“SUBSÍDIO” L -10 - O PROCESSO DA SALVAÇÃO

Extraído do livro: A obra da Salvação.
Autor da obra: Claiton  Ivan Pommerening.

O processo de salvação envolve várias partes. Neste capítulo, trataremos de três, que são: (1) A justificação, que é a aceitação da justiça de Deus que atua no salvo, tornando-o justo, sendo, portanto, um ato divino; (2) A regeneração, que é nascer de novo, ser nova criatura em Cristo; e (3) A santificação, que é a transformação de algumas características da personalidade humana pela operação do Espírito Santo, como consequência de estar em Cristo como nova criatura. Todo esse processo, que é composto de três partes, é operado no crente através da fé na obra salvadora de Cristo.

JUSTIFICADOS POR DEUS

       A definição da justificação aprimorou-se na história da igreja com Martinho Lutero (1483–1546) quando ele deu sua interpretação do texto: “Porque nele se descobre a justiça de Deus de fé em fé, como está escrito: Mas o justo viverá da fé” (Rm 1.17). Ao meditar sobre ele, Lutero descobriu que todas as obras humanas, as ofertas e as indulgências para alcançar mérito diante de Deus eram inúteis à salvação e somente acarretavam mais condenação. Partindo dessa descoberta, ele entendeu que a justificação é algo que somente Deus pode fazer (Rm 8.30). Trata-se da justiça de Cristo que o crente recebe como dádiva. O crente nunca a possui total e individualmente em sua vivência nEle (Gl 2.20), pois somente nEle são justos, devendo assim ser inocentados.149
       A justiça de Cristo tem implicações sobre aquele que é regenerado, ou seja, aquele que passa do estado de alienação pelo pecado à nova vida com Cristo e, justificado, o homem une-se àquilo que ele está separado, ou seja, a Cristo, o justo. A justiça de Cristo torna aceitáveis aqueles que são inaceitáveis. Essa obra não depende do ser humano, é graciosamente imputada sobre nós através de Cristo. Isso torna os seres humanos, conforme afirmou Lutero, simultaneamente justos e simultaneamente pecadores. Essa compreensão livra os salvos da culpa do pecado, pois tira o olhar da miserabilidade humana e coloca-a no Cristo justo e em seu ato justificante. Por esse motivo, não pode haver mérito próprio no ser humano (Rm 3.21-26, 28; 4.5; Gl 3.11). Quem assim procede aumenta sua culpa e sua angústia e desespero no pecado. Nesse sentido, o único trabalho que compete ao ser humano para ser justificado é confiar nos méritos de Cristo pela fé.150 Dessa forma, cabe a todos se deixarem presentear pela graça divina ou aceitar que são aceitos. Aceitar que se é aceito é um paradoxo da salvação, sem o qual não haveria salvação, mas tão somente desespero.151
       A justificação evoca a ideia de um tribunal jurídico em que pesam terríveis e verdadeiras acusações contra nós, mas, através do sacrifício expiatório e vicário de Cristo, que se tornou injusto por nós (Rm 4.24-25), somos declarados inocentes, e nossa condenação é substituída pela condenação de Cristo na cruz (2 Co 5.21). Trata-se de um ato praticado exclusivamente por Deus, sem interferência nem méritos humanos; ao ser humano, cabe apenas pela fé crer na obra efetuada (Rm 5.1). A fé é o meio instrumental, e não a causa da justificação; é a que nos une a Cristo, nosso justificador. A justificação tem como consequência: o perdão dos pecados, a reconciliação do pecador com Deus, a segurança da salvação e a santificação.
        Aqueles que reconhecem e aceitam a necessidade de sua justificação são os alcançados por ela. Jesus disse que o fariseu que se justificava orgulhosamente por evitar o pecado não alcançou sua justificação, mas o publicano que reconheceu seu pecado foi justificado (Lc 18.9-14). Portanto, justificação não se refere ao esforço pela pureza ou santidade, mas, sim, ao estado de retidão diante de Deus porque Jesus, o Justo, colocou-se por nós diante dEle tomando sobre Ele a nossa acusação.
        Em grego, justificação e seus derivados são grafados como dikaios (justo); dikaiosis (justificação, defesa, reclamação dum direito); e dikaioo (tratar como justo, inocentar, declarar justo). Paulo é quem mais usa o termo justificação em toda a Bíblia, fazendo dela uma palavra chave de sua soteriologia. Tomando como base a justificação, Paulo explica a graça de Deus; a importância da obediência e da morte de Cristo (Rm 3.24); a manifestação de seu amor sobre a cruz (Rm 5.5-9); o significado da redenção (Rm 3.24) e da reconciliação (2 Co 5.18); a aliança com Deus (Gl 3.15); a fé (Rm 4.23); a união com Cristo (Rm 8.1; Gl 2.17); a adoração e o dom do Espírito Santo (Gl 4.6-8; Rm 8.10) e a segurança do crente (Rm 5.1-11).152 Podemos definir que a justificação “é um ato instantâneo e legal da parte de
        Deus pelo qual ele considera os nossos pecados perdoados e a justiça de Cristo como pertencente a nós e declara-nos justos à vista dele.153 Paulo afirma que a justificação é consequência da obra de Cristo, mas é recebida por fé (Gl 2.16; Rm 5.1). Portanto, é um ato que Deus faz posterior à fé (Rm 3.26,28). Entretanto, a justificação não transforma a pessoa; ela apenas é um ato legal que nos livra da condenação (Rm 8.33-34). A transformação acontece como um processo na regeneração. A justificação é completa e irrepetível (“Aquele que está lavado [justificação] não necessita de lavar senão os pés [perdão]” (Jo 13.10)). Ela é mais do que o perdão, embora o perdão esteja embutido na justificação. O perdão manifesta-se no ato da conversão, mas também cada vez que somos afetados pelo pecado.
        A justificação é um ato único praticado por Deus através da fé na ressurreição de Cristo (Rm 4.25), na qual somos declarados justos e livres de toda a culpa (At 13.38-39), e tem dimensão eterna no passado, no presente e no futuro. Mas a fé não é o elemento justificador; caso contrário, seria um mérito humano. Quem justifica é Deus, e a fé serve apenas para apropriar-se espiritualmente da realidade da justificação. “Sabendo que o homem não é justificado por obras da lei, mas pela fé em Jesus Cristo, temos também crido em Jesus Cristo, para sermos justificados pela fé de Cristo e não por obras da lei, porquanto pelas obras da lei nenhuma carne será justificada” (Gl 2.16). Assim, a fonte de nossa justificação é a graça de Deus, o fundamento é a obra de Cristo, e o meio é a fé.
        Há uma diferença entre o conceito de Paulo e o de Tiago quanto à justificação. Este afirma que o cristão é justificado pelas obras (Tg 2.24), só que esse sentido de Tiago tem a ver com obras de justiça que acompanham a salvação. Aqueles que são justificados gratuitamente demonstram, no seu dia a dia, obras de justiça, provando que foram justificados. Tiago refere-se às ações exteriores que demonstram o que aconteceu interiormente conforme a doutrina de Paulo, ou seja, que o crente genuíno demonstra a existência de sua fé através das obras. Quando Abraão creu em Deus, isso lhe foi imputado como justiça, como afirmado por Paulo (Rm 4), sem nenhuma obra da parte dele, ou seja, ele apenas creu; porém, quando ofereceu seu filho num evento posterior, apenas mostrou sua justiça e fé (Gn 22.21).

    Quando Paulo escreveu, teve em vista os não cristãos, e faz uso do cap. 15 de Gn para provar a necessidade da fé, e mostrar que obras são as que vêm da fé. Tiago, porém, dirige-se aos cristãos, e usa o cap. 22 de Gn para provar as necessidades das obras, e fazer ver que a fé deve ser provada pelas obras. Paulo está tratando o assunto do ponto de vista legalístico, e contra todo o mérito humano – Tiago discorre com espírito antinômico e contra a simples ortodoxia intelectual. Um faz realçar a base da justificação, o outro a prova. Paulo e Tiago não são dois soldados de exércitos diferentes, combatendo um contra o outro, mas sim dois combatentes do mesmo exército, lutando, costa com costa, contra inimigos que vêm de direções opostas.
        A justificação é necessária pelo fato de que o pecado levou a humanidade a contrariar as normas de justiça estabelecidas por Deus. Assim, a justificação implica em adequar o ser humano às normas que foram descumpridas, tornando-o justo e cumpridor da Lei. Como esse estado de justiça é impossível ao ser humano atingir, foi necessário que a justiça de Cristo fosse- lhe imputada, fazendo com que os que o aceitam pela fé sejam declarados justos e cumpram os preceitos da Lei, apesar de suas obras de injustiça.
        “A justificação é algo completamente imerecido. Não é uma conquista. É uma obtenção, não uma aquisição. Mesmo a fé não é alguma boa obra que Deus precise premiar com a salvação. É um dom de Deus. Não é a causa de nossa salvação, mas o meio pelo qual a recebemos.157
Outra necessidade de o crente ser justificado é para que Deus veja-nos justos e santos e, assim, sejamos participantes das bênçãos da salvação e para que ninguém, nem mesmo o Diabo, acuse o crente daquilo que Cristo já o perdoou (Rm 8.33-34). Ninguém pode colocar nada na conta da pessoa justificada, pois ela está livre de condenação e é herdeira da vida eterna. O resultado prático da justificação é a paz com Deus (Rm 5.1).
        A justificação do crente é processada em duas etapas. A primeira refere-se ao perdão dos pecados do passado, como se eles não mais existissem, pois foram lançados sobre Cristo; em segundo lugar, é imputada a nós a justiça de Cristo, o que nos torna completamente justos diante de Deus, sendo, portanto, portadores dos méritos de Cristo para sermos reconciliados com o Senhor.
        Erickson faz distinção entre as consequências temporais e eternas quando uma pessoa é justificada: as consequências eternas do pecado são canceladas, incluindo a morte eterna, mas as consequências temporais podem não ser removidas. Como exemplo, é citada a morte física. Outra consequência é a relação de causa e efeito do pecado, que pode ser física ou social, pois o pecado pode levar a perdas para o resto da vida, especialmente quando transgrediu normas que afetam a vida do próximo, por exemplo: assassinar uma pessoa leva à pena de reclusão e não traz o morto à vida, mesmo após a justificação do assassino por Deus.158 Dessa forma, temos a justificação como uma dádiva divina cuja efetivação acontece entre Deus e o pecador, e não necessariamente na esfera humana e física.

REGENERADOS PELO ESPÍRITO SANTO

        O termo regeneração, do grego palingenesia (Mt 19.28; Tt 3.5), aparece apenas duas vezes no Novo Testamento, mas seus correlatos aparecem mais. Temos gennaõ (Jo 3.3,7), gerar, dar nascimento; anakainoõ (2 Co 4.16; Cl 3.10), como refazer, fazer de novo; e kainos antropos (Ef 2.15; Cl 2.13), como novo homem. Regeneração, portanto, tem a ver com o processo sobrenatural pelo qual o pecador é gerado por Deus (1 Jo 5.18) para ser seu filho (Jo 1.12), tornar-se participante da natureza divina (2 Pe 1.4) e possibilitar a sua entrada no Reino de Deus (Jo 3.3).159 A regeneração é a comunicação, no sentido de nascer de novo, em relação à nova vida de Cristo no ser humano (Ef 2.5).
        A regeneração reverte alguns efeitos do pecado na vida do ser humano; por isso, trata-se de uma ação necessária do Espírito Santo que acontece após a justificação e verifica-se na prática da retidão, do amor, na certeza de que Jesus é o Cristo e na vitória sobre o mundo. Todavia, não é uma mudança de personalidade, mas, sim, uma mudança de organizações sobre a vida, as decisões e as vontades; antes, ela era controlada pelo pecado, agora é controlada pelo Espírito Santo. Assim, um impacto sobre o caráter do indivíduo, que agora passa a demonstrar que suas atitudes condizem com a prática do evangelho.
        A regeneração é operada como resposta do indivíduo ao impacto que ele recebe após ouvir a pregação do evangelho (Rm 10.8-9) e após arrepender-se dos seus pecados; portanto, regeneração e arrependimento são processos simultâneos e interdependentes. O arrependimento é a resposta humana ao evangelho, e a regeneração é a resposta divina ao arrependimento.
        A compreensão da regeneração é difícil, pois é uma obra milagrosa e profunda do Espírito Santo no coração humano (Jo 3.5), possibilitando ao homem morto no pecado ser nova criatura (Ef 2.1-4). Nesse processo, o Espírito Santo utiliza-se da Palavra de Deus, que tem o efeito de purificar “pela lavagem da água” (Ef 5.25-26). Agora, o homem regenerado muda seu pensamento de conformidade com o de Deus (Cl 3.10); seu entendimento é aberto para as coisas de Deus, que ele antes não entendia (1 Co 2.15); seus sentimentos registram prazer pela presença de Deus (Sl 16.11), pois agora ele ama a Deus (1 Jo 4.19) e seus irmãos (1 Jo 3.14); sua vontade antes escravizada pelos desejos da carnalidade (Ef 2.2-3) agora se sujeita à vontade de Deus (Mt 6.10) e não vive mais pecando (1 Jo 3.9); sua consciência é purificada (Hb 9.14) e torna-se sensível à voz de Deus (Rm 2.15).160
        Nicodemos ficou curioso para saber como se processava o novo nascimento, mas Jesus não lhe explicou como, apenas disse o porquê isso era necessário: “Em verdade, em verdade te digo que, se alguém não nascer de novo [do grego gennethe anothen], não pode ver o reino de Deus” (Jo 3.3 – ARA), porque a regeneração é a porta de entrada para o Reino de Deus. Gennethe quer dizer tanto “gerar” quanto “nascer”. Na conversa com Nicodemos, Jesus destacou a atuação indispensável e soberana do Espírito Santo na regeneração. Ele age como quer e onde quer, demonstrando as multiformes maneiras de sua atuação na vida do crente, porém sempre de forma perceptível, ou seja, há evidências de sua atuação. Se essas evidências não forem perceptíveis, não houve regeneração (Jo 3.8), e sem a regeneração, não é possível dar sequência ao processo de salvação, que é a adoção e a santificação.
        A história de Nicodemos demonstra a ação soberana do Espírito Santo na vida do crente, não como uma mera influência ou energia, mas, sim, como agente divino, todo-poderoso e misterioso, tomando iniciativas e moldando a vida do crente, dirigindo-o a profundas tomadas de decisões, reordenando suas vontades, purificando as intenções e moldando o caráter. Portanto, Ele é o autor da regeneração. O homem nada pode fazer para sua regeneração. Seu único trabalho é crer na mensagem do evangelho e arrepender-se. Como a regeneração é um milagre, ela é apenas recebida pela fé.
        Para fazer parte do Reino de Deus, é preciso ser nova criatura e nascer do Espírito (Jo 3.5), que opera em nós a vivificação. Ele faz brotar entusiasmo espiritual e vida abundante (Jo 7.38) onde, outrora, havia morte, ofensa e pecado (Ef 2.1). É o agir do Espírito pela Palavra que faz germinar essa vida no coração (Tg 1.18). Paulo definiu essa nova vida da seguinte maneira: “Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim; e a vida que agora vivo na carne, vivo-a na fé no Filho de Deus, o qual me amou e se entregou a si mesmo por mim (Gl 2.20).
        É possível verificar se somos regenerados por algumas mudanças que se processam em nosso viver; são estas as mudanças: surge um amor intenso a Deus (1 Jo 4.19; 5.1); demonstra-se amor pelos irmãos (1 Jo 3.14); rejeição das coisas mundanas e prejudiciais (1 Jo 2.15-16); amor à Palavra de Deus (Sl 119.103; 1 Pe 2.2); amor pelas almas perdidas (Rm 9.1-3); desejo de ter comunhão com Deus e adorá-lo (Sl 42.1-2; 63.1; Ef 5.19-20); vitória sobre o pecado, a carnalidade e práticas antiquadas com o evangelho (1 Jo 5.18; Gl 5.16; 2 Co 5.17); um conhecimento da vontade de Deus (1 Co 2.12); o testemunho interior do Espírito Santo atestando nossa filiação ao Pai (Rm 8.16); e um intenso desejo de praticar a justiça (1 Jo 2.29). Claro que não somos perfeitos e deparamo-nos com a impossibilidade de manifestar essas mudanças em todo o tempo, mas, substancialmente, elas estão presentes na regeneração.
Quando os despertamentos espirituais nas igrejas enfraquecem, passa-se a considerar a conversão como um ritual religioso e um ato voluntário do homem ao invés do convencimento do Espirito Santo (Jo 16.8).161 Dessa forma, a regeneração espiritual não acontece, e o que se vê são meras formalidades de adequação a normas religiosas expressas das mais variadas formas, mas nenhuma vida espiritual foi gerada; o que aconteceu foi apenas uma pequena reforma, agregando crentes frios e apáticos que não se aprofundam nas verdades do evangelho e não vivem a vida de Cristo. O que aguça a necessidade da regeneração no incrédulo é a pregação bíblica profunda e verdadeira, sem rodeios nem acalento ao pecado, como bem afirma Packer:
    Se não pregarmos sobre o pecado e o juízo divino contra o pecado, não poderemos apresentar Cristo, o Salvador do pecado e da ira de Deus. E, se silenciarmos sobre tais coisas, pregando um Cristo que tão-somente salva os homens de si mesmos e das tristezas deste mundo, não estaremos pregando o Cristo da Bíblia. De fato, estaremos dando um falso testemunho e pregando um falso Cristo. Nossa mensagem será “outro evangelho” (Gl 1.8). Esse tipo de pregação poderá aliviar a alguns, mas não conseguirá ajudar a ninguém; pois um Cristo que não é reconhecido nem buscado como Aquele que salva do pecado também não pode salvar as pessoas de si mesmas e nem de qualquer outra coisa [...]. Essa abordagem de minimização apenas nos leva a lidar com meias-verdades a respeito da salvação; e uma meia-verdade, exposta como se fosse a verdade toda, é uma mentira completa.162
        Uma pregação assim tem o poder de “atirar uma flecha que atinge em cheio o coração do pecador até que este se dobre em agonia, clamando pelo perdão divino”.163 É necessário que aqueles que pregam a Palavra de Deus preocupem-se também em gerar, no coração dos ouvintes, os meios necessários à regeneração.
        Existe ainda uma diferença entre conversão e regeneração. Esta é a ação divina criando um novo ser, um novo homem, um novo coração, uma nova criação (2 Cr 5.17), que nos torna filhos de Deus eternamente (Jo 1.12-13) e que nos faz passar da morte para a vida (Jo 5.24); já a conversão é a resposta humana à regeneração no processo de salvação, que é voltar-se e render-se inteiramente à operação do Espírito Santo. A regeneração é um milagre operado por Deus na natureza humana que é incompreensível à mente natural (Jo 3.3,7), e o Espírito Santo é o operador dessa transformação, fazendo em nós um renovo no coração que, antes apático para as coisas de Deus, agora se volta com toda a vitalidade e força para Deus e para as coisas que são espirituais.
        A lei e a moral são consequência do pecado; por isso, são temporais e precárias. Essa fragilidade precisa ser suplantada pela regeneração, que inicia um processo de gravar no coração humano a realidade do Reino de Deus através do evangelho de Cristo (Ez 11.9-20). “Este é o concerto que farei com eles depois daqueles dias, diz o Senhor: Porei as minhas leis em seu coração e as escreverei em seus entendimentos” (Hb 10.16). A regeneração é independente de qualquer condição prévia moral, intelectual ou religiosa: não é o bom, ou o sábio, ou o piedoso quem está destinado à regeneração, mas aqueles que são faltos de todas essas qualidades e estão certos de serem inaceitáveis,164 mas que creem na obra salvadora de Cristo.
    A regeneração é um processo instantâneo que acontece pela “lavagem da regeneração e da renovação do Espírito Santo” (Tt 3.5), dando início ao crescimento e maturidade espiritual, que é a santificação — essa, sim, é um processo contínuo em que nos tornamos as pessoas que Deus projetou que fôssemos (Rm 8.28-30).

SANTIFICADOS EM CRISTO

        A santificação é um agir conjunto do crente com o Espírito Santo, que produz nele a necessidade de viver conforme os preceitos do evangelho de Jesus e esforçar-se para, em tudo, ser um imitador de Cristo. Santificação também é a capacidade de reconhecer as fraquezas humanas e apresentá-las sempre diante de Cristo, de onde procede a capacidade de vencê-las. Quanto mais transparente se é nesse relacionamento com Ele, não escondendo nada, tanto mais possibilidades de santidade são adquiridas.
        Ainda que a justificação e a santificação sejam quase inseparáveis na experiência da vida cristã, ambas devem claramente se distinguir na compreensão, pois a justificação é um ato exclusivo de Deus alcançado através da fé; já a santificação é o trabalho em cooperação do crente com o Espírito Santo (Ef 4.12), o agente santificador. É Ele que nos fortalece no esforço da santificação. Esta é momentânea na justificação do crente, ou seja, Deus o vê como santo, ainda que sua santidade precise ser aperfeiçoada; mas a santificação também é a contínua operação do Espírito Santo, pela qual Ele livra o pecador justificado da corrupção do pecado, santifica toda a sua natureza à imagem de Deus e capacita-o às boas obras.
        Antônio Gilberto classifica a santificação como passada e instantânea, porque, em Cristo, o crente torna-se santo no ato da conversão (Cl 1.20), chamada de santificação posicional; mas ela também é presente progressivamente no dia a dia da vida cristã, chamada de santificação experimental ou prática;165 e ela também é futura, completa e final e ocorrerá na segunda vinda de Cristo.166
Santificação é morrer para o pecado (Rm 6.10-11), como disse Paulo; note, porém, que não é o pecado que morre, e sim o crente que morre para o pecado, segundo escreveu Pearlman:
A morte cancela todas as obrigações e rompe todos os laços. Por meio da união com Cristo, o cristão morreu à vida antiga, e os grilhões do pecado foram quebrados. Da maneira em que a morte dava fim à servidão do escravo, assim a morte do crente, que morreu para o mundo, libertou-o da servidão ao pecado.167
        Assim, a santificação é o processo pelo qual o crente morre para o pecado para viver uma vida inteiramente consagrada a Deus, desenvolvendo nele a imagem de Cristo (Rm 8.29). No processo de conversão, a santificação é outorgada ao cristão (Cl 3.12), e Deus o vê santo porque está inserido no corpo de Cristo; como Cristo é santo, o crente também é santo. Nesse sentido, nossos pecados estão afogados no corpo de Cristo, que é santo (1 Jo 3.6), porque se está nEle, o santo.
        Os resultados da obra de santificação conforme os textos bíblicos são: “andar na luz” (1 Jo 1.7); “guardar os mandamentos” de Deus (1 Jo 2.3); “agradar a Deus” (1 Ts 4.1); “viver de modo digno do Senhor” (Cl 1.10); ter os “corações confirmados em santidade, na presença de nosso Deus” (1 Ts 3.13); e estar “aperfeiçoando a nossa santidade no temor de Deus” (2 Co 7.1), dentre outros.
        Os meios de santificação pela parte divina são: o Pai, conforme a oração de Jesus (Jo 17.17); o Filho ofertando seu corpo na morte (Hb 10.10); e o Espírito Santo como seu principal agente (1 Pe 1.2). Os meios de santificação humanos são: a fé (At 26.18); a obediência à Palavra (Jo 17.17); a rendição ao Espírito Santo (Jo 16.13);168 e o sofrimento da correção divina (Hb 12.10- 11).
        O processo de santificação é passivo (Rm 6.13; 12.1; 8.13) e ativo (Rm 8.13; Fp 2.12-13) por parte do crente. É passivo porque é obra do Espírito Santo e, por isso, é necessário apenas entregar-se ao seu agir sem resistir-lhe (Ef 4.30); é ativo porque o crente busca a santificação através da leitura e meditação da Bíblia, da oração, da adoração, do testemunho, da comunhão, do domínio próprio e praticando disciplinas espirituais que lhe aperfeiçoam o caráter. O esforço ativo da santificação é para não nos tornarmos cristãos passivos e indolentes. A passividade de render-se ao Espírito Santo é para não nos tornarmos orgulhosos e confiarmos falsamente em nós mesmos (1 Pe 2.11). A santificação deve ser almejada e priorizada por nós (Hb 12.14) com muita determinação, pois a natureza pecaminosa que reside em nós quer ter seus privilégios e resistir a esse processo (Rm 7.14,21).
        Para Paulo, essa atuação conjunta entre o crente e o Espírito Santo produz o fruto do Espírito (Gl 5.22-23). Essa maneira de viver é realizada no crente à medida que ele permite o Espírito Santo fazer a sua obra em sua vida de tal maneira que ele (o crente) subjugue o poder do pecado, especialmente as obras da carne, e ande em comunhão com Deus (Ef 4.2,3; Cl 3.12-15; 2 Pe 1.4-9). Note que, para Paulo, não é tanto uma carga negativa de negações da vida, mas, sim, o abandono de pensamentos e ações que tornam a vida pesada e cheia de contradições (Gl 5.16-21); é, principalmente, um desejo positivo de produzir e viver as boas coisas do Espírito Santo conforme a lista do fruto do Espírito descrita por Paulo na epístola aos Gálatas.
        Como vista anteriormente, dentre as formas que o Espírito Santo usa para santificar o crente, está o sofrimento, que pode ser encarado como um processo pedagógico de Deus promovendo a santificação (Hb 12.7). Para isso, é preciso estar aberto e disponível e entender que esse processo, embora doloroso, pode ser aproveitado pelo crente para perceber sentimentos, desejos e intenções ocultas no coração que vêm para fora em momentos de sofrimento. Nesse sentido, deve-se levar essas descobertas ao Senhor em oração para obter-se a ajuda necessária para a purificação. Apenas a título de demonstração de algumas dessas coisas ocultas no coração, cito uma pequena lista abaixo, não exaustiva, produzida por Richard Foster:
Paixões desregradas são como crianças mimadas. Precisam ser disciplinadas, e não permitidas. Desejos sexuais que transgridam a vontade de Deus são controlados pelo poder do Espírito. Tendências à indolência não são controladas com ternura, mas com firmeza. O mesmo acontece com o zelo extremo pelo trabalho. Mediante a oração e a fé, fazermos do alimento um servo, e não o senhor. Pelo poder de Deus, recusamo-nos intrepidamente a adiar o sono à noite, sob o pretexto de que nossos corpos são invencíveis. Exercitamo-nos por motivos de saúde e para manter-nos espiritualmente alertas.169
A graça produz em nós uma sensibilidade enorme para percebermos essas coisas no coração e não ferirmos a nós mesmos e aos outros e nem entristecer o Espírito Santo, que atua em nossa santificação. A busca da santidade é uma prova do amor por Jesus, pois, quando se ama alguém, faz-se de tudo para agradar essa pessoa. Portanto, o amor de Cristo nos constrange (2 Co 5.14) a fazermos coisas por Ele que lhe são agradáveis e glorifiquem seu nome.
Quando agimos com falta de santidade, somos feridos de várias maneiras e acabamos ferindo também pessoas queridas a nossa volta. Para evitar o sofrimento da dor alheia ou até mesmo para esconder a falta de santidade, muitos acabam usando “máscaras”, e, ao usá-las, tornam-se hipócritas. Por isso, a melhor maneira de evitar a falta de santidade é sermos transparentes com Deus, permitindo que Ele assuma o controle de nossas vidas e livre-nos das amarras do pecado.
Portanto, quanto mais nos preocuparmos com nossa interioridade secreta, expondo-a diante de Deus sem máscaras, integralmente, tanto mais reflexos positivos experimentaremos em nossa exterioridade, pois é o interior que fornece luz ao exterior (Mt 6.23); é a partir do interior que se reflete a beleza de Cristo (santidade) em todas as dimensões da vida. Isso é possível em relação direta com a capacidade de olhar para dentro de nós mesmos em atitude de oração e perscrutação do coração com a ajuda do Espírito Santo.
Deus quer a santificação dos seus filhos não por capricho divino, mas, sim, porque o pecado fere a cada um de nós, e nosso Pai de amor não quer ver seus filhos feridos, pois isso contraria seu amor. Justamente para sarar a ferida do pecado em nós é que Ele enviou seu Filho para manter-nos afastados do pecado; por isso é que Ele exige nossa santificação.
Santo é aquele que no âmbito de suas limitadas, porém irrepetíveis características, qualidades e circunstâncias pessoais e dentro da vocação e da graça que Deus lhe deu, [...] se abre e corresponde à graça que lhe foi concedida e, conformando-se com Cristo, vive nele a forma de vida determinada que lhe foi dada.170
Às vezes, achamos que podemos ser continuamente bons e santos (1 Jo 1.10),171 mas, na verdade, somos simultaneamente justos e pecadores, ou seja, Deus absolutamente nos vê santos em Cristo; no entanto, nossa santificação é relativa em relação a nossa natureza inclinada ao pecado (Rm 7.15). Por isso, exige-se um esforço e dependência constante do Espírito Santo para a santificação.
A verdade é que, mesmo depois de serem justificados, os crentes continuam cometendo pecados (Tg 3.2; 1 Jo 1.8), embora não sejam mais escravos do pecado (Rm 6.2). A Bíblia mostra-nos claramente que os filhos de Deus muitas vezes cometem pecados bastante graves, como, por exemplo, Davi e Pedro. O próprio Jesus ensinou os discípulos a orarem diariamente pelo perdão de pecados (Mt 6.12), e as muitas pessoas piedosas mencionadas na Bíblia pediram perdão pelos seus pecados (Sl 32.5; 51.1-4; 130.3-4). Essa constatação, porém, não pode ser uma desculpa para que os deslizes espirituais e o pecado sejam tratados com lassidão ou indolência; muito pelo contrário, exige-se mais cuidado e vigilância para não se cair em tentação (Mt 6.13; 26.31).
       A santidade não pode ser entendida como algo absoluto e pronto (Rm 7), pois é um processo de aperfeiçoamento até que sejamos como Cristo (Rm 8.29). Entretanto, essa imagem de Cristo refere-se ao Cristo humano. A simples pretensão de querer ser como Deus infere no problema ocorrido com Adão e Eva no Jardim do Éden, pois o chamado para a santidade não é o ser igual a Deus, mas, sim, assumir integralmente a humanidade, fugindo, assim, da hipocrisia.
       Às vezes, achamos que podemos ser bons e santos em todo o tempo. Muitos cristãos têm sido aprisionados pela culpa e tem vivido em indignidade, não conseguindo exercer com desenvoltura seu chamado no Reino de Deus; mas os que entendem o que é a graça vivem livres da culpa, pois ninguém poderá acusá-los, nem mesmo sua própria consciência, pois ela está purificada graciosamente pela obra redentora de Cristo, ou seja, a consciência antes agitada e perturbada agora é pacificada pela obra de Cristo.
 Extraído do livro: A obra da Salvação.
Por: Claiton  Ivan Pommerening.

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