Retirado do livro : A Igreja do Arrebatamento
O Padrão dos
Tessalonicenses para estes Últimos Dias
Thiago
Brazil.
O capítulo 4 de 1 Tessalonicenses, vemos o início do esforço
de Paulo para responder algumas demandas
doutrinárias e procedimentais daquela comunidade. Neste momento específico da carta, temos uma profunda reflexão sobre
a necessidade de uma vida santa. O contexto
politeísta do mundo
antigo no qual
aquela igreja estabeleceu-se
exigia muito mais do que uma simples “troca” de deuses, ou seja, a conversão ao
cristianismo implicava uma série de mudanças comportamentais na vida pública e
privada.
Ser cristão em Tessalônica acarretava não apenas mudanças
litúrgicas, mas também o abandono de todo um repertório sociocultural que tinha
a religiosidade como pano de fundo, e, nesse caso, com grande destaque, o
orfismo — principal religião mistérica do mundo helênico.
Reflitamos, então, sobre as orientações acerca da vida privada —
centradas, aqui, na questão da sexualidade —, assim como naquelas destinadas à
vida pública — pautadas na exigência de uma vida proba, desvencilhada das
corrupções e abusos aos mais fracos; práticas tão comuns naquele contexto
histórico.
O Cristão e a Cultura
Existe um modelo de procedimento social a ser adotado por um
cristão? O modelo de vida proposto por Paulo aos tessalonicenses para uma comunidade
há 2 mil anos ainda tem caráter aplicável na sociedade atual? Ao discutirmos
questões relativas à vida em sociedade dos cristãos, devemos pautar-nos em
regras ou princípios, atitudes ou conceitos?
Ora, as respostas a essas questões envolvem uma série de
comprometimentos conceituais, os quais, por se organizarem como uma cadeia
argumentativa, não podem ser assumidos sem levar em consideração aqueles que
estão conectados a eles.
Talvez, a questão central em toda essa discussão seja compreender
a relação entre cristianismo e cultura, mais especificamente sobre a
necessidade de apresentação dos princípios norteadores da cultura cristã e a
aplicabilidade dos mesmos à realidade comunitária de cada igreja local.
Se assumirmos o caráter estrutural dessa questão, a necessidade de
resposta a algumas das seguintes questões impõe-se: o que é cultura? Existe uma
cultura cristã ou
apenas pressupostos cristãos
que, aplicados a
qualquer cultura, ressignificam as práticas culturais vigentes de
qualquer sociedade? Diante do multiculturalismo contemporâneo, a defesa de
pressupostos supraculturais ainda faz sentido?
Partamos da definição de cultura como tudo aquilo que é realizado
pelo homem e não está condicionado pelo biológico. De tal concepção, deriva-se
uma inevitável conclusão: apenas o homem produz cultura, uma vez que todos os
demais seres vivos estão subordinados as suas determinações
genético-biológicas, restritos, assim, aos seus instintos animalescos, a uma
determinada região geográfica e modo de vida, por exemplo; o homem, por sua
vez, é criador de seus costumes, produtor de seu modo de vida e colonizador de
todo o planeta.
Para que se esclareça mais ainda tal definição de cultura,
lembremo-nos de que o homem é o único ser capaz de transformar a natureza,
enquanto os demais seres apenas se apropriam da mesma do modo como esta lhes é
apresentada. Criamos objetos para superar nossas limitações biológicas. Com o
avanço da tecnologia, somos capazes de, inclusive, por meio de substâncias que
produzimos ou transformações que realizamos em nós mesmos, alterar
condicionamentos naturais — pensemos em cirurgias para implantes de córneas,
utilização de próteses para substituição ou melhoramento de membros ou órgãos,
etc.
Sobre essa concepção de cultura como elemento constitutivo e
construtivo do homem, afirma-nos Laraia:
O homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele
é um herdeiro de um longo processo
acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquiridos pelas
numerosas gerações que o antecederam. A manipulação adequada e criativa desse patrimônio cultural
permite as inovações e as invenções. Estas não são, pois, o produto da ação
isolada de um gênio, mas o resultado do esforço de toda uma comunidade. (LARAIA, 2008, p.48)
Pode-se, no entanto, restringir o conceito de cultura ao conjunto
de práticas significantes produzidas por uma determinada coletividade. De
acordo com essa definição stricto sensu de cultura, podemos entender que cada
comunidade, em períodos de tempo específicos, produziu uma série de
conhecimentos, artes, costumes e rituais — em suma, cultura — que só pode ser
entendido a partir de uma vivência interna à própria comunidade. Desse modo, um
simples observador externo será incapaz de compreender determinadas práticas
culturais; no máximo, será capaz de avaliá-las somente a partir de seu prisma
cultural particular, deformando, assim, o significado de certo conjunto de
ações próprio de uma sociedade.
A pergunta que persiste é: como definir uma cultura cristã? Falando
em termos sociológicos, seria mais exato falar sobre a cultura da comunidade
cristã em Tessalônica. Ou seja, as práticas culturais da Igreja em Tessalônica
provavelmente serão distintas daquelas vivenciadas na comunidade cristã em
Corinto, por exemplo, apesar de ambas serem coletividades que se guiam
religiosamente de acordo com a orientação cristã.
É por isso que Paulo não criticará, especificamente, a alimentação
onívora ou vegetariana dos grupos em conflito na Igreja de Roma, mas,
antes, exortará que, acima das questões
gastronômicas — e é simplesmente neste nível que elas são definidas pelo
apóstolo —, estejam o amor ao próximo e a misericórdia para com os mais frágeis
na fé. A discussão que se concentra na questão da liberdade e tolerância materializa-se
por meio de uma celeuma cultural (Rm 14).9
Acerca de uma abordagem bíblico-teológica sobre a cultura, defende
Schwambach:
Se lermos o AT e o NT, vamos ver que a realidade do pecado
corrompeu os seres humanos e tudo o que eles pensam, falam, fazem, constroem,
inventam etc. Isso significa que toda a produção cultural da humanidade está
afetada pela realidade do mal, da queda, do pecado. O exercício de qualquer
profissão, o ensino em todos os níveis, toda a ciência, toda a tecnologia, toda
política, toda a arte, mas também
todos os tipos de pensamento humano — toda a elaboração filosófica,
ideológica, cultural e até mesmo religiosa... Nenhuma dessas realidades ficou
sem ser atingida pela trágica realidade da queda. (SCHWAMBACH, 2011, p.32,33)
Segundo esses critérios, parece ser mais coerente falar de
princípios supraculturais com relação ao cristianismo. A defesa daquilo que
seria o conceito de “cultura cristã” — abstraída de toda materialidade e
intersubjetividade social — implicaria na aceitação de que tal produção
cultural é fruto da ação humana que, ao longo dos séculos, por tradição, foi
transmitida às gerações seguintes. Sem dúvida alguma, o cristianismo e seus
pressupostos culturais são muito mais que uma elaboração humana, limitada ao
gênio de uma determinada comunidade e seus membros.
Outro argumento que nos auxiliará a rejeitar a ideia de uma
“cultura cristã” entendida como elemento produzido pontualmente em certo ponto
da história é o de que a produção cultural é algo extremamente dinâmico, movido
pelas transformações políticas, econômicas e sociais, atualizando-se
continuamente conforme as interações internas e externas de cada povo. Ora, se
as verdades cristãs que seguimos são eternas, logo estas não podem ser um
produto exclusivo da dinâmica social de uma comunidade.
Infelizmente, o que se percebe é que, ao longo dos séculos,
práticas culturais pertencentes a
comunidades específicas foram impostas a outras coletividades humanas sob o
pretexto de serem parte de um conceito abstrato de “cultura cristã”. Esse tipo
de processo de violência simbólica é que se denomina de etnocentrismo — a
defesa da imposição de aspectos culturais de um povo sobre outro de modo
coercitivo e cruel.
É necessário, entretanto, reconhecermos que algumas práticas culturais
adotadas por certos povos colidem frontalmente com os princípios cristãos, de
tal forma que o papel da evangelização cristã nessas comunidades será o de
promover não apenas redenção individual, mas também a transformação coletiva; não apenas salvação
pessoal,mas também a restauração sociocultural.
Sobre essa delicada questão, os elaboradores do relatório sobre a
questão da cultura do movimento de Lausanne afirmam:
A conversão não deve “desculturalizar” o convertido. Na
verdade, como temos visto, sua lealdade agora pertence ao
Senhor Jesus, e todas as coisas do seu contexto cultural devem submeter-se ao
escrutínio do Senhor. Isso se aplica a toda a cultura, não somente às culturas
hindu, budista, islâmica ou animista, mas também à cultura cada vez mais
materialista do Ocidente. A crítica pode produzir uma colisão, à medida que elementos da cultura forem
submetidos ao juízo de Cristo e tiverem de
ser rejeitados. Nesse ponto, como reação, o convertido pode tentar
adotar a cultura do evangelista em
lugar da sua. Deve-se resistir firme, mas carinhosamente a essa tentativa.
Dever-se-ia estimular o convertido para que visse suas relações com o passado
como uma combinação de ruptura e continuidade. Por mais que os novos
convertidos sintam que precisam renunciar por amor de Cristo, ainda são as
mesmas pessoas, com a mesma herança e a mesma família. “A conversão não desfaz;
ela refaz.” É sempre trágico, embora seja às vezes inevitável, quando a
conversão da pessoa a Cristo é interpretada por outros como traição às suas
origens culturais. Se possível, a despeito do conflito com sua cultura, os
novos convertidos deveriam procurar identificar-se com as alegrias, esperanças,
dores e lutas de sua cultura própria. (LUZBETAK, 1985, p.34)
Percebe-se, assim, que a busca incessante de cada comunidade
cristã local deve ser alinhar suas tradições e costumes ao crivo dos
pressupostos da cruz, os quais são eternos, supraculturais e constitutivamente
promotores da bondade e da justiça. Somente uma abordagem nesse nível poderá
ajudar-nos a fugir do falso dilema do relativismo cultural de um mundo
multiculturalista. As múltiplas culturas podem e devem coexistir pacificamente
entre si. O que é inaceitável é o fato de que atos de violência — seja esta
simbólica ou física — sejam defendidos como tradições culturais respeitáveis.
Tudo aquilo que subjuga o
outro sem conceder-lhe
qualquer oportunidade de escolha diferente, expropriando-lhe a
humanidade e condicionando sua existência à reificação deve ser totalmente
rejeitado e combatido.
Violência, seja ela de qualquer tipo, não é cultura!
O cristianismo não pode ser utilizado como instrumento de
justificação de qualquer tipo de preconceito, discriminação ou violação
pessoal. A tônica do discurso de Cristo é o amor e a liberdade. A denúncia que
se deve fazer cotidianamente ao pecado deve ter a transgressão como foco
exclusivo, possibilitando, assim, a restauração pessoal, a qual inicialmente
passa por um processo de reconhecimento do outro como pessoa, nunca como pecado
em si; como filho de Deus, e não como personificação da perversão; como objeto
do amor de Cristo, jamais a uma redução do ser ao erro que cometeu.
Desse modo, no que concerne à questão do cristianismo e da
cultura, cabe- nos o exercício diário e constante de diferenciar costumes e
tradições do judaísmo e das comunidades cristãs primitivas dos pressupostos que
devem fundamentar nossas práticas culturais.
Paulo, os Tessalonicenses e o Padrão de Vida Cristão Uma vez tendo sido realizado tal esclarecimento
sobre o papel da cultura e sua relação com o cristianismo, ficam mais claras as
orientações paulinas à comunidade tessalonicense. A preocupação de Paulo
repousava na necessidade de esclarecer àqueles novos cristãos que alguns
elementos de suas práticas culturais não eram próprios de execução para alguém
que experimentou um novo nascimento, uma vez que tais atitudes estavam
inteiramente ligadas a práticas idolátricas.
Um dos possíveis exemplos a serem apresentados sobre essa relação
das práticas socialmente regulares entre os tessalonicenses, porém reprováveis
segundo o padrão do cristianismo, é àquele que remete ao uso do vinho nas
celebrações antigas. Segundo Almeida (2014, p.27): “As orgias em torno do vinho
na Ásia Menor e na Palestina — os tabernáculos, solenidades dos cananeus, eram,
originalmente, orgias ao
estilo dos bacanais
— foram marcadas por estados
idênticos de êxtase aos das orgias em torno da cerveja na Trácia e na Frígia.”
Rituais celebrativos do
culto dionisíaco10 — os
quais possuíam um calendário anual de, pelo menos, três
grandes festejos públicos anualmente — estavam
intrinsecamente associados a práticas sexuais.
Cultos centrados no conceito de fertilidade da terra que
estavam interligados ao uso do corpo
como oferenda às divindades, por meio de danças, orgias e possessões, era algo
muito comum naquele contexto histórico.
Dessa maneira, o que temos na fala de Paulo no início do capítulo
4 de 1 Tessalonicenses é a determinação de um sintoma que caracterizava a
sociedade em Tessalônica: a violência. Em virtude da forte tradição do
dionisismo que se desenvolveu naquela comunidade, os indivíduos não conseguiam
perceber que a objetivação de seres humanos — especialmente de mulheres, com
relação à sexualidade — é um dos mais degradantes atos de subjugação. Por isso, o que Paulo faz
nesse momento de seu ministério é denunciar elementos de injustiça e dominação
que operavam em Tessalônica sob o pretexto de piedade religiosa.
Sobre os cultos orgiásticos a Dioniso, Frontisi-Ducroux afirma:
Que Dioniso seja um deus complexo é uma das afirmações
unanimemente reconhecida pelos estudiosos da religião. Complexo pela
variedade de representações e epifanias, oscilante entre
antropomorfismo completo ou parcial (face, falo), teriomorfismo (touro, leão,
serpente, bode), mas, sobretudo, por
motivos dos diversos componentes do seu culto; vinho e embriaguez; transes
e possessões femininas; festivais dramáticos; procissões fálicas; incursões no
mundo dos mortos; iniciações nos mistérios. (FRONTISI-DUCROUX, 1997, p. 275)
Como se pode perceber, a exortação paulina à santidade na sua
epístola aos tessalonicenses,
quando devidamente contextualizada, ganha
outras conotações que vão além de um mero ascetismo cristão. As
preocupações de Paulo com aquela jovem comunidade estavam diretamente ligadas à
urgente necessidade de cada indivíduo perceber a completa incompatibilidade que
havia entre o culto a Cristo Jesus e às celebrações, por exemplo, a Dioniso-
Osíris.
A problemática da prostituição — para além de todo o debate
estabelecido por Paulo em outros textos — está relacionada em Tessalônica à
questão das possessões dionisíacas durante os bacanais.11 A devassidão sexual,
sendo prática condenável em si mesma segundo a ótica cristã, estava diretamente
associada às potestades que envolviam os cultos dionisíacos. Alertar a cada um
possuir seu vaso em santificação e honra (1 Ts 4.4) envolve diretamente a
necessidade de manter o corpo em separação exclusiva para Deus.
Perceba, no entanto, que a dedicação religiosa do corpo a Jesus
Cristo no culto cristão significa algo completamente diferente daquilo que a
possessão dionisíaca produz. Enquanto Dioniso bestializa seus adoradores —
conduzindo-os ao completo descontrole, aos seus instintos mais baixos e à perda
da consciência de si —, a consagração do corpo ao Senhor Deus implica domínio próprio, adoração
consciente e profundo autoconhecimento
— produzido pelo entendimento da
fragilidade constitutiva de tudo aquilo que é humano.
A santidade de Deus em nossas vidas conduz-nos, muitas vezes, a um
padrão de sociabilidade que, de várias maneiras, transcende as convenções
sociais convenientemente aceitas, porém moral e espiritualmente reprováveis.
Assumir-se cristão em Tessalônica implicava em enfrentar a fúria dos seguidores
de César, Baco, Osíris e de tantos outros seres e deuses que dominavam a cena
política e religiosa daquela cidade.
É para tal nível de comprometimento que Cristo convida-nos hoje.
Numa ambiência tão politeísta quanto aquela — tendo o dinheiro, a luxúria, o
corpo e a tecnologia como as principais divindades desse tempo —, declarar-se
contrário a determinadas práticas publicamente aceitas e estimuladas era o
mesmo que obter ojeriza de grande parte da sociedade. Somos vocacionados para,
por meio de um relacionamento verdadeiro com Cristo, apresentarmos outro modelo
de comportamento e atitude diante de nossa sociedade.
A finalização da reflexão de Paulo sobre a questão da santificação
dos cristãos em Tessalônica desemboca na necessidade de estabelecimento de um
padrão relacional que espelhe a salvação que os envolveu. Segundo Paulo, não
faz sentido assumir uma fé em Cristo, mas manter os negócios pessoais sob o
domínio de Mamon (ver 1 Ts 4.6 – NVI). Ao homem nascido de novo é-lhe exigido
não apenas o abandono dos antigos ídolos religiosos, mas também das pervertidas
práticas econômico-sociais.
O esforço por uma vida em santidade tem um componente triplo:
individualmente, passa pelo respeito à dignidade do próprio corpo e da
integridade da vida de cada sujeito; em segundo lugar, em sua correspondente
comunitária, a santidade exige de cada um de nós o reconhecimento do outro, ou
seja, a capacidade de superar uma mera percepção coisificante dos demais
indivíduos ao nosso redor, para, assim, a designação do respeito próprio a cada
ser humano; e, por fim, no que se remete à espiritualidade, a santidade é uma
condição sine qua non para nosso relacionamento com o Senhor.
Conclusão
Os desafios que os tessalonicenses enfrentavam tornam-se cada vez
mais evidentes a partir do momento em que nos debruçamos com mais cuidado — e
simultaneamente — sobre o texto sagrado e sobre o contexto histórico que
envolvia aquela comunidade.
Com relação a nossa espiritualidade hoje, nada é diferente.
Somente nos concentrando em orientar nossas vidas conforme os padrões da
Palavra seremos capazes de restabelecer a glória de Deus sobre nossa sociedade,
sobre nossa geração. Não somos mais escravos; antes, nossa vocação é para a
liberdade, que se manifesta para nós em Cristo Jesus — dentre tantas outras
maneiras possíveis — como santidade, isto é, como um padrão de vida que se
inspira na graça e no amor de Deus.
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