RETIRADO DO LIVRO: A supremacia de Cristo.
No
capítulo 1, o autor mostrou a superioridade de Jesus em relação aos anjos.
Neste capítulo, o autor demonstrará as implicações práticas daquilo que ele
afirmara. Os intérpretes destacam que a superioridade de Jesus em relação aos
anjos acontece em três aspectos:
1.
Nenhum dos anjos podia trazer a nova relação entre irmãos,
2.
Nenhum dos anjos podia livrar os homens do temor da morte (Hb 2.14-16);
3.
Nenhum dos anjos podia realizar a obra da expiação pelos pecados (Hb 2.17-18).
"Portanto,
convém-nos atentar, com mais diligência, para as coisas que já temos ouvido,
para que, em tempo algum, nos desviemos delas" (v. 1). Aqui, o
"portanto" (gr. dia touto) tem o sentido de "acordo com o que
acabei de mostrar". Nesse contexto, "portanto" é usado em
referência à superioridade de Jesus sobre os anjos. Uma verdade de tão grande
magnitude deveria ter recebido uma maior atenção por parte dos leitores. Eles
deveriam ter atendido as verdades ensinadas com maior diligência. O termo grego
prosechein, traduzido aqui como "atentar", tem o sentido de
"prestar atenção a, atender, dar ouvidos" .1 O termo é usado no
sentido de dar uma resposta positiva ou negativa a uma mensagem recebida. É
usado em Atos 8.6 para afirmar que as pessoas "atendiam" unânimes as
palavras pregadas por Filipe. Por outro lado, em Tito 1.13,14, é usado para
exortar os crentes a "não dar ouvidos" às fábulas judaicas. Em ambos
os casos, a participação do ouvinte é requerida. Pedro afirma que seus leitores
faziam bem em "atenderem" a palavra profética (2 Pe 1.19). Esse mesmo
termo é usado por Lucas para narrar a conversão de Lídia (At 16.14).
"Certa mulher, chamada Lídia, da cidade de Tiatira, vendedora de púrpura,
temente a Deus, nos escutava; o Senhor lhe abriu o coração para atender às
coisas que Paulo dizia" (At 16.14 - ARA). Enquanto Paulo falava acerca do
Reino de Deus, Lídia escutava a Palavra de Deus, e o Senhor abriu-lhe o co¬
ração para atentar (prosechein) àquilo que o apóstolo dizia.
As
Escrituras exortam o cristão a ser vigilante e batalhar pela fé que uma vez lhe
foi dada (Jd 3). O autor não queria que os crentes aos quais ele escrevia
ficassem desviados da fé. A palavra "desviar" (gr. pararreô) era
usada em referência a um rio que corria fora do seu leito. Podia ser usada
também em referência a uma pessoa que perdia a memória ou, então, a um navio
que estava à deriva.3 Franz Delitzsch (1813-1890) destaca que está presente o
sentido de obter ou encontrar a si mesmo em um estado de fluxo ou de passagem,
isto é, em referência a um objeto que requer muita atenção; perder a posse de
qualquer coisa por não conseguir segurar.4 Essas observações fazem-nos ver que
a apostasia - um ensino que o autor de Hebreus voltará a falar mais adiante - é
uma realidade possível e real. Se decair da fé ou se desviar não fosse uma
possibilidade, essas exortações perderiam o sentido.
"Porque,
se a palavra falada pelos anjos permaneceu firme, e toda transgressão e
desobediência recebeu a justa retribuição" (v. 2). Como já havia
assinalado no versículo anterior, o autor refere-se, aqui, à Lei mosaica
entregue no Sinai. George Wesley Buchanan destaca que havia uma tradição
judaica antiga na qual se afirmava que a Lei fora entregue pelos anjos (Ant.
XV. 136; Gl 3.19; Atos 7.53; Targ. Dt 33.2 ).5 Por haver sido mediada por
anjos, a Lei era vista e observada meticulosamente pelos judeus. A conclusão a
que o autor quer chegar é simples: ora, se a Lei, que fora entregue por anjos,
merecia tanta atenção, então não merecia atenção maior ainda a palavra de Deus,
que fora entregue por seu próprio Filho, o qual é infinitamente superior aos
anjos? Se a palavra entregue por anjos provocou punição para quem a
transgrediu, o que poderá acontecer com quem quebra a palavra falada pelo
Filho? "Como escaparemos nós, se não atentarmos para uma tão grande
salvação, a qual, começando a ser anunciada pelo Senhor, foi-nos, depois,
confirmada pelos que a ouviram" (v. 3). Valendo-se de uma pergunta
retórica, o autor indaga a seus leitores se haveria alguma chance de escape
para quem fosse negligente e não atentasse para essa tão grande salvação. A
resposta, evidentemente, é que não haveria chance nenhuma. A palavra grega
amelesantes, traduzida como "atentar", "negligenciar", é um
particípio que ocorre quatro vezes no Novo Testamento grego (Mt 22.5; 1 Tm
4.14; Hb 2.3; 8.9). Em Mateus, é usado no sentido de "não dar
atenção"; em 1 Tm 4.14, é usado para exortar Timóteo a não
"negligenciar" o dom de Deus; em Hebreus 8.9, é usado para dizer que
Deus não "atentou" para os desobedientes.6 A salvação do cristão está
condicionada à sua permanência em Cristo. Alguns creem que a salvação é dada
por decreto. Nesse sentido, as pessoas eleitas serão salvas sem importar muito
o que fazem ou deixam de fazer. No entanto, Richard Taylor destaca:
"A
Bíblia mostra que a prática do pecado e o Filho de Deus são totalmente
incompatíveis; e que a apostasia é uma possibilidade, ainda que não seja normal
nem o que se espera na experiência cristã. O Novo Testamento sublinha que a fé
evangélica é como um tempo presente, uma atitude contínua de confiança e
obediência, 'aquele que crê no Filho tem a vida eterna, mas aquele que não crê
no Filho não verá a vida' (Jo 3.36; Tg 2.14-26)".
"Testificando
também Deus com eles, por sinais, e milagres, e várias maravilhas, e dons do
Espírito Santo, distribuídos por sua vontade?" (v. 4). O escritor F.
Dattler destaca:
"A
insistência sobre os prodígios, Hb possui em comum com o 4º Evangelho onde tais
fatos formam argumentos essenciais em abono da legitimidade de Jesus de Nazaré:
Jo 1.14,51; 2.11,23; 3.2; 5.17-20,36; 6.14,26; 7.21,31; 9.3,16; 10.32,37,41;
11.47; 12.18,37; 14.10; 15.24. Com a morte de Jesus, os milagres não
desapareceram; os discípulos fariam maiores ainda (Jo 14.12); maiores se não em
qualidade, pelo menos em quantidade, como se vê nos Atos dos Apóstolos e na
variedade imensa de carismas descritos em Rm 12 e 1 Cor 12."
A
Igreja Primitiva, formada por crentes tanto da primeira como da segunda
geração, estavam familiarizados com os carismas do Espírito. Para o autor, a
Salvação não ocorreu apenas no plano subjetivo e teórico, mas também no
objetivo e prático. O Espírito Santo, através dos discípulos, deu testemunho
dessa salvação. Os termos gregos: semeiois (sinais), terasin (maravilhas) e
dynamesin (poder, prodígios, milagres) são frequentemente usados nos Atos dos
apóstolos (At 4.30,33; 5.12; 14.3,8-10). No Velho Testamento, o Espírito vinha
sobre algumas pessoas especiais: o rei, o legislador, o profeta e o sacerdote.
Todavia, na Nova Aliança, Ele foi derramado sobre toda a carne (At 2.17). Os
crentes Hebreus possuíam consciência desses fatos, mas, mesmo assim, davam
sinais de esquecimento.
Como
de costume, o autor mais uma vez recorre a uma citação de um salmo (8.4-6) de natureza
messiânica para validar sua argumentação. No judaísmo, esse salmo era um
cântico que celebrava a criação, a tradição cristã; no entanto, devido à sua
citação na carta aos Hebreus, associou-o à redenção. "Em vários períodos,
o salmo foi usado para expressar o tema da imago dei no sentido de que a
dignidade da humanidade é concedida e, em seguida, restaurada pela
salvação/redenção".
C.
S. Keener destaca que era uma crença do judaísmo antigo a de que Deus
sujeitaria a seu povo o governo do mundo vindouro.10 O judaísmo dos dias
neotestamentários alimentava essa esperança.
"Porque
não foi aos anjos que sujeitou o mundo futuro, de que falamos" (v. 5). O
fato em destaque pelo autor é que o mundo será, com efeito, submetido ao
governo não angélico, mas humano. O autor afirma essa crença, porém destacando
que essa promessa teve seu fiel cumprimento no Messias, que era divino e
humano. O autor passa a citar o Salmo 8.
"Mas,
em certo lugar, testificou alguém, dizendo: Que é o homem, para que dele te
lembres? Ou o filho do homem, para que o visites?" (v. 6). Valendo-se da
expressão "em certo lugar", o autor não demonstra imprecisão na sua
citação, mas, sim, o uso do método hebraico de interpretação conhecido como
gezerah shavar, muito usado pelos escribas para unir duas porções das
Escrituras.
"Tu
o fizeste um pouco menor do que os anjos, de glória e de honra o coroaste e o
constituíste sobre as obras de tuas mãos" (v. 7). Essa citação não é feita
para depreciar o homem; pelo contrário, é usada para mostrar sua grandeza. 11 O
autor avança para o desfecho do seu comentário.
"Todas
as coisas lhe sujeitaste debaixo dos pés" (v. 8). F. F. Bruce observa que:
"Quando
o homem falha no cumprimento de seu propósito divino (como em alguma medida,
todos o fizeram na época do Antigo Testamento), Deus levanta outro para que
tome o seu lugar. Mas quem poderia tomar o lugar de Adão? Somente um que foi
capaz de desfazer os efeitos da queda de Adão e, portanto, iniciar uma nova
ordem do mundo".
"Vemos,
porém, coroado de glória e de honra aquele Jesus que fora feito um pouco menor
do que os anjos, por causa da paixão da morte, para que, pela graça de Deus,
provasse a morte por todos" (v. 9). A palavra grega brachy, traduzida como
"menor", é usada aqui em relação ao tempo e significa
temporariamente. Portanto, o texto afirma que, devido à sua humilhação, Jesus
temporariamente foi feito menor do que os anjos, e não que Ele tornou-se menos
digno do que os seres angélicos.13 Alguns autores interpretam esse texto no
sentido de que a glória precedeu o sofrimento. Nesse aspecto, Jesus teria uma
glorificação antecipada. Mas, como observa F. F. Bruce, essa não é a leitura
natural do texto. O autor de Hebreus põe a glorificação como um evento que
seguiu a humilhação de Cristo. Pela primeira vez, o autor cita aqui o nome
"Jesus", o que é uma clara demonstração de sua humanização. "O
Verbo se fez carne e habitou entre nós" (Jo 1.14). O autor usa o termo
grego "graça" (gr. Xaris) pela primeira vez, e o seu sentido é de uma
salvação para todos, universal e ilimitada.14 Ele sacrificou-se por todos e,
como resultado de sua paixão e exaltação, sua morte é extensiva a todos os
homens.15 Adam Clarke (1760-1832), renomado teólogo britânico, vê aqui um
paralelo com o cálice da salvação a qual o Senhor Jesus referiu-se em Mateus
26.39:
"Meu
Pai, se és possível, passa de mim este cálice. Mas, sem bebê-lo, a salvação
haveria sido impossível; portanto, com júbilo o bebeu em lugar de cada alma
humana, fazendo desta maneira sacrifício por todo o pecado da totalidade do
mundo; e isto Ele fez por graça, misericórdia ou infinita bondade de
Deus".
"Porque
convinha que aquele, para quem são todas as coisas e me- diante quem tudo
existe, trazendo muitos filhos à glória, consagrasse, pelas aflições, o
Príncipe da salvação deles" (v. 10). Esse versículo é uma referência à
missão salvífica do Filho e faz um paralelo com 2 Coríntios 5.19. O escritor
Neil R. Lightfoot observa que alguns comentaristas dizem que o texto quer dizer
simplesmente que, através da sua morte, Jesus completou sua obra na terra e
que, por isso, teria Ele superado todas as suas limitações. Todavia, Lightfoot
destaca que "a palavra aperfeiçoar (traduzida aqui como consagrar), que,
com seus cognatos, é característica da epístola, exige mais do que isso. No
geral, ela significa concretização ou inteireza; completar algo, pôr em efeito;
acabar, por exemplo, uma torre ou obra de arte. Mas o significado aqui é
determinado pela Septuaginta, que usa regularmente o termo no Pentateuco para
referir-se à consagração dos sacerdotes (:Êx 29.9, 29.33,35, etc.). Da mesma
forma que, no Velho Testamento, os sacerdotes eram aperfeiçoados ou consagrados
por vários rituais, também Cristo, no Novo, foi aperfeiçoado, consagrado ou
qualificado. A ideia é que, em separado do sofrimento, Cristo não poderia
ter-se tomado um Líder inteiramente eficaz, perfeito, do seu povo".
"Porque,
assim o que santifica como os que são santificados, são todos de um; por cuja
causa não se envergonha de lhes chamar irmãos" (v. 11). Aqui, o autor
mostra a fonte de santificação do crente: Cristo. É o sangue de Cristo que nos
purifica de todo pecado. Posteriormente, ele vai afirmar que, sem a
santificação, ninguém verá o Senhor.
"Dizendo:
Anunciarei o teu nome a meus irmãos, cantar-te-ei louvores no meio da
congregação" (v. 12). O autor novamente recorre a textos messiânicos para
corroborar sua argumentação. No primeiro texto, ele usa o Salmo 22.22. Os
evangelistas relacionaram esse salmo com os eventos da crucificação (Me 15.34).
A identificação de Cristo com a raça humana está claramente demonstrada aqui na
argumentação do autor de Hebreus. Jesus identifica-se com seus irmãos.
"E
outra vez: Porei nele a minha confiança. E outra vez: Eis-me aqui a mim e aos
filhos que Deus me deu" (v. 13). O versículo 13 é uma citação de Isaías
8.17. No contexto do livro de Isaías, o profeta demonstra confiança em Deus,
mesmo o povo tendo perdido as esperanças. É exatamente essa mesma confiança que
o Filho de Deus demonstra. Por outro lado, o versículo 14 é usado pelo autor
para, de forma contundente, demonstrar a plena natureza humana de Cristo.
"E,
visto como os filhos participam da carne e do sangue, também ele participou das
mesmas coisas, para que, pela morte, aniquilasse o que tinha o império da
morte, isto é, o diabo" (v. 14). Fritz Laubach destaca:
"Cristo
se tornou realmente humano. O Novo Testamento enfatiza: O Filho de Deus não
permaneceu na glória eterna, mas de forma misteriosa unificou-se plenamente com
nossa natureza humana. Cristo assumiu a nossa natureza, para que nós pudéssemos
participar de sua natureza divina (2 Pe 1.4)".
A
palavra "aniquilar" não tem o sentido de "destruir" no
original grego, mas, sim, o de "tornar inoperante",
"anular", "fazer como se não mais existisse". Através da
morte e ressurreição de Jesus, Satanás foi destronado (cf. CI 2.15). A
consequência imediata da vitória de Jesus está demonstrada no versículo 15.
"E
livrasse todos os que, com medo da morte, estavam por toda a vida sujeitos à
servidão" (v. 15). O cristão não deve mais temer a morte, embora seja
ainda necessário passar por ela. Não há mais insegurança e incerteza, já que
Jesus, através de sua morte e ressurreição, destronou o poder que ela detinha
(1 Co 15.55; 2 Tm 1.1O). Cirilo de Alexandria (378-444 d.C.), em seu comentário
de Hebreus, escreveu: "Existindo essencialmente com vida, o Logos
Unigênito de Deus uniu-se Ele mesmo à carne terrena e mortal, para que a morte,
que perseguia o homem como um animal feroz, soltasse a sua presa".
"Porque,
na verdade, ele não tomou os anjos, mas tomou a descendência de Abraão"
(v. 16). A morte de Jesus foi pelos homens, e não pelos anjos caídos.
"Pelo
que convinha que, em tudo, fosse semelhante aos irmãos, para ser misericordioso
e fiel sumo sacerdote naquilo que é de Deus, para expiar os pecados do
povo" (v. 17). A identificação de Jesus com a humanidade é feita pelo
autor através da expressão "em tudo, fosse semelhante aos irmãos".
Para salvar os homens, era necessário Jesus tornar-se como eles. Evidentemente,
essas palavras do autor não devem ser tomadas em seu sentido literal, pois
Jesus não cometeu pecados como os demais homens. Aqui, pela primeira vez nessa
carta, o autor usa o termo "sumo sacerdote" em referência à pessoa de
Jesus. Trata-se de uma prepara¬ ção para o que ele tenciona dizer daqui para
frente. Ao comentar esse texto, João Crisóstomo (347-407 d.C.) escreveu:
"Não
há nos honrado somente com a fraternidade, senão também de diversas maneiras;
assim quis se fazer sumo sacerdote ante o Pai, pois acrescenta: 'A fim ser misericordioso
e sumo sacerdote fiel nas coisas que se referem a Deus'. Por isso, afirma -
assumiu nossa carne não somente por benevolência, senão para ter misericórdia
de nós. Certamente, não existe outra causa da redenção; essa somente! Com
efeito, nos vê abatidos na terra, pedidos, tiranizados pela morte, e tem
misericórdia"
"Porque,
naquilo que ele mesmo, sendo tentado, padeceu, pode socorrer aos que são
tentados" (v. 18). Aqui, o autor mostra Jesus como Sumo Sacerdote. Muito
mais do que os sacerdotes no Antigo Testamento - que representavam os homens
diante de Deus, fazendo intercessão e expiação por seus pecados - Jesus pode
socorrer os crentes. Ele conhece nossas vidas e natureza e, por isso, está
pronto a interceder por nós.
RETIRADO
DO LIVRO: A supremacia de Cristo.
Fé,
esperança e ânimo na carta aos Hebreus.
José
Gonçalves
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