Extraído do livro: A supremacia de Cristo , Fé, esperança e ânimo na carta aos Hebreus.
José
Gonçalves
Comentário
de Hebreus 1.1-14
Fugindo
das características que são comuns na abertura· de uma carta ou epístola, o autor
vai diretamente ao assunto que ele quer tratar. No original, é possível
perceber a beleza da sua construção literária ainda nas primeiras linhas. Neil
R. Lightfoot observa que, já na abertura de seu texto, o autor antecipa tudo o
que se seguirá, Ele mostrará a supremacia da fé cristã em relação ao judaísmo
primitivo.
"Havendo
Deus, antigamente, falado, muitas vezes e de muitas maneira aos
pais, pelos profetas, a nós falou-nos, nestes últimos dias, pelo
Filho" (v.
1).
Os
profetas eram os arautos de Deus para o povo de Israel. A Instituição Profética
no Antigo Testamento é por demais importante para ser minimizada. Para um
judeu, a pior desgraça que poderia existir era o silêncio profético.
A
trombeta profética servia de alerta quando a vida moral, a espiritual e a
social não iam bem. Abraham Joshua Heschel (1907-1972), famoso rabino
austro-americano, escreveu sobre a importância dos profetas:
"O
significado dos profetas de Israel não reside apenas no que eles disseram, mas
também no que eles foram. Não podemos entender completamente o que eles
pretendiam dizer a nós, a menos que tenhamos algum grau de consciência do que
lhes aconteceu. Os momentos que passaram em suas vidas não estão agora
disponíveis e não podem se tomar objeto de análise científica. Tudo o que temos
é a consciência desses momentos como preservados em palavras [...]. O profeta
faz pouco caso daqueles para quem a presença de Deus é auxílio e segurança;
para ele, é um desafio, uma exigência incessante. Deus é compaixão, não
concessão; justiça, embora não inclemência. A palavra do profeta é um grito na
noite. Enquanto o mundo dorme despreocupado, o profeta sente o golpe vindo do
céu".
O
autor de Hebreus tem consciência desse fato - os profetas foram arautos de Deus
para o seu antigo povo. Todavia, uma voz superior a deles fora levantada - a
voz do Filho de Deus! Essa voz era em tudo superior a dos profetas. Os profetas
foram agentes da revelação divina, mas não foram a revelação final. O autor
lembra que essa revelação final, a última palavra profética, era do Filho de
Deus. Nenhum profeta, por mais importante que tivesse sido, poderia igualar-se
em importância com Jesus Cristo.
A
ideia, aqui, não é que Deus não falaria mais a partir daquele momento, como nos
quer fazer acreditar alguns autores, mas, sim, mostrar Jesus Cristo como sendo
o cumprimento de tudo aquilo que foi predito pelos profetas. Adam
Clarke (1760-1832) comentou com muita propriedade que:
"Debaixo
do Antigo Testamento, as revelações foram feitas em ocasiões distintas por
várias pessoas, em diversas leis e forma de ensinamentos com diferentes graus
de clareza, símbolos, tipos e figuras e com distintos modos de revelação, tal
como por anjos, visões, sonhos, impressões mentais, etc.; veja
Nm.12.68. Todavia, debaixo do Novo Testamento, tudo está feito por
uma só pessoa, quer dizer, Jesus, que cumpriu o que disseram os profetas e
completou as profecias".
"A
quem constituiu herdeiro de tudo, por quem fez também o mundo" (v. 2). A palavra
"herdeiro", que traduz o termo grego kleronomos, era
usada em referência à divisão dos bens que um pai realizava em
favor de seus filhos. No judaísmo antigo, esse termo foi usado para o
lançamento de sortes para ser definido a quem caberia a parte da herança. A
ideia é que Jesus Cristo, por ser o único Filho de Deus, tomou-se o herdeiro de
tudo. Todavia, Ele não era apenas o herdeiro de tudo, mas também foi o agente
da criação. Através dEle, os mundos foram criados. A palavra "mundo"
traduz o termo grego aionas, com o significado de "eras'.
O sentido é que Deus, em Cristo, criou o mundo com tudo o que nele há. Como bem
destacou Efrén de Nisibi: "tanto o mundo espiritual como o material".
"O qual,
sendo o resplendor da sua glória, e a expressa imagem da sua
pessoa, e sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder, havendo feito
por si mesmo a purificação dos nossos pecados, assentou-se à destra
da Majestade, nas alturas" (v. 3). Esse versículo compõe aquilo
que os teólogos denominam de "cristologia alta". A patrística
valeu-se com frequência desse texto para afirmar a divindade de Cristo. Ainda
muito cedo, Orígenes escreveu:
"A mim me parece que o
Filho é um reflexo da glória de Deus, conforme ao que Paulo afirma:
'Ele é o reflexo de sua glória'. Deste reflexo de toda a gloria, reflete
certamente os reflexos parciais que tem as demais criaturas dotadas de razão,
pois penso que nada, exceto o Filho, pode conter o reflexo da glória do Pai em
sua totalidade".
Por outro lado, Atanásio, em seu
discurso contra os arianos, escreveu:
"Quem
já viu uma luz sem resplendor? Ao escrever aos Hebreus, o apóstolo afirma:
'Cristo é o esplendor de sua glória e a marca de sua substância', e Davi, no
Salmo 89, canta: 'O esplendor do Senhor, nosso Deus, está conosco', e também:
'Em tua luz, vemos a luz'. Quem é tão néscio que não entende que essas palavras
referem-se à eternidade do
Filho? Como pode alguém ver a luz sem o esplendor de sua irradiação para poder
dizer a respeito do Filho: 'Houve um tempo no qual ele não existia' ou 'Não
existia antes de ser gerado'? A expressão do Salmo 144
refere-se ao Filho: "Teu reino é um reino eterno" e não permite a
ninguém pensar em um intervalo cronológico, qualquer que seja, no qual o Logos
não existia".
Em
seu clássico e exaustivo comentário sobre a carta aos Hebreus, o puritano
William Gouge (1575-1653) lança mais luz sobre o entendimento desse texto:
"Essa frase, a
expressa imagem, é uma exposição da palavra grega χαρακτήρ, que pode ser traduzida como character (caráter).
O verbo do qual essa palavra é derivada, charattein, insculpir, significa gravar, e
aqui é usada com o sentido de carimbar ou imprimir alguma coisa
gravada como a impressão sobre uma moeda; a impressão sobre o papel feita pela
impressora; a marca deixada pelo selo".
Em outras palavras, aquilo que Deus é,
Jesus Cristo também é.
"Feito
tanto mais excelente do que os anjos, quanto herdou mais excelente nome do que
eles" (v.
4). Tendo mostrado a dignidade do Filho de Deus e sua superioridade sobre o
ministério profético, o autor passa a fazer um contraste entre Jesus e os
anjos. A cultura judaica, representada tanto na literatura canônica
como na apócrifa, dá um papel de destaque para as figuras angélicas. Os anjos
frequentemente aparecem nas páginas do Antigo Testamento. O apóstolo Paulo
advertiu a igreja de Colossos sobre os perigos de uma adoração angélica:
"Ninguém vos domine a seu bel-prazer, com pretexto de humildade e culto
dos anjos, metendo-se em coisas que não viu; estando debalde inchado na sua
carnal compreensão" (Cl 2.18).
Em
nenhum momento, o autor deprecia a instituição profética, nem tampouco procura
desqualificar o papel dos anjos dentro do plano de Deus. O seu
foco, porém, é mostrar que ninguém, nem mesmo os anjos, que habitam os céus,
pode ser maior do que o Filho de Deus. "A ideia é a de
superioridade em dignidade, valor ou utilidade, sendo a ideia fundamental de
poder, e não a de bondade".
"Porque
a qual dos anjos disse jamais: Tu és meu Filho, hoje te gerei? E outra vez: Eu
lhe serei por Pai, e ele me será por Filho" (v. 5 . Embora os anjos sejam
chamados na Bíblia de "filhos de Deus" (Jó 1.6; 2.1), o Senhor,
todavia, jamais os chama de "meus filhos". Essa
expressão só é aplicada a Cristo conforme demonstra o Salmo 2. Aqui,
não está presente a ideia de uma inferioridade do Filho em relação ao pai pelo
fato de aquEle ter sido "gerado". Os cristãos neotestamentários não
tinham problema algum com a divindade de Cristo, sendo que tais questionamentos
foram disseminados em tempo posterior com a heresia ariana. Na cultura
hebraica, as ideias por trás das palavras "Pai" e "Filho"
não trazem o sentido de origem do ser e de superioridade, nem tampouco de
subordinação e dependência. Da mesma forma, os termos "gerado" e
"criado" não podem ser tidos como sinônimos. Loraine Boettner
(1901-1990) observa que essas palavras trazem em si as "noções semíticas e
orientais de semelhança e igualdade de natureza e igualdade
do ser. Obviamente, a sensibilidade semítica é que sublinha a
fraseologia das Escrituras, e, quando elas chamam Cristo de 'Filho de Deus',
confirmam sua divindade verdadeira e apropriada. Isso indica uma relação
peculiar que não pode ser afirmada a respeito de criatura alguma, nem tampouco
compartilhada. Da mesma forma que qualquer filho humano assemelha-se ao pai em
sua natureza essencial, isto é, possui humanidade, assim também Cristo, o Filho
de Deus, era como o Pai em sua natureza essencial, isto é, possuía Divindade".
C. S. Lewis
(1898-1963), o consagrado escritor britânico e autor de as Crônicas de
Nárnia, em uma carta escrita a Arthur Greeves, disse que:
"Gerar é tornar-se
pai; criar é fazer. A diferença é esta: quando você gera, gera algo da mesma
espécie que você. Um homem gera bebês humanos, o urso gera filhotes ursos, e um
pássaro gera ovos que se transformam em passarinhos. Mas quando você cria, faz
algo de uma espécie diferente da sua. O pássaro faz o ninho, o
castor constrói um dique, o homem faz o telégrafo - ou talvez faça alguma coisa
mais parecida consigo mesmo, como talvez uma estátua. Se for um
escultor bem qualificado, pode fazer uma estátua bem parecida com um homem.
Naturalmente, porém, ela não será um homem verdadeiro, apenas se assemelhando a
ele. Ela é incapaz de respirar ou pensar. Não está viva. Essa é a
primeira coisa a compreender. O que Deus gera é Deus; assim como o
que o homem gera é homem. O que Deus cria não é Deus; da mesma forma que o que
o homem cria não é homem. Daí a razão de os homens não serem filhos
de Deus no mesmo sentido que Cristo. Eles podem assemelhar-se a Deus em certos
aspectos, mas não pertencem à mesma espécie. Aproximam-se mais de
estatuas ou figuras de Deus".
"E,
quando outra vez introduz no mundo o Primogênito, diz: E todos os anjos de Deus
o adorem" (v.
6). O autor põe em relevo a superioridade do Filho em relação aos anjos quando
destaca que estes devem prestar -lhe adoração. A ideia, aqui, não é apenas de
prestar uma homenagem como sugere o ensino ariano. O vocábulo grego proskyneo traz
a ideia de prostrar-se e adorar. Os
intérpretes acreditam que o autor nessa citação fez uma combinação de
Deuteronômio 32.43 com o Salmo 97.7 (96.7 LXX). Tanto o texto massorético em
hebraico como o texto grego da Septuaginta traduzem as palavras histabãwüe
proskyneo como adorar. "E, quanto aos anjos, diz: O que
de seus anjos faz ventos e de seus ministros, labareda de fogo" (v.
7). A tradução "vento", e não "espírito", posta logo após o
termo "anjos", conforme aparece na Almeida Revista e Atualizada,
capta melhor o sentido do original. O sentido é que os anjos podem assumir
tanto a forma de vento como de fogo! Por outro lado, a palavra
"ministros" (gr. leitourgeo) dá a ideia de alguém a
serviço de outrem. Os anjos são seres a serviço de Deus.
"Mas,
do Filho, diz: Ó Deus, o teu trono subsiste pelos séculos dos
séculos, cetro de equidade é o cetro do teu reino" (v. 8). Aqui, o autor faz uma
referência ao Salmo 45. Precisamos enxergar o caráter messiânico desse salmo se
quisermos, de fato, entender o pensamento do autor. Em seu comentário do Novo
Testamento, Joseph Benson (1749-1821) observa que essa citação só tem sentido
quando aplicada a Cristo. 12 Somente Ele pode ser chamado de Deus.
Archibald Thomas Robertson (1863-1934), da mesma forma, vê nesse texto uma
afirmação da divindade de Cristo. Robertson observa que "essa citação (a
quinta) provém do Salmo 45.7ss. Uma ode nupcial hebraica (epithalamium) para
um rei, que aqui é tratado como messiânico. Aqui, ho
theos deve tomar-se como vocativo (dirige-se a palavra como na forma
nominativa, como em João 20.28, onde o Messias é designado como
Deus; cf. Jo 1.18 )".13 "Amaste a justiça e
aborreceste a iniquidade; por isso Deus, o teu Deus, te ungiu com óleo de
alegria, mais do que a teus companheiros" (v. 9). Eusébio de
Cesareia (263-339 d.C.) destaca:
"aqui,
o primeiro versículo do texto o chama de Deus; o segundo o honra com o cetro
real. E a continuação depois de seu poder divino e régio mostra o mesmo Cristo,
em terceiro lugar, ungido não com óleo que procede de matéria corporal, senão
com o óleo divino do gozo, pelo que vem significar sua excelência, sua superioridade
e sua diferença em relação aos antigos, ungidos mais corporalmente e em
figura".
"E:
Tu, Senhor, no princípio, fundaste a terra, e os céus são obra de tuas
mãos" (v.
10). Com sua mente no Salmo 102.25-27 e sempre seguindo a Septuaginta, o autor
descreve a exaltação de Cristo, que é retratado aqui como Senhor e
Criador. Para o autor, uma das inúmeras razões da superioridade de Jesus sobre
os anjos é que Cristo não é uma criatura, mas, sim, o próprio Criador de tudo o
que há. Essas palavras fazem um paralelo com Colossenses 1.16 e João 1.3.
"Eles perecerão,
mas tu permanecerás; e todos eles, como roupa, envelhecerão" (v. 11). Em contraste com o mundo que
passará, Jesus permanecerá para sempre.
"E,
como um manto, os enrolarás, e, como uma veste, se mudarão; mas tu és o mesmo,
e os teus anos não acabarão" (v.
12). O autor põe em relevo as metáforas para contrastar a transitoriedade do
mundo criado com a eternidade do Filho. Em seu comentário sobre Hebreus, James
Moffat (1879-1944) escreveu: "O mundo desgasta-se, e até mesmo os céus
(12.26) são abalados, e com ele as luzes celestiais, mas o Filho permanece. A
natureza está a sua mercê, e não Ele à mercê da natureza".
"E
a qual dos anjos disse jamais: Assenta-te à minha destra, até que
ponha os teus inimigos por escabelo de teus pés?" (v. 13). Aqui, a figura é de um monarca
sendo honrado diante de seus súditos. O assento da direita revelava posição de
honra. Por outro lado, no Oriente, era costume dos vencedores colocar o pé no
pescoço dos vencidos (Js 10.24). Nenhum dos anjos ocupou uma posição de honra
semelhante àquela ocupada por Jesus. A expressão assenta-te, que traduz o
grego kathou, está no presente contínuo e descreve o estado
permanente da grandeza e supremacia de Jesus para todo o sempre.
O autor está próximo de introduzir outra
seção na sua argumentação, mas ele precisa concluir sobre aquilo que ele havia
argumentado sobre a superioridade do Filho em relação aos anjos. Os anjos são
servos de Deus, Jesus é Filho e Senhor; os anjos não têm
trono, o Filho tem. Os anjos são servos a serviço da salvação; o
Filho é o autor da Salvação. "Não são, porventura, todos
eles espíritos ministradores, enviados para servir a favor daqueles que hão de
herdar a salvação?" (v. 14). O versículo 14 conclui
o que o autor tencionava fazer ao contrastar a pessoa de Jesus com os anjos.
Ficou meridianamente claro que o Filho de Deus é superior aos anjos
em tudo. Os anjos estão a serviço da soberania divina no seu projeto redentivo.
"Afinal, o que são os anjos?", pergunta Stuart Olyott.
"Não
são pessoas da Divindade. São espíritos criados que foram enviados por Deus,
não somente para servi-lo, mas também para servir os cristãos. Quão revelador e
confortante é isso! Em alguns momentos parecemos tão rebaixados e os anjos
aparecem tão poderosos. Mas nós é que herda remos a salvação, não eles.
Embora já estejamos salvos, a consumação final de nossa
salvação (o corpo ressurreto, a absolvição pública no juízo final, as glórias
celestiais, etc.) ainda nos aguarda. Os anjos já estão tão elevados o quanto é
possível; nós ainda aguardamos a glorificação final, quando "julgaremos os
próprios anjos" (1 Co 6.3 ). Mas jamais poderemos nos comparar em glória
com nosso Senhor Jesus Cristo. Muito menos os anjos podem ser comparados a ele!
Por que, então, alguém é tentado a deixá-lo e retomar a uma religião centrada
em um conjunto de regras dadas por meio de intermediários angélicos?".
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