Enfrentando as questões morais do nosso tempo.
Douglas Baptista.
A vida humana é o ponto de partida para
todos os demais direitos da pessoa. Se a vida humana não estiver assegurada,
torna-se impossível à realização dos outros valores. No entanto, em contradição
a esse pressuposto, temas relacionados à punição com pena de morte e o direito
à eutanásia são frequentemente discutidos e aceitos na sociedade pós-moderna.
Neste capítulo, estudaremos a presença da pena capital em ambos os testamentos
bíblicos, a prática da eutanásia e suas implicações éticas e ainda a vida
humana como sendo originária e pertencente a Deus.
A prática da pena de morte, também
chamada pena capital, é um instrumento jurídico pelo qual um ser humano é morto
como punição por crime cometido. No Brasil, após a Proclamação da República, em
15 de novembro 1889, esse dispositivo foi proibido em caso de crimes civis e
retirado do nosso Código Penal. Porém, o nosso atual ordenamento jurídico ainda
dispõe da pena capital, que pode ser aplicada em casos de crimes cometidos em
tempos de guerra (Art. 5º, XLVII, a, CF 1988). Na maior parte dos países, a
pena capital também já foi abolida ou não é mais praticada. Quanto à eutanásia
e seus desdobramentos, estudaremos na sequência deste capítulo.
I. A PENA DE MORTE NAS ESCRITURAS
É
incontestável a presença da pena de morte nas Escrituras Sagradas. O Antigo
Testamento prescreve a pena capital e o Novo Testamento reconhece sua existência,
mas não normatiza o assunto. A pena de morte tem sido um dos mais
controvertidos temas éticos da atualidade. A maior dificuldade está em
conciliar o ordenamento jurídico da pena capital com o sexto mandamento prescrito
no Antigo Testamento — “Não matarás”
(Êx 20.13)
—,
que pressupõe a preservação da vida e a proibição do assassinato premeditado.
A outra problematização do instrumento
legal da pena de morte é a sua incompatibilidade com o espírito do
cristianismo, que pressupõe o perdão, o amor, a compaixão e a misericórdia; no
entanto, a pena capital está presente nos escritos neotestamentários. O teólogo
pentecostal Esequias Soares pondera que a presença desse instrumento de punição
na Bíblia Sagrada possui sentidos diferentes em cada um dos testamentos: “a
diferença do Antigo Testamento é que ali a lei prescreve como parte de um
sistema legal, e aqui não é mandamento, conselho ou incentivo. O Novo
Testamento apenas reconhece que a pena capital existe” (SOARES, 2015, p. 97).
1. No Antigo Testamento
Uma
questão ética acerca da “pena retributiva” tem sido amplamente discutida a partir
da advertência divina dada no Éden. Depois de criar o homem, o Senhor colocou
Adão no jardim para lavrá-lo e guardá-lo (Gn 2.15). Para a subsistência, Deus o
autorizou comer livremente de toda a árvore do jardim (Gn. 2.16). No entanto, o
homem foi advertido acerca de um perigo real: “Mas da árvore da ciência do bem
e do mal, dela não comerás; porque, no dia em que dela comeres, certamente
morrerás” (Gn 2.17). Argumenta-se que nessas palavras divinas está presente a
pena retributiva, o que significa que “a pessoa é moralmente responsável pelos
seus atos e o delinquente merece castigo adequado” (HOLMES, 2013, p. 111). No
caso específico do Éden, Deus alertou que a desobediência seria punida com
a pena capital. Quanto a isso, os
eruditos cristãos são concordes em afirmar que
a punição aqui se refere tanto com a morte física quanto com a morte
espiritual, ambas como efeito e resultado do pecado. Não obstante, o próprio
Deus providenciou um meio de aniquilar a pena capital, ao enviar seu Filho para
morrer no lugar do homem a fim de salvar a humanidade (Rm 6.23, 1 Co 15.26,54,
Hb 2.14).
O homicídio praticado por Caim
O primeiro registro de homicídio
registrado nas Escrituras relata o esfacelamento da primeira família da terra.
Um problema de relacionamento motivado pelo ciúme e pela inveja resultou no
primeiro crime de fratricídio, ou seja, a morte de um irmão por outro irmão.
Deus responsabilizou Caim pela bárbara e covarde decisão de assassinar seu
irmão Abel (Gn 4.6-10). No diálogo entre Deus e o homicida, arrependido pelo
crime cometido, Caim suplicou perdão ao dizer: “É maior a minha maldade que a
que possa ser perdoada” (Gn 4.13). Por conseguinte, apavorado com as
consequências de seu ato, o assassino conscientizou-se da desgraça que trouxera
sobre a sua vida: “Eis que hoje me lanças da face da terra, e da tua face me
esconderei; e serei fugitivo e errante na terra, e será que todo aquele que me
achar me matará” (Gn 4.14).
As palavras de Caim refletem a ideia da
lei retributiva: “quem me encontrar, me matará”. Em vista dessa convicção o
assassino arrependido é surpreendido pela resposta divina: “qualquer que matar
a Caim sete vezes será castigado. E pôs
o Senhor um sinal em Caim, para que o não ferisse qualquer que o achasse” (Gn
4.15). No primeiro homicídio cometido pelo homem, Deus reclama para si todo o
direito de vingança, por ser o dono da vida (Gn 4.10) e ao mesmo tempo proíbe
que se tome vingança de Caim (Gn 4.15). Deus demonstra compaixão e misericórdia
diante do pavor e desespero estampado nas palavras do homicida. Deus não
permitiria que ele fosse morto, mas
manteria o castigo da expulsão e da vida errante. Caim não recebeu a pena capital,
mas uma sentença
equivalente a pena perpétua. Os juízos divinos não são apenas
retributivos, mas também são pedagógicos, pois têm o propósito de regenerar o
ofensor (Hb 12.6,11).
Lameque e o aumento da criminalidade
Na continuidade do capítulo 4 do livro
de Gênesis, o autor sagrado descreve a linhagem de Caim (Gn 4.17-22). O texto
relata que Lameque, descendente de Caim, era de temperamento violento e
comportava-se de modo vingativo e
desequilibrado. Lameque requereu uma vida por uma ferida que lhe fizeram e
outra por uma pisadura que sofrera. Ele tirou a vida de um homem e de um menino
por motivo torpe e totalmente fútil. Em termos jurídicos, de nosso ordenamento
jurídico atual, seu crime é tipificado como homicídio duplamente qualificado
(Art. 121, §2º, CP). A narrativa bíblica também evidencia a insensibilidade de
Lameque, sua falta de arrependimento,
arrogância e jactância. Ele se gaba de seus atos criminosos para as suas
mulheres (Gn 4.23,24). Diante desse terrível discurso, percebe-se que após a
queda e o consequente primeiro homicídio, o ódio e a vingança tomaram
proporções assustadoras (Caim é vingado sete vezes, Lameque setenta vezes sete).
Após a narrativa desses fatos seguida
pela genealogia de Sete (Gn 5.1-32), as Escrituras registram no capítulo 6 do
Gênesis a decadência e a depravação da espécie humana: “viu o Senhor que a
maldade do homem se multiplicara sobre a terra e que toda imaginação dos
pensamentos de seu coração era só má continuamente” (Gn 6.5). O registro
bíblico relata a multiplicação da violência, a prática da injustiça, o domínio
da vingança, a deterioração da sociedade e o consequente aumento da
criminalidade. Ao ver a conduta humana corrompida (Gn 6.12), Deus se arrepende
de ter criado o homem e decide enviar o dilúvio como castigo à humanidade (Gn
6.13,17). Ao salvar Noé e sua família (Gn 6.8-10;16) Deus estabelece uma nova
dispensação para com a geração pós-diluviana:
Dentro
deste contexto, a necessidade de equilíbrio é declarada por Deus por meio do “olho por olho e dente por
dente”, a saber, uma proporcionalidade entre o mal causado e a resposta a este
mal. Assim, a Lei de Talião é dada para regular as relações sociais
desequilibradas em diversos âmbitos, tais como crimes e acidentes contra a
pessoa, a comunidade ou mesmo a propriedade. Caso não houvesse lei reguladora,
estes processos acabariam em ciclos criminosos de vingança e opressão dos socialmente mais fracos, com
respostas desproporcionais e injustas. (MEISTER, 2007, p. 61)
Na tentativa de coibir o desenfreado
crescimento da criminalidade e do desproporcional comportamento vingativo, a
lei retributiva se apresenta para estabelecer limites e fixar normas a serem
adotadas como um princípio regulador para a sociedade. Desse modo, a pena
proporcional ao crime será estabelecida a fim de corrigir a postura de vingança
violenta inaugurada por Lameque e inserida na cultura daquela época. Como
poderemos perceber nos pontos subsequentes, a lei retributiva será exposta e
claramente introduzida por Deus, registrada no Pentateuco, por meio dos pactos
estabelecidos com o patriarca Noé e o legislador Moisés.
O pacto noético e a lei mosaica
1. No
pacto com Noé (após o dilúvio), a pena de morte aparece como punição
retribuitiva (Gn 9.6). Na Lei de Moisés (após a saída do Egito), o mesmo
conceito é mantido (Êx 21.23-25). Esse modelo de punição também é conhecido
como “lei de talião”. A expressão vem do latim Lex Talionis (lex = “lei”
e talis = “tal, de tal tipo”), e
consiste na justa reciprocidade do crime e da pena. O Código de Hamurabi
(1750-1730 a.C.), que trata
sobre delitos e penas, traz um conceito
similar ao pacto noético e à lei mosaica.
2. Convém
salientar que a lei retributiva não se referia unicamente à pena capital. A
essência da lei está na “retribuição” proporcional ao dano causado. Na lei
mosaica, as punições com a pena capital eram executadas por meio do
apedrejamento, da espada e por meio da fogueira. Eram condenados à morte por apedrejamento os culpados dos seguintes
delitos: infanticídio (Lv 20.2-5), adivinhação (Lv 20.27), blasfêmia (Lv 24.15,16), profanação do sábado (Êx 31.14;
35.2), falsa profecia (Dt 13.1-10), a falsa adoração (Dt 17.2-7), filho
incorrigível (Dt 21.18-21) e o
adultério (Dt 22.22-24). Eram punidos à espada
os apóstatas (Êx 32.27), os assassinos (Nm 35.19-21) e os idólatras (Dt 13.13-15).
3. Era
queimado na fogueira quem praticasse o coito com a esposa e a sogra (Lv 20.14)
e também a filha de sacerdote que praticasse a prostituição (Lv 21.9). Outras
punições fora da pena capital também eram executadas: a mutilação (Êx 21.24,25;
Dt 25.12), açoites (Dt 22.18; 25.1- 3), multas (Êx 22.1-4; Dt 22.18,19), prisão
(Jr 37.15,16), escravidão (Êx 21.2; 2 Rs 4.1), além de outros métodos
punitivos. Apesar de prevista, a pena capital não era aplicada de modo
generalizado. No crime de assassinato, a pena era aplicada apenas no caso de
homicídio premeditado (Êx 21.12). Se o homicídio cometido fosse considerado um
acidente ou em defesa pessoal, o homicida involuntário poderia escapar da pena
escondendo-se em uma das cidades de refúgio (Êx 21.12,13; Nm 35.22- 25). Era
uma espécie de condenação perpétua; o culpado deveria permanecer na cidade de
refúgio até a morte do sumo sacerdote (Nm 35.25).
4. Quanto
à discutida contradição entre o sexto mandamento e a pena capital, a explicação
pode ser encontrada no significado do verbo hebraico. A prescrição do Decálogo
usa o verbo rãtsah na expressão “Não
Matarás” (Êx 20.13),
o que significa
literalmente “não
assassinarás”, isto é, a proibição do homicídio doloso ou qualificado. Então,
ao cidadão era proibido tirar a vida de outro, e, quando alguém o fazia, a lei
exigia que o Estado fizesse justiça. Para o devido processo legal, ao menos
duas testemunhas eram requeridas (Dt 17.6). Assim, a morte do homicida com
autorização legal era vista como justiça contra a impunidade, e não como uma
mera vingança.
A pena capital e o perdão divino
1.
Não
obstante a severidade dessas punições, havia exceções na aplicação da lei, e
até nos casos em que o crime tinha sido premeditado. Quando Davi adulterou e
engravidou Bate-Seba, por exemplo, o rei deliberadamente planejou a morte de
Urias com a finalidade de ocultar o seu pecado (2 Sm 11.3,4,15). Nesse
episódio, Davi cometeu dois crimes dignos de morte: o adultério, cuja pena
capital deveria ser executada com apedrejamento, e o assassinato, cuja punição
requeria a pena de morte pela espada.
2.
No
entanto, Deus não permitiu que a pena fosse aplicada ao monarca: “Então, disse
Davi a Natã: Pequei contra o Senhor. E disse Natã a Davi: Também o Senhor
traspassou [perdoou] o teu pecado; não morrerás” (2 Sm 12.13). Nesse caso, Deus
tratou pessoalmente do pecado do Rei com uma dolorosa sentença: a espada nunca
se afastaria de sua família (2 Sm 12.10), as mulheres da família de Davi seriam
violadas (2 Sm 12.11), as desgraças da família real seriam do conhecimento de
todos (2 Sm 12.12) e, por fim, o menino nascido do caso de adultério iria
morrer (2 Sm 12.14). A essência da lei retributiva estava presente na sentença,
mas a pena capital não foi aplicada ao transgressor. O perdão e os propósitos
divinos prevaleceram sobre a lei.
2. No Novo Testamento
No
célebre ensino de Cristo conhecido como “Sermão da Monte”, registrado no
Evangelho de Mateus, aparentemente a aplicação da pena capital foi encerrada ou
recebeu nova interpretação nas repetidas declarações de Jesus: “Ouvistes o que
foi dito [...] eu, porém, vos digo [...]”. Jesus usou essa expressão seis vezes
no sermão (Mt 5.21,22,27,28,32,38,39,43,44). Nos dois primeiros casos listados
por Jesus, a lei exigia que fosse aplicada a pena capital ao transgressor.
O Sermão do Monte e o Assassinato
No primeiro enunciado (Mt 5.21,22,25),
Cristo referiu-se ao 6º mandamento preconizado no Decálogo: “Não matarás!” (Êx
20.13), cuja infração era punida severamente com a pena de morte por meio da
espada. É inegável que Jesus amplia a interpretação vigente ao colocar o crime
de assassinato no mesmo patamar do rancor e do ódio praticado contra o próximo.
Uma parcela dos intérpretes dos Evangelhos afirma que Cristo considera a
prática da ira e da vingança como pecado tão grave quanto o assassinato: “Não
te vingarás, nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu
próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor” (Lv 19.18). Nota-se ainda que Jesus
menciona dois tribunais de julgamento — “réu de juízo” e “réu do Sinédrio” —, e
formaliza dois tipos de punição — “fogo do inferno” e “aprisionamento” (Mt
5.22,25). Alguns eruditos enxergam aqui a abolição da pena capital; outros
intérpretes, porém, advertem que Cristo apenas acrescentou a pena de prisão em
caso de calúnia e difamação. Apesar da controvérsia, está presente no ensino de
Jesus a essência do cristianismo: amor, perdão e conciliação em lugar de ódio,
rancor e desejo de vingança.
O Sermão do Monte e o Adultério
No segundo enunciado (Mt 5.27-30),
Cristo referiu-se ao 7º mandamento preconizado no Decálogo: “Não adulterarás”
(Êx 20.14). Essa infração também era severamente punida com a pena de morte,
sendo o apedrejamento o método
utilizado.
Neste caso da instrução acerca da
imoralidade, Cristo corrige o falso ensino
de que o adultério é caracterizado somente por meio da conjunção carnal. Jesus
ensina que inclusive o olhar lascivo é uma forma de adultério. Para os padrões
morais do Messias, o pecado não está apenas no “ato”, mas também na “intenção”.
A interpretação dada por Jesus demonstra que ambas as condutas — adultério e
cobiça — são desaprovadas por Deus: “Não cobiçarás a casa do teu próximo; não
cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu
boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma do teu próximo” (Êx 20.17). Na
sequência do sermão, Cristo advertiu que era melhor arrancar um olho e perder
uma das mãos, e assim entrar no céu (caolho e aleijado) do que ter todos os
membros do corpo lançados no inferno (Mt 5.29,30). Essa passagem é carregada de simbolismos:
Jesus
não está ensinando uma doutrina masoquista de automutilação com objetivos
espirituais, e tampouco está sugerindo que o caminho para resolver o problema
dos maus desejos é infligir cirurgia física radical. A figura de linguagem de
Cristo enfatiza a importância crucial de tomarmos quaisquer medidas que forem
necessárias a fim de controlarmos nossas paixões naturais, que tendem a
explodir se não houver governo. (MOUNCE, 1996, p. 57)
Percebe-se na leitura do ensino de
Cristo que o pecado da imoralidade é ampliado e assim a interpretação da lei
toma uma nova e maior dimensão. E como prevenção contra esse pecado o sermão
nos indica o caminho da “mortificação” da carne. Paulo utiliza esse ensino de
Cristo quando escreve suas epístolas orientando os cristãos a mortificarem os
desejos da carne (Rm 8.13; Gl 2.20; Cl 3.5). Também fica evidente no texto a
inexistência da pena capital para o adultério. A única referência de condenação
é a repetição, por duas vezes, da
sentença que o corpo do adúltero (a) será “lançado no inferno” (Mt 5.29,30).
Não obstante, na opinião de alguns intérpretes, não é possível afirmar, baseado
neste texto, que Cristo tenha revogado a pena de morte. Contudo, o claro ensino
de Jesus é o de “mortificar” os desejos, e assim evitar o inferno.
A pena capital nos escritos paulinos
Em Romanos 13.3-6, o apóstolo Paulo
constata a legalidade da pena de morte e a legitimidade do Estado em usar a
espada como punição ao transgressor. O texto paulino evidencia a autoridade do
Estado pelas seguintes razões listadas
nos versículos: “serva de Deus para teu bem”, “agente vingador para castigar o
que faz o mal” e “estão a serviço de Deus”. Todas essas expressões indicam que
o Estado tem o dever divino de punir os malfeitores, mas “o apóstolo nada diz
quanto ao tipo de sanção e de penalidades que o Estado possa empregar” (STOTT,
2000, p. 417). A controvérsia em relação ao possível apoio do apóstolo à pena
capital está presente na frase: “Mas, se fizeres o mal, teme, pois não traz
debalde a espada” (Rm 13.4b).
O debate gira em torno do sentido que
se deve dar a palavra referente à “espada” (machaira).
O apóstolo já usara essa expressão antes com o sentido de morte: “Quem nos
separará do amor de Cristo? A tribulação, ou a
angústia, ou a perseguição, ou a fome, ou a nudez, ou o perigo, ou a
espada?” (Rm 8.35). No entanto, no texto em apreço, as palavras seguintes
parecem indicar que a expressão “espada” deve ser entendida como símbolo geral
de juízo “para castigar o que faz o mal” (Rm 13.4c). Ora nem todo mal era
castigado com a pena de morte, embora ela não esteja excluída do texto paulino.
Portanto, o apóstolo não normatiza a aplicação da pena, não ordena e nem
proíbe, apenas reconhece a existência da lei como dispositivo punitivo na
sociedade e na cultura de sua época.
De fato,
a pena capital
contém questões complexas
para que sejam aplicadas no contexto cristão,
“pois o precedente bíblico condenava à morte não só o homicida, mas também o
adúltero e o que amaldiçoasse pai ou mãe” (HOLMES, 2013, p. 114). Aqueles que
advogam o princípio bíblico para a pena capital estão dispostos em aplicá-la
para todos os casos previstos na lei mosaica? A solução não estaria na mensagem
transformadora do calvário?
O caso da mulher adúltera
O evangelista João registrou o caso de uma
mulher apanhada em adultério (Jo 8.4). João informa que era de manhã cedo e
Jesus estava ensinando no Templo (Jo 8.2). Cristo estava rodeado pelas pessoas
que o escutavam, e de modo súbito os escribas e fariseus interromperam o
discurso de Cristo com uma questão de ordem legal. Eles acusavam uma mulher de
adultério e exigiam o parecer de Jesus sobre a aplicação da pena de morte (Jo
8.5). Essas autoridades eram “adeptos fundamentalistas da lei e sua
interpretação, aplicação e preservação, eles sentiam-se ameaçados por uma nova
escola de pensamento. Assim, tentavam anular Jesus com esta situação”
(ARRINGTON, 2003, p. 540).
João registra que se tratava de uma
armadilha para apanhar Jesus em alguma contradição: “Isso diziam eles,
tentando-o, para que tivessem de que o
acusar” (Jo 8.6). O que pretendiam os opositores? Acusar Jesus de violar a lei?
Torná-lo impopular com o apedrejamento de uma mulher? Parece que qualquer
alternativa é possível para essas questões. Para os escribas e fariseus, não importava qual fosse à decisão,
pensavam que só tinham a ganhar levando o problema para Jesus se posicionar.
Entretanto, os acusadores
comportaram-se de modo parcial e trouxeram somente a mulher para ser julgada,
enquanto a lei exigia a presença das testemunhas e também do adúltero (Nm
35.30; Lv 20.10). Cristo se recusou a participar desse juízo temerário e
ilegítimo. Absolveu a mulher da punição, lhe perdoou e a exortou a deixar o
pecado (Jo 8.11).
Contudo,
uma parte da erudição neotestamentária diverge da citação acima referenciada.
Consideram que o perdão de Jesus foi somente religioso e espiritual e que não
houve perdão civil ou jurídico, já que a acusação contra ela tinha desmoronado
(KAISER Jr, 2016, p. 176). Entretanto, não há
dúvidas das lições que devem ser extraídas do incidente: Cristo não foi
conivente com o pecado da mulher, mas desaprovou a violência e usou de
misericórdia. Assim, apesar da pena de morte estar presente em ambos os
Testamentos, os registros bíblicos assinalam que houve espaço para perdão e absolvição:
para o rei Davi no Antigo Testamento e para a “mulher adúltera” no Novo Testamento.
II.
EUTANÁSIA: CONCEITOS E IMPLICAÇÕES
A
eutanásia é o procedimento em que de modo ativo ou passivo uma pessoa pode
antecipar ou acelerar o processo de morte. Por vezes é chamada de “morte
assistida” ou “suicídio assistido”. No Brasil, a eutanásia é ilegal e
desaprovada pelo código de medicina.
1. O Conceito de Eutanásia
Etimologicamente,
a palavra “eutanásia” tem origem em dois termos gregos: eu, com o significado de “boa” ou “fácil”, e thánatos, que significa “morte”. A junção desses dois termos
resulta na expressão “boa morte”, também conhecida como “morte misericordiosa”.
No sentido técnico, “eutanásia” significa antecipar, acelerar a morte ou tirar
a vida de pacientes em estágio terminal, que estejam padecendo de dores
intensas em consequência de alguma doença incurável. É o ato de matar o doente
para não prolongar o grave quadro de seu sofrimento e de seus familiares. As
formas usadas podem ser classificadas em
eutanásia passiva ou ativa. A primeira consiste em desligar as máquinas e
aparelhos que mantém o paciente vivo e a segunda requer a aplicação de qualquer
droga que possa acelerar o processo de morte.
A ortotanásia
Enquanto a prática da eutanásia tem
sido tema de amplo e controverso debate, a “ortotanásia” é um procedimento
comumente aceito e praticado. Embora lexicamente a ortotanásia até possa ser
considerada sinônimo de eutanásia, entre ambas há consideráveis diferenças no
campo da ética (ANDRADE, 2015, p. 81). A ortotanásia advém das expressões
gregas orthos, que significa “correta”, e thánatos, que significa “morte”. A junção desses dois termos
resulta na expressão “morte correta”, também conhecida como “morte digna”. A
ortotanásia trata os sintomas de uma doença para melhorar a qualidade da vida
em estágio terminal. Nesse caso, o tratamento é paliativo, com o propósito de
minorar a dor e deixar morrer da maneira mais confortável possível. Não se
pretende a morte do paciente; simplesmente se aceita o fato de não poder
impedi-la, isto é, permite-se que a vida do paciente cesse naturalmente.
Costuma-se diferenciar a “eutanásia” da “ortotanásia” nos seguintes termos: “A
ortotanásia seria deixar morrer, enquanto a eutanásia seria fazer morrer”.
2. As Implicações
da Eutanásia
As
consequências da prática da eutanásia são extremamente danosas e contrárias à
dignidade da vida humana. As dúvidas e as interrogações formuladas são
complexas: É legalmente autorizado fazer cessar a vida? É correto que as
pessoas, especialmente quem está em fase terminal da vida e em profundo
sofrimento, decida pelo término da sua vida? É permitido ao ser humano requerer
medidas que lhe tirem a vida? É direito de a pessoa determinar o dia de sua
morte? É moralmente certo que outras pessoas decidam pela vida do moribundo?
Qual a ética adotada quando se decide pelo prolongamento ou pela eliminação da
vida? Portanto, diante dessas e outras questões, a prática da eutanásia tem
implicações de ordem legal, moral e
ética.
Implicações legais
Nos aspectos legais, a Constituição
Brasileira assegura a “inviolabilidade do direito à vida” (Art. 5º, CAPUT) e a
“eutanásia” é tipificada como crime no Código Penal Brasileiro (CP):
Art.
122. Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o
faça: Pena – reclusão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma; ou
reclusão, de um a três anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal
de natureza grave. Parágrafo único – A pena é duplicada: I- se o crime é
praticado por motivo egoístico; II- se a vítima é menor ou tem diminuída, por
qualquer causa, a capacidade de resistência.
No entanto, tramita no Senado Federal o
Projeto de Lei no
236/12 (Novo Código Penal), em que o juiz poderá deixar de aplicar
punição para quem cometer a eutanásia, seja ela passiva, seja ativa:
Matar,
por piedade ou compaixão, paciente em estado terminal, imputável e maior, a seu
pedido, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável em razão de doença
grave: Pena – prisão, de dois a quatro anos. §1º O juiz deixará de aplicar a
pena avaliando as circunstâncias do caso, bem como a relação de parentesco ou
estreitos laços de afeição do agente com a vítima.
§2º
não há crime quando o agente deixa de fazer uso de meios artificiais para
manter a vida do paciente em caso de doença grave irreversível, e desde que
essa circunstância esteja previamente atestada por dois médicos e haja
consentimento do paciente, ou, na sua impossibilidade, de ascendente,
descendente, cônjuge, companheiro ou irmão. (NCP, 2012, Art. 122)
Se aprovado, o novo código
possibilitará ao magistrado avaliação subjetiva e pessoal acerca da prática da eutanásia ativa
(§1º) e quanto
à eutanásia passiva, o doente
terminal ficará à mercê da vontade de terceiros
(§2º). Nesses termos, a legalização da eutanásia provoca complicações de
ordem moral e ética.
Implicações morais
Nas questões de ordem moral,
deparamo-nos com a violação do sexto mandamento do Decálogo — “Não Matarás” (Êx
20.13) —, e em decorrência disso o crime de assassinato. E, ainda quando a
“eutanásia” é consentida pelo paciente, surge o problema do pecado de suicídio.
Associado a isso, questiona-se a participação do médico na condução do suicídio
assistido. Nesse caso, o paciente provoca a própria morte com ajuda do médico
que providencia os meios de fazer cessar a vida (PALLISTER, 2013, p. 144). Os
médicos não deveriam salvar vidas, em lugar de eliminar vidas? Pergunta-se
ainda: A quem mais interessa a eutanásia? Ao paciente ou ao seu plano de saúde
e à previdência social?
Enquadram-se nessa discussão as
questões de consciência e o sentimento de culpa. O homem como cidadão pode até
compreender os argumentos pró- eutanásia, porém é muito difícil aplacar a
consciência, pois ela é a primeira juíza de nossos atos. A culpa é considerada
como um arrependimento por uma atitude tomada. Isso acontece quando alguém é
obrigado pelas circunstâncias a decidir pela morte de um ente querido. Uma
parcela de pessoas fica com a consciência pesada e sofrendo remorso. O
sentimento de culpa torna a pessoa refém de sua ação contrária ao instinto
natural de velar pela inviolabilidade da vida.
Implicações éticas
As indagações éticas podem ser assim
resumidas: É lícito exterminar pessoas doentes? Descartar enfermos, inválidos e
idosos não se constitui conceito racista da eugenia? Será ético interromper o
tratamento de alguém que está sedado para não sentir dores ou induzido ao coma?
As pessoas que desejam morrer estão com a mente sã e em condições psicológicas
para essa tomada de decisão?
Existem também, as questões éticas de
erro médico. Os casos de diagnóstico errado. A pessoa descobre ser portador de
uma doença que a fará conviver com dores horríveis, perdas cognitivas, intenso
sofrimento, e, por fim, a morte. Desesperado e sem expectativas, o paciente
pede então que tirem a sua a vida ou que
o deixem morrer antes que a dor se torne insuportável. No entanto, o exame post-mortem conclui que o diagnóstico
estava errado. Como lidar com uma tragédia dessas? Acham-se igualmente
inseridos nesse contexto os casos de diagnóstico certo, mas de prognóstico
errado. Por exemplo, a equipe médica chega à conclusão de que determinada
doença levará o paciente a uma morte dolorosa. Não obstante, tempos depois, a
cura é descoberta. Matar ou deixar morrer, nesses casos, promovem implicações
éticas insolúveis.
III. A VIDA HUMANA PERTENCE A DEUS
Deus
é a causa originadora como também a causa sustentadora de toda vida que existe.
Deus é o Dono de todas as coisas, inclusive do amanhã (Mt 6.34, Tg 4.13,14).
Ele é o único ser capaz de controlar integralmente tudo que existe, o curso da
vida, cumprindo cabalmente o seu propósito e frustrando toda oposição (CRUVINEL, 2015, p. 3). Sob essa
premissa, a pena de morte e a eutanásia violam a providência e a soberania
divina. A vida foi dada por Deus e pertence a
Ele.
1. A Fonte
Originária da Vida
A
Bíblia ensina que Deus trouxe o universo à existência (Gn 1.1) e que Ele
próprio sustenta todas as coisas em existência (Hb 1.3). Deus não criou somente
a matéria, mas criou também toda a espécie de seres vivos e ainda a humanidade
(Gn 1.21-27; Cl 1.16). Os homens, como obra-prima, são uma criação especial e
distinta. Deus os criou à sua imagem e semelhança (Gn 1.27), característica não
dada a nenhuma outra criatura.
A vida humana passou a existir por
causa da vontade de Deus e também continua a existir por sua vontade, pois
“todas as coisas subsistem por Ele” (Cl 1.17). Deus está no controle soberano
de toda a vida (Dt 32.39; Lc 12.7), e toda vida tem origem nEle: “pois Ele
mesmo é quem dá a todos a vida, a respiração e todas as coisas” (At 17.25).
Portanto, o Deus vivo é a fonte originária da vida e unicamente Ele tem
autoridade para conceder ou tirar (1 Sm 2.6).
2. O Caráter Sagrado
da Vida
A
vida humana, sua sacralidade e dignidade têm sua origem e fonte em Deus. A vida
existe e subsiste por vontade e com propósitos divinos. Atentar contra a vida é
atentar contra a providência e a soberania de Deus, o autor da vida. O poder absoluto
sobre a vida e a morte pertence única e exclusivamente a Deus. A atual
ideologia que propaga o direito do homem em exterminar a própria vida ou a do
outro viola os desígnios divinos (Jo 10.10). Portanto, a vida humana é sagrada
e deve ser protegida, cuidada, preservada, respeitada e valorizada.
A sacralidade da vida
Na história das religiões, sagrado é
tudo aquilo que é objeto de uma garantia sobrenatural. O reconhecimento de que
a vida humana é sagrada respalda-se em três dimensões fundamentais: a razão da
sua origem, a razão da sua natureza e a razão do seu destino. Assim, como essas
razões são sobrenaturais, a vida é sagrada, não por motivos biológicos, mas por
Deus ser o protagonista de sua origem, de sua existência e de seu término. Em
consequência, a vida humana é inviolável em quaisquer circunstâncias, fases ou
etapas de sua existência. Por isso o sexto mandamento, “não matarás”,
possui valor absoluto.
Não se devem
permitir concessões. Quando
o mandamento é relativizado, a sacralidade da vida humana fica ameaçada.
A discussão da sacralidade da vida não
pode ser apenas jurídica, mas, sobretudo, um debate de questões éticas. Para os
preceitos da ética cristã, a vida humana é sagrada porque tem origem divina,
visto que toda vida emana de Deus. Por conseguinte, deve ser inviolável a
proibição de intencionalmente alguém tirar a vida de outro ser humano (Êx
20.13). Seja por meio da pena capital, seja por práticas abortivas ou com o uso
de qualquer droga com a intenção de
matar ou apressar a morte de alguém. A sacralidade da vida humana deve ser
protegida e preservada antes e depois do nascimento, desde o momento da
concepção até o seu último instante (Sl 116.15; 139.13-16). A vida deve ser
respeitada e valorizada como dádiva divina: “Visto como o seu divino poder nos
deu tudo o que diz respeito à vida” (2 Pe 1.3a).
A dignidade da vida
Ao publicar sua obra A Metafísica da Moral (1797), o filósofo
alemão Immanuel Kant, inaugurou o conceito de “imperativo categórico”. Em sua
concepção, Kant ensinou que nas relações éticas o dever moral é “imperativo” e, por atingir a todos, sem
exceção, também é “categórico”. Em outras palavras, o filósofo queria dizer que
“a moral deve ser igual para todos, o tempo todo, e em todos os lugares”. Ele
se posicionava contra o “relativismo moral” e contra a doutrina do
utilitarismo, ou seja, a de que “os fins justificam os meios”. Para Kant, a
ética deve ser fundamentada em princípios universais, e não em regras
circunstanciais. Desse modo, quando aplicamos o conceito do “imperativo
categórico” em relação à vida, a inviolabilidade recebe valor absoluto, ou
seja, um respeito incondicional à dignidade humana é o reconhecimento do
sagrado da vida, e não a sua banalização:
No
Brasil, hoje vivemos uma situação paradoxal. Há proteção legal da vida de
plantas e animais. O mesmo não ocorre com a vida humana. As plantas e os
animais usufruem da proteção de ONGs, do público e da autoridade em geral,
quando em propriedade particular. Em lugares públicos, a atitude muda, pois aí
ninguém se sente responsável. Quando o vizinho derruba uma árvore em seu pátio,
porque ameaça cair sobre sua residência, outros logo se encarregam de avisar as
autoridades sob o pretexto de defender o meio ambiente. Onde fica a eminente
dignidade humana? O homem foi reduzido a simples objeto? Deve o homem fazer
tudo que sabe, sem prever as consequências? O homem é meio ou fim em si mesmo?
(ZILLES, 2007, p. 344)
O autor da citação acima questiona a
existência de espaço para a sacralidade e a dignidade da vida humana na
sociedade hodierna. Reclama que, por parte de alguns setores, a vida das
plantas e dos animais recebe maior
atenção que a própria vida do ser humano. Isso nos remete ao problema da vulgarização da vida. Em nome do
pseudodireito de morrer e também do suposto direito legal de matar, como nos
casos do suicídio, aborto, pena de morte
e eutanásia, a sacralidade e a dignidade humana são desrespeitadas e
tornaram-se corriqueiras.
Entretanto, essa não deve ser a postura
cristã. Se a vida é sagrada por ocasião da concepção, deve permanecer sagrada
durante todo o seu percurso, e não poderá deixar de ser sagrada em seu
derradeiro dia. No caso de alguma enfermidade, o paciente tem o direito de
receber tratamento adequado tanto na busca da cura como no alívio de suas
dores. Procedimentos dolorosos e ineficazes podem ser evitados a fim de
resguardar a dignidade humana, porém, exterminar a vida é uma afronta ao
Príncipe da Vida (At 3.15).
Buscar a morte como alívio para o
sofrimento é decisão condenada nas Escrituras. Jó, por exemplo, embora sofrendo
dores terríveis, reconheceu o caráter sagrado da vida e com dignidade não
aceitou a sugestão de sua esposa em amaldiçoar a Deus e morrer (Jó 2.9). Por
fim, o patriarca enalteceu a providência e a soberania divina sobre a
existência humana: “Bem sei eu que tudo podes, e nenhum dos teus pensamentos
pode ser impedido” (Jó 42.2). Quanto à pena capital, vale a pena ratificar a
seguinte assertiva do apologista assembleiano: “é como a bomba atômica: existe,
mas não é para ser usada. Ela não vai resolver, como nunca resolveu, o problema
da violência e da criminalidade” (SOARES, 2014, p. 97).
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