Comentário de Hebreus 4.1-16
RETIRADO DO
LIVRO: A supremacia de Cristo.
O autor já havia feito uma serie de
exortações, tomando a rota do Êxodo sob a liderança de Moisés como ponto de
partida. Tendo o grande legislador hebreu morrido, coube a Josué, um dos seus
auxiliares mais próximos, a missão de levar o povo a entrar na Terra Prometida
(Js 1.1). Para o antigo povo de Deus, a entrada em Canaã significava o descanso
da jornada e o cumprimento da promessa de Deus, só que o autor de Hebreus
destaca que esse descanso, de fato, nunca ocorreu em sua plenitude. E não
ocorreu porque assim teria de ser, mas, sim, porque a incredulidade e a
rebeldia não permitiram. Deus não decretara nada daquilo que negativamente
marcara seu antigo povo. Da mesma forma, os destinatários da carta aos Hebreus
não podiam responsabilizá-lo pelo fracasso daqueles que ficariam para trás. O
autor alerta que a coisa parecia repetir-se, não mais rumo à conquista da
terra, mas, agora, na trajetória rumo ao Céu.
Esse descanso é entendido pelos
intérpretes como a entrada na nova aliança. Nesse aspecto, o autor mostra que
alguns se excluíram dele porque não receberam com fé a mensagem do evangelho
(4.1.2). Essa falta de compromisso com a mensagem da cruz colocava-os numa
posição de perigo. George Howard Guthrie (nascido em 1959) observa que é um
descanso no qual todos devem esforçar-se para entrar (4.11)
- já que a entrada na nova aliança
exige um posicionamento corajoso ao lado de Cristo e de sua Igreja - mas, por
outro lado, implica no descanso das próprias obras (4.10). Guthrie ainda
destaca que a carta aos hebreus deixa claro que isso exige uma fé obediente que
está disposta a afastar-se do erro para abraçar a Palavra de Deus. Esse
descanso possui uma dimensão presente, no qual se participa agora pela fé (4.3)
e que terá sua consumação no fim dos tempos.
"Temamos, pois, que, por ventura,
deixada a promessa de entrar no seu repouso, pareça que algum de vós fique para
trás" (v. 1). De uma forma recorrente, como o faz em vários pontos dessa
carta, o autor usa outra vez de um contundente tom exortativo. Temamos é a
tradução do grego phobethomen, derivado de phobeomai, que ocorre 95 vezes no
Novo Testamento. Joseph Henry Thayer (1828-1901) traduz como: temor, medo, ser
atingido pelo medo, ficar alarmado.2 Nessa carta, esse termo aparece novamente
nos capítulos 11.23,27 e 13.6. O sentido é
de alguém que sente receio, temor
ou medo diante de alguma situação que inspira cuidados. Dessa forma, é
traduzido para descrever o temor que o apóstolo Paulo demonstrou diante de uma
real possibilidade de dano que Satanás poderia causar aos crentes de Corinto.
"Mas temo que, assim como a serpente enganou Eva com a sua astúcia, assim
também sejam de alguma sorte corrompidos os vossos sentidos e se apartem da
simplicidade que há em Cristo" (2 Co 11.3). F. F. Bruce destaca que a
intenção do autor é mostrar que os crentes
"farão bem em temer a
possibilidade de perder a grande bênção que nos está prometida, da mesma
maneira que a geração de israelitas que morreu no deserto perdeu a Canaã
terrestre, embora fosse o objetivo que tinham diante de si quando saíram do
Egito".
Esse sentido é obtido a partir da
expressão "pareça que algum de vós fique para trás". Guthrie destaca
que o que suscitava temor no autor é que alguns dos membros da comunidade
pareciam não ter alcançado o prometido descanso. Guthrie observa que o autor
não está afirmando categoricamente que alguns deles deixaram de alcançar o
prometido descanso, mas que é necessário exercer a prudência já que essa
possibilidade é real.
"Porque também a nós foram
pregadas as boas-novas, como a eles, mas a palavra da pregação nada lhes aproveitou,
porquanto não estava misturada com a fé naqueles que a ouviram" (v. 2). Ao
referir-se à "palavra da pregação", o autor destaca o modo como Deus
comunicou-se e revelou-se a seu povo no antigo pacto, e não exatamente ao
conteúdo da mensagem pregada, que, evidentemente, era diferente das Boas-Novas anunciadas
no Novo Testamento. Ali, a revelação era
parcial; aqui, total. Deus revelara-se aos antigos hebreus, mas eles não
quiseram escutar. Da mesma forma, os novos hebreus, que receberam uma revelação
em tudo superior, não estavam também atentando ao que fora dito. A razão foi a
incredulidade que não permitiu a palavra produzir efeitos naqueles que a
ouviram.
"Porque nós, os que temos
crido, entramos no repouso, tal como disse: Assim, jurei na minha ira que não
entrarão no meu repouso" (v. 3). A expressão "os que temos
crido" é um particípio aoristo e tem o sentido de "nós que nos tomamos
crentes". Os cristãos que perseveram e não recuam ganham o direito de
entrar no descanso de Deus. A. T. Robertson destaca que o verbo
"entramos" está no presente futurista e, nesse texto, tem o sentido
de "nós temos a segurança de entrar [no descanso], os que cremos". O
descanso de Deus é uma realidade já presente, mas a sua plenitude só terá
efeito no futuro. Deus proveu um descanso para seu povo, mas esse repouso não é
para os indolentes, negligentes e descrentes, e sim para os que fazem a jornada
até o fim. Richard S. Taylor (1912-2006) destaca acertadamente que esse
descanso provido por Deus não deve ser interpretado como garantia de que
"não importa o que façamos, Ele vai dar um jeito de levar-nos até
lá". Pelo contrário, essa evidência da grandeza de Deus deixa-nos
completamente indesculpáveis em nossa descrença temerosa. Esses parágrafos
intensos são uma forte tentativa de chacoalhar os cristãos hebreus em sua falsa
segurança, ao mostrar-lhes que não possuem imunidade contra os perigos da cerca
espiritual.
Neste capítulo, observamos que o
autor refere-se a três tipos de descansos: (1) A entrada do povo de Deus na
Terra Prometida sob a liderança de Josué; (2) O descanso sabático - quando Deus
acabou a obra da Criação; e
O descanso trazido por Cristo. A
patrística também via a obra de Cristo como o ponto culminante desse descanso.
Dessa forma, João Crisóstomo (347-407 d.C) destacava que havia três descansos:
um do sábado, em que Deus descansou de suas obras; um segundo, da Palestina,
quando entraram os judeus nela e descansaram das muitas triangulações e
fadigas; e o terceiro, que é o verdadeiro descanso: o Reino dos céus, onde quem
o obtiver descansará realmente das fadigas e dos sofrimentos. Aqui, ele faz
menção aos três. E por que ao falar de um rememora os três? Para mostrar que o
profeta fala deste último. Ele não se referia ao primeiro, pois diz: não
sucedeu isso nos tempos antigos? Nem tampouco ao segundo, o que teve lugar na
Palestina; como iria referir-se a este se já houvesse tido lugar também? Só resta
o que se refere ao terceiro.
Wesley Adams resume o pensamento do
autor sobre a tipificação desse descanso:
1- O descanso em Canaã é um tipo ou
símbolo do repouso espiritual que Deus promete a seu povo, em Cristo;
2- Esse repouso espiritual é prefigurado
pelo descanso sabático de Deus;
3- Esse descanso espiritual- como
outros aspectos do Reino de Deus - envolve tanto a realidade presente quanto a
esperança futura do povo de fé.
"Porque, em certo lugar, disse
assim do dia sétimo: E repousou Deus de todas as suas obras no sétimo dia"
(v. 4). Recorrendo ao método judaico de fazer hermenêutica, o autor remete a
Gênesis 2.2. Já vimos que essa forma de citar as Escrituras não demonstra
imprecisão por parte do autor; apenas expõe o seu estilo literário. Os
intérpretes destacam que o "repouso" de Deus não significa ociosidade
da parte dEle, mas, sim, que não há nada mais a acrescentar àquilo que Ele fez.
Após concluir sua obra no sétimo dia da criação, Deus descansou de sua obra e
continua ainda nesse descanso.
"E outra vez neste lugar: Não
entrarão no meu repouso"
(v. 5). Mesmo estando esse descanso
disponível para todos os homens, o autor mostra que alguns se excluíram dele. A
razão foi a dureza de coração, a desobediência e a incredulidade. Todavia, esse
descanso continua acessível para aqueles que creem.
"Visto, pois, que resta que
alguns entrem nele e que aqueles a quem primeiro foram pregadas as boas-novas
não entraram por causa da desobediência" (v. 6). Aqui, o autor explica o
versículo anterior. Age ração do êxodo não pode entrar no descanso de Deus,
mas a promessa do descanso continua de pé. Cabe aos crentes da nova aliança
entrar nessa promessa.
"Determina, outra vez, um
certo dia, Hoje, dizendo por Davi, muito tempo depois, como está dito: Hoje, se
ouvirdes a sua voz, não endureçais o vosso coração" (v. 7). O versículo 7
volta à citação do Salmo 95. Para o autor, a promessa do descanso divino não
havia cessado com a entrada do povo na Terra Santa, visto que, aproximadamente
500 anos depois, Davi faz uma atualização dessa promessa no Salmo 95. Se não
mais houvesse a promessa de um descanso para o povo de Deus ao longo de sua
história, o Espírito Santo não teria inspirado o rei-poeta a fazer a
atualização dessa mesma promessa.
Os profetas da Antiga Aliança
mantinham a expectativa de dias de paz e descanso para o povo de Deus, que
ocorreria com a vinda do Messias. O autor de Hebreus já havia lembrado que,
antigamente, Deus falara aos pais pelos profetas e que, naqueles dias, Ele
falava pelo Filho. A chegada da nova aliança significava a entrada nesse descanso.
Para o autor, a expressão "um certo dia, Hoje...", dita por Davi de
forma profética, não se restringia aos dias daquele monarca, mas, sobretudo, à
chegada da Nova Aliança. Nem Josué - nem tampouco nenhum outro líder hebreu -
foi capaz de conduzir o povo de Deus a um descanso pleno.
"Porque, se Josué lhes
houvesse dado repouso, não falaria, depois disso, de outro dia" (v. 8). O
livro de Josué mostra as grandes conquistas efetuadas por ele, mas destaca que
"ainda muitíssima terra ficou para possuir" (Js 13.1). Josué, sem
dúvida, proveu uma forma de "descanso" físico, político e social, mas
o verdadeiro descanso era uma promessa para o povo da nova aliança.
"Portanto, resta ainda um
repouso para o povo de Deus" (v. 9). Aqui no versículo 9, o autor usa a
palavra sabbatismos, derivada de sabbath (Sábado) para referir-se ao descanso
ou repouso em vez de katapausis, usada nos demais versículos desse capítulo,
que mantém o mesmo significado.12 Fica evidente que o autor não se refere ao
repouso sabátko semanal, o que contrariaria todo o seu argumento nessa carta,
que é um alerta aos seus leitores a não retomarem às práticas judaizantH (Cl
2.16). Por outro lado, se o autor estivesse se referindo ao descanso sabático
semanal, não haveria necessidade alguma de dizer que esse descanso era algo
ainda a ser alcançado (resta um repouso (sabbatismos) para o povo de Deus),
visto que o Sábado era uma prática rigorosamente observada no judaísmo dos dias
de Jesus.
"Porque aquele que entrou no
seu repouso, ele próprio repousou de suas obras, como Deus das suas" (v.
10). Esse repouso é uma referência ao dia anelado pelos profetas e que agora se
cumpria com a vinda do Filho de Deus. Da mesma forma que Deus descansou de suas
obras, não tendo mais necessidade de acrescentar nada às coisas que Ele criara,
os crentes que entraram na nova aliança também não precisam mais de mérito
pessoal ou humano para entrar no descanso provido por Jesus Cristo, o Filho de
Deus. O versículo 11 é encerrado com uma advertência.
"Procuremos, pois, entrar
naquele repouso, para que ninguém caia no mesmo exemplo de desobediência"
(v. 11). Adam Clarke comenta in loco: "A palavra indica todo esforço
físico e mental com referência ao assunto. Para que não caia da graça de Deus,
do evangelho e suas bênçãos e pereça para sempre".
"Porque a palavra de Deus é
viva, e eficaz, e mais penetrante do que qualquer espada de dois gumes, e
penetra até à divisão da alma, e do espírito, e das juntas e medulas, e é apta
para discernir os pensamentos e intenções do coração" (v. 12). Na sua
exposição, o autor faz uma das maiores declarações sobre a palavra de Deus.
Alguns comentaristas não conseguiram ver o elo existente entre o versículo 12 e
os demais versículos deste capítulo, mas o melhor entendimento desse texto é
aquele que encontramos nas notas de John Wesley sobre a carta aos Hebreus.
Wesley observa que a palavra de Deus pregada no versículo 2 e reforçada com
advertências no versículo 3 é viva e eficaz; é acompanhada pelo poder do Deus
vivente e comunica vida ou morte àqueles que a ouvem; é mais cortante do que
espada de dois gumes e penetra o coração mais do que a espada pode penetrar o
corpo; que penetra totalmente e deixa aberto; a alma e o espírito, as juntas e
medulas - os lugares mais escondidos da mente. Nada pode ficar fora do alcance
da Palavra de Deus.
"E não há criatura alguma
encoberta diante dele; antes, todas as coisas estão nuas e patentes aos olhos
daquele com quem temos de tratar" (v. 13). O autor usa três termos gregos
para mostrar o poder revelador da palavra de Deus: aphanes (oculto, não
manifesto, escondido); gymnós (nu, aberto, às claras) e trachelizo (expor,
descobrir). Aqui, o sentido é de deixar algo totalmente exposto, sem nada a
esconder. Para o expositor bíblico A. T. Robertson, significa que o microscópio
de Deus pode pôr em evidência o mais diminuto micróbio de dúvida e pecado.
Tendo em vista que a palavra trachelos significa "pescoço" e é usada,
nesse contexto, como algo que está desnudo, descoberto, a metáfora pode
referir-se a um animal que tinha
seu pescoço exposto para o sacrifício ou a um lutador que era dominado pelo
pescoço.16 Em ambos os casos, a metáfora expõe o domínio e o poder revelador da
Palavra de Deus. "Visto que temos um grande sumo sacerdote, Jesus, Filho
de Deus, que penetrou nos céus, retenhamos firmemente a nossa confissão"
(v. 14). O versículo 14 introduz o assunto sobre o qual o autor devotará maior
atenção: a doutrina do sacerdócio de Cristo. Essa seção inicia-se aqui e
estende-se até o capítulo 10 e versículo 18. O descanso do qual o autor acabara
de falar e do qual todos os cristãos participam por direito da aliança só se
tomou possível porque Jesus, como sumo sacerdote, adentrou os céus. O termo grego
dielelythota, derivado de dierxomai, ocorre 42 vezes no Novo Testamento Grego .
Esse termo verbal é usado para retratar
um fato que ocorreu no passado, mas que tem seus efeitos no presente. Aqui, o
sentido é que Jesus penetrou os céus, por ocasião de sua morte e ressurreição,
e ainda está lá. No passado, Jesus levou vicariamente a pena de nossos pecados;
no presente, Ele é o nosso grande sumo sacerdote que continua a interceder por
nós. Esse sumo sacerdote está nos céus, porém não distante do povo. Os cristãos
são exortados a manterem-se firme na sua confissão, que aqui mantém o sentido
de profissão de fé.
"Porque não temos um sumo
sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas; porém um que, como
nós, em tudo foi tentado, mas sem pecado" (v. 15). O autor reconhece a
fragilidade humana e sua vulnerabilidade diante das tentações. Aqui, o verbo
grego peirazo, traduzido como "testar", "tentar", deve
manter esse último sentido por estar associado à hamartia (pecado) no final do
versículo. O autor faz referência a Jesus nos dias de sua humilhação e também
às tentações as quais esteve sujeito. Tendo Ele sido tentado em tudo, pode
socorrer os que também são tentados. A imagem aqui é extraída do sistema
sacerdotal no qual o sacerdote intercedia pelas fraquezas do povo. Richard S.
Taylor observa oportunamente que Jesus não foi tentado em todas as
particularidades ou em cada situação possível. Por exemplo, Ele não foi tentado
como marido, ou pai, ou dono de uma propriedade, ou empregador, ou soldado
porque não exerceu nenhuma dessas funções. Taylor observa que Jesus foi tentado
nas três áreas básicas da suscetibilidade humana: corpo, alma e espírito. Dessa
forma, Jesus conhecia a tentação no campo do apetite do corpo, no campo dos
relacionamentos humanos e no campo dos relacionamentos espirituais. Eu - os
outros - Deus: Ele foi tentado nesses três pontos. O que deveria governá-lo?
Seu desejo por pão? Seu desejo por aceitação? Seu desejo por poder? Ou a sua
lealdade a Deus?19 É exatamente nessas áreas onde ocorre o campo de batalha de
todo cristão. Como nós, Jesus foi tentado, porém não sucumbiu à tentação!
"Cheguemos, pois, com
confiança ao trono da graça, para que possamos alcançar misericórdia e achar
graça, a fim de sermos ajudados em tempo oportuno"
(v. 16). Tendo, pois, Jesus como
esse grande Sumo Sacerdote misericordioso, o cristão é convidado para que, com
ousadia, chegue-se ao trono da graça. A palavra "cheguemos" traduz o
termo grego proserxhometha, derivado de proserchomai, que ocorre 87 vezes no
Novo Testamento grego, sendo sete vezes em Hebreus. É usado em Mateus 9.20 para
descrever a ação da mulher hemorrágica quando se aproximou de Jesus: "E
eis que uma mulher que havia já doze anos padecia de um fluxo de sangue,
chegando por detrás dele, tocou a orla da sua veste". Na Septuaginta, é
usado para descrever a aproximação que o sacerdote mantinha com Deus durante o
culto. Da mesma forma que o sacerdote levita adentrava no santuário para
ministrar a Deus e da mesma forma que a mulher hemorrágica demonstrou coragem,
ousadia e fé para aproximar-se do trono da graça, o cristão também deve
aproximar-se de Deus através da mediação de Jesus Cristo.
RETIRADO DO LIVRO: A supremacia de Cristo.
Fé, esperança e ânimo
na carta aos Hebreus.
José Gonçalves
Nenhum comentário:
Postar um comentário