acordo
com o bem, mesmo quando desejam outra coisa que o bem previsto no
plano de Deus”, diz Cullmann, e completa que “na oração do
Getsêmani, a adição daquelas palavras [...] exprime claramente”13
tal ideia. Para além da verdade de que quanto mais se desenvolve o
relacionamento dos filhos de Deus com Ele, mais as petições vão se
aproximando da vontade dEle, uma última questão é digna de ser
mencionada. Tomando por base os versículos 9 a 11, fica claro que as
dádivas, sem a comparação com o texto paralelo de Lucas 11.9-13
que menciona o Espírito Santo, refere-se, nesse contexto, a questões
materiais e de subsistência. No entanto, informa B. Viviano:
Buscai:
neste
contexto, todos os verbos se referem à oração; como em 6,33,
deve-se sobretudo buscar o Reino de Deus e a sua justiça também na
oração. Em hebraico, “buscar” seria dãras-,
daí
o termo do misdrásh,
“estudo”
ou investigação das Escrituras. Talvez cientes deste uso mais
intelectual, os protocristãos gnósticos, tiraram esta expressão,
“buscai e achareis”, de seu contexto e usaram-na para justificar
suas especulações teológicas. No princípio, os Padres da Igreja
resistiram a esta aplicação do texto, mas na época de Agostinho
foi usada também pelos ortodoxos para fundamentar sua reflexão
teológica.14
Se
no passado o conhecimento em relação às línguas, hebraica e
grega, limitava uma interpretação mais aproximada do contexto e o
método alegórico era o mais utilizado, atualmente, com os grandes
avanços na área das ciências bíblicas, tais utilizações do
texto não se justificam.15 Entretanto, tal informação deixa duas
pistas importantíssimas: o quanto há de conclusões doutrinárias
baseadas em equívocos interpretativos provenientes do período
Patrístico que as novas gerações de teólogos precisam dedicar-se
a resolver e o quanto a igreja deve ser sensível no sentido de
permitir que se façam revisões sérias, responsáveis e com temor,
visando à edificação da própria comunidade de fé.
Em
relação ao versículo 12, a regra de ouro, Viviano diz que, do
“ponto de vista literário, este é o fim do sermão, um resumo de
seu conteúdo antes da conclusão com as maldições e bênçãos da
aliança”.16 Apesar de ela não ser original de Jesus Cristo, como
informa Shelton,17 nem em sua forma negativa bem como em sua forma
positiva, conforme utilizada pelo Senhor, a grande novidade é que,
ao ser inserida pelo Mestre no Sermão do Monte, o ensinamento do
célebre sermão transforma a regra e, por sua vez, a regra de ouro
coloca em relevo aspectos decisivos do Sermão do Monte. Tal
circularidade hermenêutica, conforme disserta M. Dumais:
No
SM, Jesus apresenta os critérios do verdadeiro amor.
A
ausência da cólera que fere (5,22s) e do julgamento que condena
(7,ls), o gesto que constrói, em resposta ao gesto maldoso (5,38), o
amor aos inimigos que chega até o perdão (5,43s; 6.12-15), tais são
os critérios de um verdadeiro amor humano, dado ou recebido. Se
encaramos a regra de ouro como expressão condensada do programa
ético novo proposto por Jesus, cabe-nos, então, compreender que é
ela “a Lei e os profetas tais como reinterpretados
(ou “cumpridos”,
5,17) por
Jesus”. Todo
ensinamento do SM, do qual a regra de ouro é o remate, dá a esta um
significado novo. Poder-se-ia parafrasear, da seguinte maneira, a
regra do agir em relação aos
outros: “tudo
aquilo que desejaríamos nos fizessem os homens”, vale dizer, não
nos ferir com sua cólera, não nos julgar, amar-nos ainda quando
sejamos seus inimigos..., em resumo, acolher-nos e tratar-nos como
filhos do Pai, isto é, comportar-se a nosso respeito como nos trata
o Pai. O “tudo” (panta)
da regra de ouro do SM está realmente repleto de sentido.
É
preciso não esquecer que, a despeito de esta ser a “justiça dos
discípulos” a audiência de Mateus é composta de judeus e, por
isso, a Lei e os Profetas, sobretudo em um contexto onde ainda não
havia o texto do Novo Testamento, era justamente essa literatura que
vigorava e de onde os apóstolos tinham de extrair os ensinamentos. O
que parece ficar centrado na pessoa, pois o conteúdo da regra coloca
o “eu” como paradigma, na verdade, havendo acontecido a metanoia,
ou
seja, a conversão da mente e do eu pela mensagem do Evangelho, tal
como se vê no início com as Bem-Aventuranças, faz com que o
“modelo do agir dos filhos e filhas, perante seus irmãos e irmãs
em humanidade, é o do agir do Pai em relação a cada um deles”.
Em termos diretos, o “agir do Pai, em relação a nós, revela-nos
nossas reais necessidades (o que deve ser o objeto do querer’
formulado em 6,12a) e, consequentemente, as reais necessidades dos
outros (o que deve ser objeto do fazer formulado em 6,12b)”.19
Assim, é com um “eu” completamente transformado pela perspectiva
da nova justiça, da justiça do Reino, que o discípulo olhará para
o próximo. Mas como a regra de ouro pode dar relevo ao ensinamento
do Sermão do Monte?
Colocada
como conclusão do corpo central do discurso, a regra de ouro
salienta certos aspectos do comprometimento ético do discípulo.
Podemos notar as seguintes: 1) o convite a “fazer tudo” pelos
outros é um apelo que as diretivas do SM tocam na totalidade da
existência e visam a compromissos concretos; 2) o destinatário: “os
homens”, as pessoas humanas, indica que o horizonte de compromisso
do cristão é universal; 3) a formulação positiva da regra de ouro
sublinha que o discípulo deve tomar a iniciativa de executar gestos
de amor, em conformidade com os mandamentos de 5,38-48; 4) ao
apresentar, como norma de ação, os anseios que se fazem em causa
própria, a regra de ouro propõe, em seguida, a via da interioridade
como guia do amor aos outros (“a alteridade”): procurar o melhor
em si mesmo é um meio de descobrir o comportamento que o amor
prescreve nas situações concretas; assim, a exigência radical de
amar aos inimigos não deixa de ser um “amor inteligente”...
Tal
conclusão leva agora o discípulo a tomar decisões cruciais.
Conquanto seja um problema aos predestinacionistas, tais textos
revelam justamente o que os que acreditam no livre-arbítrio já
sabem: a decisão de fazer conforme se deve, é do discípulo, mas
este deve buscar força, em Deus, o Pai, que o chamou, pois, conforme
escreveu Frankemõlle, citado por Zeilinger, ‘“Desde o início
(cf. 5,3-16), o tema do ‘Sermão da Montanha era: Deus é o
fundamento que possibilita o agir humano”’.21 Assim, após ter
aprendido doutrinariamente o que significa o novo tempo, o discípulo
agora tem de praticar a sua justiça. Quanto a isso, mesmo que não
tenha sido possível dissertar mais pormenorizadamente a respeito das
metáforas utilizadas (algo que foi feito no comentário da revista),
elas são de caráter prático e não mais se exigem grandes
discussões teóricas para se entendê-las. Chegou a hora da verdade,
o momento crucial de o discípulo optar por viver à luz da nova
justiça, da justiça superior, ou da religiosidade que prescreve uma
receita, mas não tem como fundamento o amor e sim a “lei”.
As
Duas Portas e os Dois Caminhos (Mt 7.13,14)
Por
mais que se queira interpretar esse texto como sendo o caminho do
mundanismo, e tal aplicação não estaria errada, no contexto, a
“porta larga” e o “caminho espaçoso”, são as dezenas de
propostas político-religiosas da época que ofereciam a
“oportunidade” de os judeus seguirem sem precisar de fé, mas
apenas confiando na filosofia proposta pelo respectivo movimento.
Optar pela justiça do Reino era decidir pela “porta estreita” e
pelo “caminho apertado”. Consequentemente, tais movimentos, e
seus respectivos líderes, deveríam ser abandonados, sem nenhum
meio-termo (cf. Mt 15.1,14). Era uma decisão muito séria,
sobretudo, quando se sabe que o povo era dependente do “judaísmo
da época de Jesus, [e este era] conduzido pelos fariseus, [e] toda a
tradição mantida pelos escribas servia de norma para a
fundamentação da vontade divina”.22 É o que instrui o Mestre na
sequência.
Os
Falsos Profetas e os seus Frutos (Mt 7.15-20)
Os
enganadores e falsos profetas sempre foram comuns entre o povo de
Deus. Jesus sabe que eles continuarão a rodear, propor caminhos mais
fáceis e tentar enganar as pessoas. Assim, Ele instrui que se atente
para os seus frutos, pois através destes será possível
identificá-los. Na atualidade, tal mensagem é ainda mais
necessária, pois as pessoas utilizam critérios suspeitíssimos para
se apresentar como “enviadas” e “ungidas” por Deus. A
tragédia é que o que certamente seria vergonhoso a um discípulo de
Cristo, hoje é motivo de ostentação de muitos líderes e acaba
mimetizando os liderados. O critério veterotestamentário de que
Deus permitia que um falso profeta realizasse um milagre, para provar
se o povo o seguiría depois quando fosse convidado a servir a outros
deuses, hoje não mais funciona, pois as pessoas ficam reféns e
parecem ainda gostar, pois o próprio líder se coloca como se fosse
um “deus” (Dt 13.1-5). Outras pessoas, mesmo depois de o falso
profeta “profetizar” algo que não se cumpre, continuam o
seguindo como se estivessem cegas (Dt 18.20-22). A estas, o caminho
da justiça sempre será evitado.
Uma
Séria Advertência aos Discípulos (Mt 7.21-23)
Essa
perícope parece demonstrar que o princípio da permissão divina
para a ocorrência de prodígios continua válida, mas também indica
a possibilidade de alguma coisa ser feita em nome de Jesus, sem ter,
obviamente, nada com Ele (Mc 12.21-23; Ap 13.13 cf. Mt 12.24).
Portanto, não são as maravilhas realizadas pelo suposto “ungido”,
e sim o seu estilo de vida é o que deve ser observado. Se parece com
Cristo? Esta é a pergunta a se fazer. Caso não se pareça, ainda
que faça cair “fogo do céu”, deve ser evitado.
A
Decisão Crucial do Discípulo;
Ouvir
e Praticar (Mt 7.24-29)
O
não praticar o que o Mestre ensinou no Sermão do Monte não ficará
sem resultado, pois levará à ruína. É imprescindível perceber
que, a despeito de a Lei e os profetas serem importantes para Mateus,
não são estes que farão com que o discípulo esteja firme, mas sim
“estas minhas palavras”, ou seja, o ensinamento do Sermão do
Monte que o Senhor acabou de proferir. A sua doutrina, o seu ensino,
não era como o dos escribas e fariseus, pois a palavra deles era uma
interpretação da Lei que apenas matava e inchava, causando
dependência no povo. A doutrina de Jesus, diferentemente, veio para
dar vida, e vida em abundância. Esta é a mensagem do Sermão do
Monte. Qual será a nossa decisão: construir a casa sobre a rocha ou
fundamentar-se na areia? Cada um tem de fazer a sua opção, pois a
decisão é pessoal.
Nenhum comentário:
Postar um comentário