Extraído do livro: A supremacia
de Cristo , Fé, esperança e ânimo na carta aos Hebreus.
José Gonçalves.
Comentário de Hebreus 5.1-14
No
capítulo 4.14-16, o autor introduziu o assunto da doutrina do sacerdócio. Aqui,
ele tecerá mais detalhes da ordem sacerdotal levítica para contrastar
posteriormente com o sacerdócio de Cristo, que
é de outra ordem e superior ao levítico. A ideia do autor ao detalhar as
qualificações exigidas do Sacerdócio Aarônico tem o propósito de mostrar, em
primeiro lugar, que Jesus preenchera esses qualitativos. É bom ter sempre em
mente que o autor já havia mostrado Jesus como sendo o Filho de Deus, fato esse
que o identifica com a raça humana e o qualificaria para ministrar como Sumo
Sacerdote.
"Porque todo sumo sacerdote, tomado dentre os homens,
é constituído (do a favor dos homens nas coisas concernentes a Deus, para que
ofereça dons e sacrifícios pelos pecados" (v. 1). O autor de
Hebreus revela que a primeira condição para alguém exercer o sacerdócio é que
esse alguém tenha sido tomado dentre os homens. Somente um homem que
possui a mesma natureza de outro homem poderia oficiar como sacerdote. Nos
primeiros capítulos de sua carta, o autor expusera uma farta argumentação em
favor da humanidade de Jesus. Esses fatos agora se tomam de grande relevância
quando ele apresenta-o como um Sumo Sacerdote constituído em favor dos homens.
O sacerdote tinha como dever apresentar dons e sacrifícios. Alguns
comentaristas, como, por exemplo, Robert Gundry (nascido em 1932), entendem que
a expressão "dons e sacrifícios" é usada como sinônimo.• Por outro
lado, muitos outros eruditos, como Donald Guthrie (1916-1992), entendem que os
sentidos desses termos devem ser mantidos distintos. Guthrie observa, por
exemplo, que, nesse caso, os dons (dôra) são uma referência às ofertas
de cereais, e os sacrifícios (thysias) às ofertas de sangue.2 Isso parece
ser confirmado pelo uso do verbo grego prosphero (oferecer), que ocorre
19 vezes nessa carta e que mantém esse sentido de apresentar ofertas e
sacrifícios diante de Deus. O sacerdote, portanto, deveria ser alguém que se
identificasse com seus semelhantes.
"E possa
compadecer-se temamente dos ignorantes e errados, pois
também ele mesmo está rodeado de fraqueza" (v. 2). O termo
grego metriopathein, traduzido
como "compadecer", tem o sentido de alguém que consegue moderar suas
paixões e sentimentos. Alexander Balmain Bruce (1831-1899) destaca que esse vocábulo
"Significa
sentir-se com outro, mas sem abster-se de sentir
contra ele; ser
capaz de ter antipatia. Foi usado por Philo para descrever o sofrimento sóbrio
de Abraão sobre a perda de Sara e a paciência de Jacó sob aflição. Aqui, parece
ser empregado para denotar um estado de sentimento em relação ao ignorante e
errado, com equilíbrio entre a severidade e indulgência excessiva".
O sacerdote lidava
com todos os tipos de desvios, erros e pecados cometidos pelo povo. Nessa teia de
relacionamentos, ele via a fragilidade humana, o fracasso e o desespero. Sendo
um homem colocado por Deus para representar os homens, o sacerdote sentia na
sua própria alma o peso da miséria humana. Por outro lado, ele tinha diante de
si a palavra de Deus, que o instruía a dar ao pecado o tratamento adequado,
mesmo que o remédio fosse amargo. Era nesse momento que ele precisava agir com metripatheia,
isto é, com compaixão!
"E, por esta causa, deve ele, tanto pelo povo como
também por si mesmo, fazer oferta pelos pecados" (v. 3). O sacerdote
da antiga aliança vivia um dilema: ele necessitava fazer expiação não apenas
pelos erros dos outros, mas também pelos seus. O sumo sacerdote deveria
oferecer sacrifício primeiramente por si e, depois, pelo povo. "Depois,
Arão oferecerá o novilho da oferta pela expiação, que será para ele; e fará
expiação por si e pela sua casa" (Lv 16.6). Samuel Pérez Millos destaca
que, na cerimônia da expiação dos sacerdotes e do povo, observam-se dois
aspectos: primeiramente, o sacerdote, por uma questão do direito divino natural
que lhe competia, deveria purificar-se de toda imundície pessoal, uma vez que isso
tomava a oferta imunda e impossibilitava-o de ministrar diante de Deus. Por
outro lado, o direito positivo prescrevia-lhe essa obrigação (Lv 4.3; 9,7; Hb
7.27; 9.7). Essa limitação, observa Millos, não é vista em Jesus Cristo, o
Eterno Sumo Sacerdote, que não teve necessidade de purificar-se, visto ser
imaculado e santo.4 "E ninguém
toma para si essa honra, senão o que é chamado por Deus, como Arão" (v. 4). O autor usa
a palavra grega timê, traduzida aqui como honra, para destacar a
natureza do sacerdócio. O sacerdote era
alguém chamado por Deus, e não pelos homens. Nos dias do Novo Testamento, o
sistema sacerdotal corrompeu-se e tomou-se um cargo político, não mais sendo
observadas as prescrições divinas para o exercício desse ofício ( x 28.1; Lv
8.1; Nm 16.5; Sl 105.26). Todavia, como observa Craig S. Keener (nascido em
1960), o texto sugere que o autor refere-se ao sistema sacerdotal
veterotestamentário, onde as exigências da Lei acerca do sacerdócio eram
cumpridas, para contrastar com o sacerdócio de Jesus Cristo.
"Assim, também Cristo não se glorificou a si mesmo,
para se fazer sumo sacerdote, mas glorificou aquele que lhe disse: Tu és meu
Filho, hoje te gerei" (v. S). O autor mostra que Jesus cumpriu completamente
todas as prescrições exigidas para o exercício do sacerdócio. Ele não se autoglorificou, constituindo-se a si mesmo como sacerdote. O léxico grego de Walter Bauer expressa bem o sentido do texto: "Ele não se elevou à glória do sumo sacerdócio". No versículo 4, o autor fala da honra que Arão teve ao ser escolhido como sumo sacerdote; todavia, quando ele fala do sacerdócio de Jesus, mostra que o sacerdócio era algo inseparável de sua natureza. Deus dá testemunho de Jesus dizendo: "Tu és meu Fílho". Essa atribuição foi-lhe dada por Deus. Embora o autor não entre em de talhes sobre o momento no qual Jesus teria sido constituído sacerdote, os comentaristas destacam que a cristologia de Hebreus revela que Jesus é o Filho de Deus desde a eternidade (Hb
1.1,2; 5.8) e que foi vocacionado pelo Pai para ser Sumo Sacerdote. Nesse aspecto, a vocação aconteceu antes da encarnação, entrando, contudo, em vigor na paixão e morte, obtendo
sua confirmação na ressurreição e ascensão.9
"Como também diz noutro lugar: Tu és sacerdote eternamente,
segundo a ordem de Melquisedeque" (v. 6). É no capítulo 7 que a relação entre o sacerdócio
de Jesus e Me]quisedeque será explorada com maior profundidade pelo autor.10 Aqui, o
comentarista bíblico Henry Orton Wiley mostra o que a analogia do sacerdócio de
Melquisedeque revela em relação ao de Cristo.
1. Melquisedeque era
sacerdote por seu próprio direito, e não em virtude de sua relação com os outros;
2. Era sacerdote para
sempre, sem substitutos, sem sucessor;
3. Ele não foi
ungido com óleo, mas com o Espírito
Santo, como sacerdote do Altíssimo;
4. Não ofereceu
sacrifícios de animais, mas pão e vinho,
símbolos da Ceia, que, depois, Cristo
instituiu;
5. E (talvez o
principal pensamento na mente do escritor da Epístola) ele uniu as funções
sacerdotais e reais, coisa estritamente proibida em Israel, mas a ser manifesta em Cristo, Sacerdote no seu trono
(Zc 6.13).11
"O qual, nos dias da sua carne, oferecendo, com
grande clamor e lágrimas, orações e súplicas ao que o podia livrar
da morte, foi ouvido quanto ao que temia" (v. 7). A intercessão,
característica de todo sumo sacerdote legitimamente constituído por Deus, é aplicada a Jesus de
uma forma vívida e dramática pelo autor. A expressão "nos dias de sua carne" é uma referência à vida humana de
Jesus. A humanidade de Jesus é sempre lembrada
pelo autor de Hebreus como algo imprescindível para o exercício do sacerdócio.
A expressão "grande clamor e lágrimas, orações e súplicas" não é encontrada nos
evangelhos, mas aproxima-se dos acontecimentos que narram a agonia de Jesus no
Getsêmani.
"E, levando consigo Pedro e os dois filhos de
Zebedeu, começou a entristecer-se e a angustiar-se muito. Então, lhes disse: A
minha alma está cheia de tristeza até à morte; ficai aqui e vigiai comigo. E, indo um pouco adiante,
prostrou-se sobre o seu rosto, orando e dizendo: Meu Pai, se é possível,
passa de mim este cálice; todavia, não seja como eu quero, mas como tu
queres" (Mt 26.37-39).
A
tradução "tendo sido ouvido por causa da sua piedade" (ARA) é
preferível a "foi ouvido quanto ao que temia" (ARC), já que o termo grego eulabeia
mantém o sentido no Novo Testamento de "temor de Deus" e
"reverência",
destacando o aspecto da vida piedosa.12 Em que sentido Jesus teria sido ouvido? Ao longo da
história da interpretação, pelo menos três formas de entendimentos desse texto
têm-se destacado. Uma interpretação é que Jesus teria sido ouvido com base na
sua piedade. Nesse aspecto, Jesus orou ao Pai para que este o livrasse da
morte; todavia, orou também para que a vontade do Pai prevalecesse. Essa era a
opinião de João Crisóstomo, de vários escritores medievais e dos comentaristas
protestantes James Moffat, Franz Delitzsch e Wescott. Esses autores observam
que a oração de Jesus foi ouvida por ter sido feita com temor reverente, e,
assim, a vontade do Pai efetivou-se. Uma segunda interpretação é que Jesus teria
orado para livrar-se do medo da morte. Essa interpretação foi seguida por João
Calvino, Teodoro de Beza, Hugo Grócio, Johann Albrecht Bengel, Milligan e Mi
chel. Trata-se de uma interpretação inusitada, mas não parece natural e nem de
acordo com o contexto desse capítulo. Uma terceira interpretação entende que
Jesus foi ouvido e foi libertado da morte através da ressurreição." Esse
entendimento segue a antiga tradução dada pela Peshitta, que data do
segundo século. A tradução da Peshitta diz: "E quando este estava
vestido de carne, ofereceu petição e súplica com intenso clamor e lágrimas
àquEle que podia ressuscitá-lo da morte, e foi ouvido". 14 Em uma nota
de rodapé da versão em espanhol da Peshitta, está a explicação:
"Essa expressão é fiel ao cumprimento de que o Pai não o abandonaria no
Seol, aparte de que o Senhor sabia de antemão que havia vindo para morrer na
cruz. O texto grego diz livrá-lo da morte". O erudito W. F.
Mouton, um dos defensores dessa interpretação, destaca: "Estamos
convencidos de que a oração não foi para que a morte fosse evitada, mas que
houvesse segurança de libertação da mesma".16 F. F. Bruce argumenta que o contexto
de Hebreus 5, que é Salmos 22, favorece esse entendimento.
"Mas enquanto o Getsêmani provê a 'ilustração mais
vívida' das palavras de nosso autor, elas têm uma referência mais geral ao
curso da humilhação e paixão de nosso Senhor. Mais ainda: Foram influenciadas pela
linguagem do Salmo 22, um salmo cuja frequência como testemunium cristão já temos assinalado. 'Grande
clamor e lágrimas' é a súplica e queixa
da primeira parte do salmo , enquanto a afirmação de que Cristo foi 'ouvido por
causa de seu temor reverente' faz eco do Salmo 22.24: 'Quando ele clamou, o ouviu'.
Na interpretação cristológica desse salmo, essas palavras entendem-se como uma
referência a ressurreição de Cristo".
"Ainda que era Filho, aprendeu a obediência, por
aquilo que padeceu" (v. 8). Sendo o verbo de Deus encarnado, Jesus viveu nas
mesmas condições nas quais viveram os demais homens, exceto o pecado. Na sua
humanidade, Ele também precisou exercitar a vida de obediência. O sentido dado
pela tradução americana New English Bible (NEB) é que Jesus
aprendeu na escola do sofrimento.
"E, sendo ele consumado, veio a ser a causa de eterna
salvação para todos os que lhe obedecem" (v. 9). A expressão "sendo
ele consumado" é traduzido na
Almeida Revista e Atualizada como "tendo sido aperfeiçoa do". Esse
vocábulo é o particípio aoristo passivo de teleioô, significando: executar
plenamente, consumar, acabar, a perfeiçoar. 18 Adam Clarke traduz como "havendo terminado
tudo", significando "havendo morto e ressuscitado".19 O texto,
portanto, não está sendo usado no sentido de que Jesus era imperfeito e
precisava aperfeiçoar-se, mas, sim, no sentido de completude, isto é, que Ele
completou a obra da Salvação. Em seu antigo comentário à carta aos Hebreus,
Teodoreto de Cirro (393-457 d.C) destacou este sentido: "Com a expressão 'chegou
à perfeição' refere-se à ressurreição e à imortalidade, que
são o cumprimento da economia da salvação".20 O texto mostra que o plano da
Salvação é para todos os homens (Jo 1.29; 3.16; 2 Pe 3.9; 1 Jo 2.2), mas ela só se
efetiva naqueles que a recebem. Somente aqueles que recebem a Cristo e obedecem
a Ele serão salvos. O autor conclui seu raciocínio dizendo que, tendo terminado
o sacrifício do Calvário, Deus proclamou a Jesus Cristo, na sua ressurreição,
Sumo Sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedeque.
"Chamado por Deus sumo sacerdote, segundo a ordem de
Melquisedeque" (v. 10). Ele voltará a tratar esse assunto com
profundidade no capítulo 7; todavia, aqui, o autor introduz um parêntese exortativo,
como ele já fizera em outros lugares.
"Do qual muito temos que dizer, de difícil
interpretação, porquanto vos fizestes negligentes para ouvir" (v. 11). A doutrina
do sacerdócio de Cristo é de suma importância para a vida cristã; o autor,
todavia, observou que seus leitores davam sinais de arrefecimento na fé. Eles
negligenciaram o aprendizado, sendo tardios para ouvir, e, como consequência,
não estavam crescendo em maturidade espiritual. O autor tem consciência de que,
quando voltar a tratar do assunto do sacerdócio de Cristo (no capítulo 7), seus
leitores terão dificuldades de assimilar o seu ensino. O perfeito do indicativo
ativo do verbo grego ginomai mostra que seus leitores nem sempre foram
assim. Era hora de acordá-los novamente!
"Porque, devendo já ser mestres pelo tempo, ainda
necessitais de que se vos tome a ensinar quais sejam os primeiros rudimentos
das palavras de Deus; e vos haveis feito tais que necessitais de leite e não de
sólido mantimento" (v. 12).
A censura do autor
é forte: eles deveriam ser mestres; no entanto, ainda se encontravam no jardim
de infância da fé. Eles estavam atrasados na escola da fé e necessitavam
refazer novamente as lições que já deveriam ter aprendido. O crescimento
espiritual tem sua analogia no crescimento natural. A criança ainda não tem
seus órgãos plenamente desenvolvidos; por isso, ela deve sofrer restrições
quanto a determinados tipos de alimentos. Ela necessita de leite, que é
necessário e adequado para esse estágio da vida. Para um adulto, porém, somente
esse tipo de alimento não é suficiente. Os hebreus ainda estavam bebendo leite!
"Porque qualquer que ainda se alimenta de leite não
está experimentado na palavra da justiça, porque é menino" (v. 13). A criança
alimenta-se de leite, e o adulto de comida sólida. O autor sabe que a doutrina
do sacerdócio exige uma maior dificuldade de compreensão - ela é para os que já
são graduados.
"Mas o mantimento sólido é para os perfeitos,
os quais, em razão do costume, têm os sentidos exercitados para discernir tanto
o bem como o mal" (v. 14). Os cristãos maduros, que cresceram na fé, são aqueles aos quais o autor tem como "adequadamente
treinados".