Extraído do livro: A obra da Salvação.
Autor: Clainto Ivan Pommerening.
Deus é um ser único e incomparável em
um nível muito superior ao que conhecemos simplesmente por Ele ser Deus. Os
critérios que Ele usa para definir o que Ele faz pelo ser humano não estão condicionados ao que o ser humano
pode fazer por Ele e o quanto
o ser humano pode amá-lo e corresponder a esse amor.
Da mesma forma,
sua misericórdia não encontra eco nas ações humanas que possam ter como
objetivo algum merecimento, mas, exclusivamente, porque Ele é amor e exerce
misericórdia deliberada e voluntariamente.
A salvação é a culminação do imenso
amor e da misericórdia de Deus e somente é possível porque Deus amou o pecador
infinitamente a ponto de entregar seu filho e continuamente tem misericórdia de
seus filhos preservando-lhes a vida e concedendo-lhes perdão.
O
MARAVILHOSO AMOR DE DEUS
O amor não é um atributo divino assim
como os demais que lhe são próprios por ser Deus, pois o amor é a própria
natureza e essência de Deus (1 Jo 4.16). Sua principal característica é
simplesmente ser amor e criar, manter e gerir todas as coisas sob essa
essência. Deus não precisa esforçar-se para amar, pois nEle não se manifestam o
ódio nem a raiva como nos seres humanos. Todavia, a Bíblia afirma que Deus
manifesta ira, furor e punição, só que esses são frutos de sua justiça exercida
com equidade, e não de qualquer patologia como nos homens. Essas manifestações
são a consequência natural da alienação (separação) do homem de Deus, pois
ninguém consegue viver alienado de Deus sem sofrer as consequências naturais
desse afastamento.
Ele não ama com base na capacidade de
alguém amá-lo. Ele não se envolve com base na capacidade de alguém se envolver
com Ele. Ele não se doou baseado na capacidade de alguém se doar. Ele não
espera ser correspondido para continuar oferecendo graça. Se Ele dependesse da
correspondência humana para retroalimentar sua atitude graciosa, Deus seria um
ser finito e limitado, dependente de fontes externas para estabelecer-se, mas não!
Sua graça é infinita porque Ele não tem fim. Essa graça emana dEle, e é Ele
próprio que a mantém, e também é Ele quem gera a energia permanente e
transformadora dessa graça que Ele ofertou.
Nos seres humanos, o amor é uma força interior
que impele ao autossacrifício e ao bem-estar do sujeito amado, que leva a
nutrir, cuidar e proteger o ser que é alvo desse amor. O amor é a mais
extremada e profunda forma possível de expressão do sujeito e também a mais incrível
e gratificante forma de intimidade nas relações pessoais — nesse caso, baseada
em relações de troca e em mutualidade. Até mesmo o amor de mãe, por mais
sublime, altruísta e abnegado que seja, auto realiza-se no bem-estar do filho/a
amado/a (Is 49.15-16). Portanto, em certo sentido, o amor de mãe também é
baseado em troca quando ela vê refletido em si mesma o seu cuidado no objeto do
amor. O amor de Deus, porém, vai além dessa categoria humana de amar que tem
como base a troca, pois o seu amor, mesmo não correspondido, não depende disso,
tendo em vista que nenhuma criatura é capaz de amá-lo nem corresponder ao seu
amor na mesma intensidade que Ele ama. Por isso, o amor de Deus é o que
teologicamente se chama de incondicional, pois Ele ama sem ser amado, doa-se
sem receber nada em troca, sacrifica-se sem ser reconhecido, entrega-se sem ser
correspondido e tudo espera mesmo não recebendo nada. No grego, essa forma de
amor é grafada com o verbo agapao e
o substantivo ágape.
Somos apenas o alvo dessa graça que
provém dEle e que é sustentada por Ele. Só é preciso estar disposto a cumprir o
papel para o qual fomos designados, que é ser alvo dessa graça, desse favor,
permitir que ela passe por nós, atravesse-nos e cumpra o papel designado a ela
para cumprir em nós e por nós. Deus não ama porque merecemos, não importa o que
façamos ou deixemos de fazer. Deus ama porque Ele é amor. Logo, não amar
significaria negar sua própria essência, significaria Deus negar-se a si mesmo.
Ao amar, Deus está apenas sendo leal a Ele mesmo. Ele não se doa por uma
obrigação de ofício, mas, sim, pelo prazer de poder, mais uma vez e de novo,
manifestar-se assim como Ele é. Quando Ele ama, simplesmente reafirma
quem Ele é. Deus é amor, e sua graça será sempre derramada
não por merecimento, mas, sim, porque Ele nunca deixará de ser quem Ele é. Eis
aí algo que parece que Deus não pode fazer: Ele não pode escolher não amar,
pois isso fere sua essência.
Deus ama não somente a criança
abandonada, a menina abusada, aquele que foi morto por uma bala perdida, a
mulher que teve sua casa incendiada pelo marido com ela dentro, mas Ele também
ama aquele que abandonou a criança, o que abusou da menina, o que apertou o
gatilho, o que incendiou a casa, embora Ele abomine essas atitudes e aja com
justiça contra os maldosos. Deus amou aquele que não o reconheceu, aquele que o
rejeitou, aquele que o traiu, aquele que o negou. O mundo não é um lugar belo e
digno de ser amado, tem muito ódio e malignidade, mas, mesmo assim, Deus amou-
o.
Por esse motivo, Jesus disse: “[...] sabendo Jesus que já era chegada a sua
hora de passar deste mundo para o Pai, como havia amado os seus que estavam no
mundo, amou-os até ao fim” (Jo 13.1).
Jesus amou os do mundo exatamente como
eles eram, sem fantasiar esse amor, sem ser enganado, pois conhecia o coração
deles (Mc 12.15; Lc 11.17). Por isso mesmo, Deus não está iludido em relação a
nós. Ele sabe quem nós somos, que pecamos,
que temos dificuldade para amar, que muitas vezes viramos as costas para Ele; mas,
assim mesmo, Ele continua e continuará
amando incondicionalmente. Quando
o homem disse
“não” para Deus,
só houve um jeito de Deus trazê-lo para si: dando as costas para si
mesmo e encarnando como homem. Dizer “não” para si mesmo para dizer “sim” ao
ser humano a quem Ele ama.
Um dos mais belos textos bíblicos do
Antigo Testamento que exemplifica esse amor de Deus é a vida parabólica de
Oseias, o profeta que toma para si uma mulher totalmente indigna de ser amada
e, mesmo assim, ela é amada por ele, apesar das suas estripulias, traições,
amantes e repulsas pelo profeta. Ele toma todas as medidas para que a sua
esposa venha amá-lo; vai ao encontro dela, recompra-a no mercado de
prostituição, leva-a para casa e cuida dela com um amor incondicional e não
correspondido. Deus quer mostrar ao seu povo que, apesar de não serem
merecedores do seu amor, Ele, assim mesmo, ainda continuaria amando-os (Os
11.8-9). O amor de Deus manifesta-se terno e compassivo, muito acima do amor
humano, que é apenas responsivo. Em
Oseias, Deus solicitou ao profeta que Ele fizesse uma
demonstração
real do seu amor para com seu povo, atestando, assim, que Deus ama mesmo que o
alvo do seu amor seja totalmente perverso e indiferente (Os 11.1-4).
Deus é amor (1 Jo 4.8, 16) e, por esse
motivo, Deus prossegue amando até à morte, como demonstrado na própria morte de
Cristo (Gl 2.20; Rm 5.8; 2 Co 5.14). Ele é a própria essência
do amor; nós, seres humanos,
somos apenas dotados com a capacidade de amar, mas Ele é o próprio
amor. O objeto desse amor é o
mundo todo destinado à salvação (Jo 3.16) mediante a pregação do evangelho (At
1.8), ou seja, toda a criação existente, incluindo, logicamente, o homem.
Diferentemente de outras crenças e
religiões cujas divindades precisam ser descobertas (no sentido de não se
revelarem) e agradadas para aplacar-lhes sua ira patológica, a cristandade tem
seu fundamento em um Deus que se revela e que deseja que a humanidade venha
conhecê-lo. Essa revelação baseia-se em amor, pois não são as criaturas que
amam para que Deus venha amá-las, mas é o Deus verdadeiro que as ama para, a
partir desse amor, seus filhos venham amá-lo por terem sido amados primeiro (Jr
31.3). O objeto do amor, o ser humano, não tem nada para ser amado; portanto, o
amor de Deus é espontâneo e ilimitado.
Os evangelhos não apenas descreveram
ditames morais e éticos, mas também estão repletos de ações de Jesus que
revelam o amor de Deus. Quando seus discípulos pediram para que Ele mostrasse o
Pai, Jesus respondeu: “Quem me vê a mim vê o Pai” (Jo 14.9). Foi por isso que
Ele compadeceu-se dos pobres e marginalizados, curou os doentes, deu vista aos
cegos, libertou os oprimidos do Diabo e estava sempre pronto para receber os
mais miseráveis pecadores (Lc 15.11). Tudo isso aponta para o grande amor de
Deus para com aqueles que não têm forças por si só de atraírem o amor e o
cuidado dos outros (Lc 7.34), pois são indignos de serem amados pela
seletividade do egoísmo e da individualidade humana; entretanto, Deus ama essas
pessoas em Cristo Jesus.
É baseado nesse amor que o crente tem a
sua segurança da salvação. É na revelação desse amor que ele firma sua confiança em Deus, que lhe ama incondicionalmente. Isso traz uma
grande responsabilidade para o crente amar a Deus mesmo sabendo que seu amor é
incondicional. Muitos têm medo de expor com clareza o amor de Deus porque os
crentes podem abusar desse
amor,
entendendo que Ele amará do mesmo jeito, e, assim, eles aproveitarão para
pecar; e Ele amará mesmo, mas é impossível entender o amor de Deus e não ser
constrangido à obediência por amor (2 Co 5.14). Quem não se sujeita
obedientemente a esse amor é porque, na verdade, não o compreendeu nem o
experimentou. É preferível servir a Deus por amor a servir baseado em ideias de
medo e punição que são alienadoras e mentirosas em relação ao que Deus realmente
é. Foi por isso que Oseias escreveu: “Atraí-os com cordas humanas, com cordas
de amor; e fui para eles como os que tiram o jugo de sobre as suas queixadas; e
lhes dei mantimento” (Os 11.4).
UM DEUS MISERICORDIOSO
A misericórdia de Deus é necessária em
face da miserabilidade do homem. Por esse motivo, a Bíblia refere-se a Deus
como o Pai das misericórdias (2 Co 1.3), de forma que tudo o que Ele faz é
permeado por sua misericórdia (Sl 145.9), especialmente a obra de salvação pela
qual estamos salvos (Tt 3.5). Assim, a misericórdia é a fidelidade de Deus para
com a aliança de amor estabelecida com a humanidade (Sl 89.28) apesar da
infidelidade e da indignidade desta.
Em grego, eleos
(correspondente hebraico de hesed) significa expressar compaixão para com aqueles que sofrem alguma
necessidade, ou que estão em extrema angústia, ou que estão em dívida e não
encontram uma solução favorável. Este, portanto, é o significado da
misericórdia referindo-se a Deus (Sl 103.13): a raça humana encontra-se em
profunda angústia e dívida, merecendo a condenação eterna; Deus, no entanto,
compadece-se dela fazendo irromper sua misericórdia em meio à desgraça humana
simplesmente porque é um Deus de misericórdia e, então, traz-lhes perdão,
alívio e descanso através de Cristo (Ef 2.4-5). Paulo
afirma um grande
gesto de misericórdia de Deus
quando “havendo riscado a cédula que era contra nós nas suas ordenanças, a qual
de alguma maneira nos era contrária, e a tirou do meio de nós, cravando-a na
cruz” (Cl 2.14).
Uma das mais belas histórias
que retrata a misericórdia de Deus e que
reflete exatamente o que Ele fez e faz por nós é a história de Nínive,
retratada pelo profeta Jonas.
Nela, a pecaminosidade daquela cidade extrapolou os limites da alienação humana, atraindo a justiça e a ira de
Deus; mas, mediante
a pregação dura do profeta Jonas, a
cidade arrependeu-se, e Deus teve misericórdia dela. Isso causou a indignação
do profeta, pois a misericórdia de Deus é paradoxalmente oposta a qualquer
senso de justiça humano. Apesar disso, o profeta entendeu que a destruição da
cidade era a coisa mais correta e justa que Deus poderia fazer (Jn 4.2).
Assim,
a misericórdia de Deus faz-se necessária para que o estado de alienação e pecado em que o homem vive
não faça com que sua ira e justiça divina irrompam em destruição e morte
eterna. A misericórdia interpõe-se entre Deus e o ser humano, entre sua
santidade e nossa pecaminosidade, entre aquilo que Deus deveria fazer conosco e
aquilo que efetivamente Ele faz. Portanto, a misericórdia de Deus é infinitamente maior do que sua ira (Is
54.8). O nascimento, a vida e a obra de Cristo são a encarnação dessa
misericórdia de Deus.
Quando andou na terra, os atos e
palavras de Jesus demonstraram intensa compaixão para com os pecadores e com o
sofrimento humano, de tal forma que as escrituras afirmam, por várias vezes,
que Jesus sentiu compaixão (Mt 15.32; 20.34; Mc 8.2; Lc 7.13; 15.20; Jo 8.11).
Baseado nessa misericórdia, o crente pode tranquilizar seu coração quando se
sentir perturbado e afligido (Ef 2.4-5) e, quando em pecado, pode alcançar seu
perdão e reconciliação (1 Jo 2.1), pois a sua misericórdia alcança-o a cada dia
e nunca acaba (Lm 3.22, 23; Is 54.7); todavia, sua misericórdia não deve servir
de oportunidade para o pecado (Jo 5.14; Hb 10.27). Certamente, uma das coisas
mais difíceis da vida espiritual é receber o perdão de Deus.
Há
alguma coisa em nós, humanos, que faz com que nos apeguemos aos nossos pecados
e impeçamos que Deus exclua o nosso passado e nos ofereça um recomeçar
inteiramente novo. Às vezes, até parece que quero provar a Deus que a minha
mesquinhez leva-me a devolver a total dignidade da afiliação; persisto
em insistir que conseguirei contentar-me em ser um servo eventual.
Receber o perdão exige uma absoluta aceitação para deixar que Deus seja Deus e
faça toda a cura, restauração e reparos.47
Quando aceitamos a misericórdia de
Deus, também nos tornamos aptos a exercê-la em prol dos outros. Nos homens, o
mais baixo grau de qualidade espiritual é a ausência de misericórdia (Rm
1.29-32); por isso, as Escrituras admoestam
os crentes a terem entranháveis afetos e compaixões (Fp 2.1), como um
sentimento que brota das mais intensas emoções e afetos. Por esse
motivo,
um dos sinônimos gregos da palavra misericórdia é justamente splanchnizomai (ter
dó, ter misericórdia, sentir empatia), cuja raiz splanchna é entranhas,
partes internas; por isso mesmo que, na antiguidade, significava a sede das emoções.
A Bíblia ensina-nos a expressarmos ternos
afetos de misericórdia (Cl
3.12) e declara que os misericordiosos são bem-aventurados e serão beneficiados
pela misericórdia (Mt 5.7) quando necessitarem dela. Os escritores bíblicos
querem afirmar com isso que a misericórdia deve ser exercida ativamente para com
aqueles que não são dignos de amor e deve ser gerada como um sentimento que
brota das entranhas, ou seja, extremamente profundo que brota do âmago do ser e
que é manifestada em ações concretas de perdão, acolhimento e serviço em
relação ao próximo.
AMOR, BONDADE E COMPAIXÃO NA VIDA DO
SALVO
A primeira evidência da salvação na
vida do crente é a maneira como ele ama a Deus. Esse amor é demonstrado na
singela experiência de comunhão íntima com o Senhor (Sl 18.1; 116.1) e na
obediência aos seus mandamentos (Dt 10.12; Jo 14.21). A segunda evidência é o
amor demonstrado ao seu semelhante, que, conforme João escreveu, é a evidência
material de seu amor para com Deus (1 Jo 3.17). Porém, a luta entre o amor e o
desamor é acirrada nos corações.
Desde
que a serpente disse: “[...] no dia em que dele comerem [do fruto da árvore que
está no meio do jardim], seus olhos se abrirão, e vocês, como Deus, serão
conhecedores do bem e do mal” (Gn 3.5), somos tentados a substituir o amor pelo
poder. Jesus viveu essa tentação da maneira mais agonizante possível, do
deserto até a cruz.48
O cristão que conhece e entende
(racional e relacionalmente) o amor de Deus, reconhecendo-se como um pecador
amado e alcançado por Ele, manifestará em seus relacionamentos o mesmo tipo de
amor, pois seu amor deriva-se do próprio amor de Deus. Ele é a fonte desse amor
que não cessa de jorrar e provê
a capacidade de amar sempre
de novo, mesmo
sob circunstâncias adversas (Rm 5.5; 15.30). Estando em Cristo ou Cristo
em nós (Gl 2.20), temos a certeza de que a capacidade de amar apoderou-se de
nós e transformou-nos em pessoas amorosas, pois o amor que os seres humanos
manifestam
tem a sua fonte no amor de Deus.
O Antigo Testamento referiu-se a amar o
próximo como a si mesmo (Mt 22.39), e essa realidade é muito difícil de ser
atingida, pois o egoísmo e a individualidade fazem transgredir o mandamento.
Jesus, porém, coloca outra medida ainda mais alta para o amor. Ele afirmou que
deveríamos amar uns aos outros, assim
como Ele nos amou (Jo 15.12). Sua medida de amor é entregar-se até à morte
por alguém, ou seja, um amor extremado e imensurável. Nossa essência é pecaminosa, e a dEle é amor;
amar como Ele amou é permitir
que Ele habite
em nós de forma tal que submeta
nossa natureza caída ao esplendor de sua essência, que é amor. Amar como
Ele amou vai além de parecermo-nos com Ele e fazer o que Ele faz. Não
aprenderemos amar apenas fazendo o que Ele disse para nós fazermos, mas também
permitindo que Ele viva em nós e ame a partir de nós; assim, não aprenderemos
cognitivamente, mas aprenderemos vivendo a experiência de amar.
Nós, porém, somente teremos condições
de amar como Cristo amou se primeiramente compreendermos a grandeza desse amor,
como foi abordado anteriormente no tópico 1 deste capítulo. O motivo pelo qual
muitos crentes não conseguem amar é porque nunca entenderam, por mínimo que
seja, a grandeza desse amor, ou ainda, porque nunca o experimentaram em suas
emoções, as quais não puderam ser tocadas por esse amor.
Sobre a capacidade de compreender o
amor de Deus, Frank Macchia escreveu que, para os crentes pentecostais, as
línguas faladas como evidência do batismo no Espírito Santo são uma linguagem de amor em que nosso entendimento tateia desajeitadamente para tentar entender
o incomensurável49 e que o pentecostal
recebe o batismo no poder do amor de Deus, que lhe preenche, para
autotranscender as limitações de criatura, transpor fronteiras e desfrutar
sensitiva e emocionalmente o amor santificador de Deus.50 Portanto, uma das
maneiras de compreender, com base na experiência, o que é o amor de Deus, é por
meio da ajuda do Espírito Santo, pois, humanamente falando, seremos levados a
duvidar ou mesmo não compreender esse amor imensurável.
Sygmunt Bauman (1925–2017) afirmou que,
para desenvolvermos nosso amor, precisamos ser amados. Não ser amado, recusar o
amor, não entender que se é amado ou achar que não é objeto digno do amor
alimenta a autoaversão (repugnância de si) porque o “amor-próprio é construído
a partir
do
amor que nos é oferecido por outros”51; logo,
quem se sente amado por Deus também não se ama e não pode amar o próximo. Dessa
forma, para amar o próximo, passa-se por um processo de receptividade do amor
de Deus, de entender profundamente esse amor, de viver e experimentar constantemente a realidade desse amor, de forma
que a profundidade do ser desfrute objetiva e subjetivamente esse amor.
Assim, ao compreendermos o imenso amor
de Deus, também seremos capazes de amar o próximo. “A práxis do amor eficaz
consegue uma transformação da realidade. Transforma o círculo vicioso da ‘desgraça’
no círculo [divino] da graça, originando uma reação em cadeia de bênçãos.”52 Somente somos emocionalmente sadios se afirmamo-nos diante do nosso próximo como um alguém que cuida de
nós e do qual cuidamos. Para superar nossas necessidades humanas, precisamos
ser cuidados e cuidar dos outros; assim, garantimos nossa humanidade.
Precisamos cuidar do outro para humanizarmo-nos.53 Entretanto, dentro de nós, “temos impulsos para a bondade, a solidariedade, a compaixão, o amor.” Mas, ao mesmo tempo,
temos em nós “apelos para o egoísmo, a exclusão, a antipatia e até o ódio.
Somos feitos com essas contradições, [...] gente de inteligência e lucidez e
paradoxalmente rudeza e violência.”54
Somos inclinados a não amar. Sabemos
que não amamos e nem sabemos amar, mas, através da salvação amorosa praticada
por Cristo a nosso favor e uma vez convertido a Ele, que negou a si mesmo a sua
condição de Deus para assumir a fraqueza humana, é arrancado do nosso coração o
ódio e, então, cheio com a capacidade de amar. Assim, devemos ser esforçados
para amar. Para isso, muitas vezes precisamos resignar a nós mesmos, suportar,
minimizar, perdoar, não usar de violência nas palavras, acolher, cuidar e fazer
tudo o que se relaciona ao amor. Como afirmou Fiodor Dostoiévski (1821– 1881),
“o amor é um tesouro tão precioso que com ele podes comprar o mundo inteiro, e
ainda redimes não só teus pecados, mas também os dos outros. Vai [amando], e
não tenhas medo.”55
Amar
o próximo como na parábola
do Bom Samaritano (Lc 10.30ss)
é amar não apenas aquele que escolhemos para ser nosso próximo, mas
também aquele que se interpõe a mim, que eu encontro na caminhada e que precisa
de mim. É o próximo que define que devo amá-lo (Mt 22.39), e não o meu desejo.
O que define quem é meu próximo
não é a distância ou aproximidade
dele, mas, sim, a necessidade que essa pessoa tem daquilo que, sendo eu
cristão, posso oferecer.
Jesus muda radicalmente a forma como
devemos amar. Ele desafia cada cristão a amar pessoas de etnias diferentes (Lc
10.25ss.); amar pessoas moralmente discriminadas e excluídas, opondo-se à “vanglória legalista e moralista” (Lc 7.34; Mt 21.31; Lc 15.1ss.;
18.11; Mc 2.15-17);
amar os inimigos, contrariando
o amor “incestuoso”, que não ultrapassa o raio dos próprios parentes e amigos
(Mt 5.38-48); e amar os socialmente desprotegidos (contra a ideologia do “cada
um por si, Deus por todos” (Mt 20.1-16)).56
Amor e sofrimento andam juntos. Quem
ama precisa estar disposto a sofrer, pois as relações com o outro são precárias
pelas próprias limitações do ser humano e pelo estado pecaminoso em que todos nós vivemos.
Ninguém consegue satisfazer plenamente o outro numa relação, e isso
precisa ser entendido para evitar frustrações, rancores e ter de exigir do
outro além do que este pode dar, pois isso não é amor, e sim egoísmo.
Entretanto, ao mesmo tempo em que as relações são precárias, elas também são
uma manifestação do Reino de Deus entre as pessoas. Quando os relacionamentos
são saudáveis e comprometidos, há um esforço para cuidar, nutrir, proteger,
lutar, socorrer, prover, exercer misericórdia e estabelecer comunhão
— tudo na potência desse
amor. O apóstolo Pedro afirmou que esse amor é capaz de curar feridas: “[...] tende ardente
amor uns para com os outros, porque o amor cobrirá a multidão de pecados” (1 Pe
4.8).
Certo teólogo disse que o sofrimento do
amor é quando chegamos a ficar cansados de tanto amar, pois aqueles que
precisam do nosso amor levam embora todas as nossas forças, e é exatamente por
serem tão carentes é que precisam mais de nosso abraço. Precisa-se estar pronto
a sofrer decepções, traições e incompreensões e entregar-se ao próximo em amor
sempre novamente (1 Jo 3.14-18). Amar é correr o risco de não ser amado, de
colher ingratidão, injúria e ser perseguido pelo mal em nome do amor. “Quanto
mais alguém é capaz de uma entrega total, maior e mais forte será o seu amor.
Tal entrega supõe extrema coragem, experiência de morte, pois não se retém nada
e se mergulha totalmente no outro.”57
Quando Jesus lavou os pés dos
discípulos, Ele afirmou que, como Ele havia agido em amor, os discípulos
deveriam agir também (Jo 13.14), ou seja, o cristão deve demonstrar na prática a grandeza do amor de
Deus, amando com um amor serviçal
e sacrificial a todos a sua volta. Essa é a maneira
mais grandiosa de demonstrar o verdadeiro discipulado cristão: amar uns
aos outros (Jo 13.34).
Dentro dessa realidade de amar como
Cristo amou, somos exortados pela Palavra de Deus a levar as cargas uns dos
outros (Gl 6.2), a alegrar-se com os que se alegram e chorar com os que choram
(Rm 12.15), chorar com e pelos que não conseguem chorar e ser sensível ao insensível (Lc 19.41-44). O Novo Testamento descreve mais de 36
vezes, direta e indiretamente, a necessidade relacional de “uns aos outros”,
das quais 13 vezes são ligadas diretamente ao amor: lavar os pés (Jo 13.14);
amar cordialmente e honrar (Rm 12.10); acolher (Rm 15.7); admoestar (Rm 15.14;
Hb 10.25b); mostrar afeto (Rm 16.16; 1 Co 16.20; 2 Co 13.12; 1 Pe 5.14); ser
servo (Gl 5.13); suportar (Ef 4.2; Cl 3.13); ser benigno, compassivo e
perdoador como Cristo (Ef 4.32); sujeitar-se (Ef 5.21); instruir e aconselhar
(Cl 3.16); amar fraternalmente (I Ts 4.9); consolar com palavras (1 Ts 4.18;
5.11); edificar (1 Ts 5.11); exortar
no sentido de animar, incitar,
aconselhar, persuadir (Hb 3.13); considerar (Hb 10.24);
confessar as culpas (Tg 5.16); orar (Tg 5.16); amar de coração ardente (1 Pe
1.22); e servir com dons (1 Pe 4.10). Assim, devemos tratar os outros como se
fossem o próprio Jesus e servir os outros como
se nós fôssemos Jesus. “Porque
o amor de Cristo nos constrange,
julgando nós assim: que, se um morreu por todos, logo, todos morreram” (2 Co
5.14).
Extraído do livro: A obra da Salvação.
Por: Clainto Ivan Pommerening.
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