Extraído do
livro: A supremacia de Cristo , Fé, esperança e ânimo na
carta aos Hebreus.
José
Gonçalves
Comentário de Hebreus 12.1-29 e 13.1-25.
O capítulo 12 de Hebreus continua com o tom
exortativo característico do autor. Neil R. Lightfoot observa que o capítulo 11
não está isolado dessa seção. Ele destaca que o autor:
"combinando
fervor e o discernimento religiosos, trata-se de uma brilhante exortação
colocada em meio a duas grandes seções apelatórias (10.19-39 e cap. 12) com
respeito ao empreendimento cristão. Este capítulo então começa ou continua um
desafio aos leitores para que perseverem na fé até o fim”.
"Portanto, nós também, pois, que estamos rodeados de
uma tão grande
nuvem de testemunhas, deixemos todo embaraço e o pecado que tão de perto nos
rodeia e corramos, com paciência, a carreira que nos está proposta" (v. 1). Tendo discorrido sobre a
odisseia dos heróis da fé, o autor introduz um elemento de conclusão de sua
longa dissertação sobre o valor da fé na vida do crente. Estamos cercados de
todos os lados pelo testemunho daqueles que ousaram acreditar nas promessas de
Deus e viver à altura delas. Ele exorta seus leitores a
deixar todo embaraço. A palavra grega usada aqui para "embaraço" é onkos,
que significa peso, massa, e só aparece aqui no Novo Testamento. Philip
E. Hughes destaca que esse termo é usado em relação a um atleta que se
despirá para a ação, tanto pela remoção do peso supérfluo - mediante rigoroso
treinamento - como pela remoção de todas as suas roupas.
Muitas coisas à nossa volta não são pecados, mas podem
tomar-se um peso do qual precisamos nos livrar.
"olhando para Jesus, autor e consumador da fé, o
qual, pelo gozo que lhe estava proposto, suportou a cruz, desprezando a
afronta, e assentou-se à destra do trono de Deus" (v. 2). O autor encoraja seus leitores a
olharem para Jesus, e não para as circunstâncias ao redor. Ele é o autor e
consumador da nossa fé. O termo grego teleiotés, traduzido aqui como consumador,
tem o sentido de "aquilo que é conduzido até o fim". A ideia é do
alvo que foi alcançado. O autor destaca que, a favor da igreja, Cristo trocou a
alegria pelo desprezo. Ele suportou a cruz. A palavra "cruz" traduz o
termo grego stauros, traduzido como cruz e madeiro. A palavra grega kekathiken, traduzido
"sentar", está no
perfeito. Esse tempo verbal mostra uma ação feita no passado, mas cujos efeitos
continuam no presente. Nesse aspecto, o autor destaca que Cristo, tendo
concluído a obra da redenção, assentou-se à destra de Deus e ainda continua lá
assentado (Ef 1.20). E mais: no Reino espiritual, nós também estamos assentados
com Ele acima de todo principado, potestades, poder, domínios e qualquer nome
que se possa referir não só no presente século, mas também no vindouro (Ef
2.6).
"Considerai, pois, aquele que suportou tais
contradições dos pecadores contra si mesmo, para que não enfraqueçais,
desfalecendo em vossos ânimos" (v. 3). Os crentes hebreus estavam desfalecendo. Deveriam,
portanto, tomar como exemplo Jesus Cristo, que, mesmo sendo inocente, suportou
a afronta dos pecadores.
"Ainda não resististes até ao sangue, combatendo
contra o pecado" (v. 4). Jesus Cristo não apenas suportou o
escárnio, o desprezo e a oposição dos pecadores; muito mais do que isso: Ele
derramou seu sangue pela humanidade. Era verdade que os cristãos hebreus haviam
passado por certas provas e sofrimentos, mas não ao ponto de derramar sangue.
Não havia, portanto, razão para recuar.
Donald Hegner destaca que:
"como
indica o contexto, não a batalha do crente que evita o pecado (cf. o v. 1), mas a luta para vencer a apostasia. Pode
referir-se também ao pecado dos inimigos de Deus que per seguem o povo do
Senhor, tanto quanto pode relacionar-se ao pecado potencial da apostasia que
aflige os leitores. E contra a apostasia que estes devem lutar".
"E já vos
esquecestes da exortação que argumenta convosco como filhos: Filho meu, não
desprezes a correção do Senhor e não desmaies quando, por ele, fores
repreendido" (v. 5).
Citando Provérbios 3.11, o autor mostra que a prova da fé cristã, longe de
sinalizar um abandono de Deus, é uma clara demonstração do seu amor. Aqui, o
autor vê o sofrimento que vem como consequência da oposição desse mundo hostil
como algo positivo que vai acrescer maturidade à vida do
crente. É evidente que o autor não se refere aqui ao sofrimento que foi
provocado pelo próprio crente em virtude de seu pecado ou desobediência, nem
tampouco naquele que é claramente visto como uma ação de Satanás. Aqui, tem-se
em vista o sofrimento de quem vive de forma justa e piedosa e, por causa disso,
entra em rota de colisão com o mundo, a carne e o diabo.
"Pois o Senhor corrige ao que ama, e açoita a todo o
que recebe por filho" (v. 6).
Longe de apresentar Deus como um ser sádico, que tem prazer em ver o sofrimento
dos outros, o autor continua com sua citação do Antigo Testamento, onde mostra
que, muitas vezes, o sofrimento exerce um papel disciplinador na formação do
caráter e identidade do crente. Se sofremos, e Deus se faz presente nesse
sofrimento, então o sofrimento é para nosso próprio bem.
"É para disciplina que sofreis; Deus vos trata como a
filhos; pois qual é o filho a quem o pai não corrija?" (v. 7). O apóstolo Paulo lembrou que,
quando não nos disciplinamos, Deus, então, exerce o seu papel de Pai quando nos
disciplina (1 Co 11.31,32). O autor mostra que, se alguma coisa extraordinária
estivesse acontecendo entre os hebreus, eles deveriam ver isso não de forma
negativa, mas como um agir de Deus para o bem deles. Nem sempre é fácil
ver Deus na adversidade. Como Gideão, dizemos: "O SENHOR nos desamparou" (Jz 6.13).
"Mas, se estais sem disciplina, da qual todos são
feitos participantes, sois, então, bastardos e não filhos" (v. 8). O filho legítimo necessitava de
disciplina e devia ser disciplinado para que tivesse
seu caráter bem formado. Todavia, no mundo antigo, o filho ilegítimo não
recebia tratamento igual. A palavra grega nothos, "ilegítimo",
não indica apenas
"que
o pai não está suficientemente interessado neles para lhes infligir o castigo
apropriado a seus filhos legítimos, mas, também, deve ser entendida no sentido
legal de que um filho ilegítimo não desfruta dos direitos de herança e do
direito de participação no culto familiar".
"Além
do que, tivemos nossos pais segundo a carne, para nos corrigirem, e nós os reverenciamos; não nos sujeitaremos muito mais
ao Pai dos espíritos, para vivermos?" (v.
9). Nesse versículo, a palavra "pais" traduz o grego"pai
deutes", de onde se origina a palavra "paideia" e a
portuguesa pedagogia. A lógica do autor é bastante simples e prática: se nossos pais terrenos possuem o direito de
educar-nos, às vezes tendo que corrigir
comportamentos errados, da mesma forma Deus não pode fazer o mesmo conosco? Se
respeitamos nossos pais, que nos disciplinam, e não os abandonamos de forma alguma, então por que vamos
desistir da fé quando alguma situação adversa surge na nossa caminhada
espiritual? O contraste é feito entre "pais segundo a carne", que tem
o sentido de "pais terrenos", com "Pai dos espíritos", que
tem o sentido de "Pai celeste" ou "Pai espiritual".
"Porque aqueles, na verdade, por um pouco de tempo,
nos corrigiam como bem lhes parecia; mas este, para nosso proveito, para sermos
participantes da sua santidade" (v. 10). Visando um bem maior, nossos pais nos corrigiam
conforme melhor lhes parecia. Às vezes, as suas intenções eram boas, mas a
forma como faziam poderia não ser adequada. Por outro lado, Deus, como nosso
Pai, corrige-nos visando um bem maior e da forma correta. O alvo da correção ou
prova espiritual é a nossa participação na santidade de
Deus. Não podemos servir a Deus de qualquer forma, visto ser Ele um Deus santo;
precisamos nos manter separados daquilo que ofende a sua santidade.
"E, na verdade toda Correção, ao presente, não Parece ser de gozo
se não, de tristeza, as, depois:
produz um fruto pacifico de justiça nos exercitados
por ela"
(v.
11). Nenhuma criança (e adulto também) gosta de ser repreendido ou corrigido. A repreensão mostra-se desconfortável principalmente no
momento em que é feita. Todavia, o autor mostra que o Pai celeste sabe que ela
é necessária e, por isso, corrige-nos segundo melhor lhe parece. Há muitas
famílias e até mesmo igrejas destroçadas por omissão e descaso na aplicação da
disciplina bíblica. Se praticarmos a disciplina, ou, como diz o autor, nela nos
exercitarmos, seremos cristãos bem formados espiritualmente.
"Portanto, tornai a levantar as mãos cansadas e os
joelhos desconjuntados" (v. 12). Como faz com frequência, o autor fundamenta suas
exortações com passagens da Bíblia. Aqui, ele recorre a Isaías 35.3 da
tradução dos LXX. Há muitas semelhanças entre o que Isaías diz para o
antigo Israel com aquilo que o autor vem falando para seus leitores hebreus. A linguagem figurada mostra que é preciso vencer o cansaço e
a fadiga que surge na caminhada.
"E fazei veredas direitas para os vossos pés, para
que o que manqueja se não desvie inteiramente; antes, seja sarado" (v. 13). A metáfora é a de um atleta em plena corrida que poderia
"desviar-se" da rota que lhe foi traçada. O termo "desviar"
usado pelo autor ocorre outras quatro vezes no texto grego (ektrapé) e,
em todas as vezes, são de uso paulino. Duas dessas ocorrências paulinas mantêm
o mesmo sentido que o autor demonstra aqui. Em 1 Timóteo 1.6, é usado para
referir-se àqueles que se haviam desviado da sã doutrina para seguir as
fábulas. Em 1 Timóteo 5.15, o apóstolo usa em
referência às viúvas que se haviam desviado seguindo a Satanás. O perigo de perder o rumo existe, e é por isso que é preciso
vigilância e cuidado.
"Segui a paz com todos e a santificação, sem a qual
ninguém verá o Senhor" (v. 14). O autor volta à santidade sobre a qual já se
havia referido em Hebreus 12.1O. O termo "santidade" traduz o grego hagiasmós,
que, nesse contexto, tem um sentido mais relacional do que cerimonial.
Aqui, o autor usa "santidade" para referir-se ao relacionamento do
crente com Deus. Não se trata de uma forma de prática legalista, mas, sim, da
intimidade do cristão com o Senhor.
"Tendo cuidado de que ninguém se prive da graça de
Deus, e de que nenhuma raiz de amargura, brotando, vos perturbe, e por ela
muitos se contaminem" (v.
15). O autor mantém seu tom exortativo. Aqui, ele exige cuidado e supervisão
(gr. episkopeo) de seus ouvintes para não se privarem da graça de Deus.
Os expositores Wilfrid Haubeck e Heinrich Von Siebenthal destacam que a
expressão "hysteron apo charitos {privar da graça de Deus) tem o
sentido de "ficar para trás não chegar ao destino (na competição) e,
assim, perder a graça". O
expositor George Wesley Buchanan observa que, aqui, o autor tenha ainda em
mente a metáfora da corrida atlética e adapta à corrida cristã. Buchanan
destaca que o autor tem em mente alguma coisa que pode conduzir à idolatria e à
apostasia.7 Para
Richard Taylor, essas palavras do autor de Hebreus também realçam o aspecto
metafórico por ele descrito, só que em referência aos aspectos da vida cristã,
e não propriamente às pessoas.
"Como
as mãos são uma metáfora de serviço, e joelhos são uma figura de atitude (quer
corajosa ou ansiosa), assim os pés são uma figura do caminhar cristão diário.
Se este caminhar é cambaleante e tortuoso, nossa fraqueza se tomará pior, e
nossa influência sobre os outros será prejudicada. Deus deseja a cura; mas nem
as nossas próprias almas nem a nossa influência serão curadas a não ser que
estejamos dispostos a corrigir o que está errado em nossas vidas. O
arrependimento é o pré-requisito para a cura da alma".
"E ninguém seja devasso, ou profano como Esaú, que
por uma simples refeição vendeu o seu direito de primogenitura" (v. 16). A palavra "devasso"
usada aqui traduz o termo grego pornôs, da mesma raiz de pornográfico,
prostituição e imoralidade. No Antigo Testamento, é bastante comum
esse vocábulo ser usado em relação à idolatria como uma forma de prostituição.
Aqui, o contexto sugere o uso desse sentido, pois, ao vender o seu direito de
primogenitura, Esaú agiu com uma mentalidade materialista e avarenta. Ele
valorizou mais o seu desejo que as bênçãos espirituais. Paulo afirma que a
avareza é uma forma de idolatria (Cl 3.5). Por outro lado, o termo
"profano", do grego bébelos, está relacionado à falta de
religiosidade de Esaú, que o fez perder a sua bênção.
"Porque bem sabeis que, querendo ele ainda depois
herdar a bênção, foi rejeitado, porque não achou lugar de arrependimento, ainda
que, com lágrimas o buscou" (v. 17). O autor usa o exemplo de Esaú como uma metáfora
de como devem ser tratadas as coisas espirituais. Esaú serve para exemplificar
que há casos em que o arrependimento pode ser tardio. 9 O expositor Richard Taylor comenta que:
"Esaú
pode ter alcançado arrependimento para a salvação eterna, mas não readquiriu
seu direito de primogenitura (...).Persistirem vender santidade, que é o nosso
direito de primogenitura, pelo prato de lentilhas que este mundo oferece vai
finalmente selar nossa condenação. Há esperança para o relapso, mas não há
esperança para o apóstata absoluto, e não haverá uma 'segunda chance' após a morte".
No caso de Esaú, foi a bênção da
primogenitura; no caso dos Hebreus, era a promessa da salvação.
"Porque não chegastes ao monte palpável, aceso em
fogo, e à escuridão, e às trevas, e à tempestade"
(v. 18). Aqui, o autor usa os textos da
Septuaginta de Deuteronômio 4.11; 5.22-25 e :Êxodo 19.12-19. Os eventos do
Sinai, onde houve manifestações físicas da presença divina, servem para mostrar
como o povo da Antiga Aliança comportou-se diante dessas manifestações. Adam
Clarke destaca que o propósito do escritor era "demonstrar que a
dispensação da lei gera terror; que era terrível e exclusiva; que pertencia
somente ao povo judeu".11 Por outro lado, Bruce vê aqui uma advertência
dada pelo autor de Hebreus àqueles que começaram, mas estavam voltando atrás.
Aqueles que são fiéis não devem temer nada.
"E ao sonido da trombeta, e à voz das palavras, a qual, os que a ou viram pediram que
se lhes não falasse mais" (v. 19). :Êxodo 19 mostra a sequência de eventos quando
Deus revelou-se. A santidade de Deus é demonstrada aos israelitas de uma forma
imponente em :Êxodo 20.18-
21. C.
S. Keener destaca que, naquela ocasião, Deus quis provocar no povo o temor a
fim de que eles parassem de pecar.
"Porque não podiam suportar o que se lhes mandava: Se
até um animal tocar o monte, será apedrejado" (v. 20). Deus é tremendamente santo e,
aqui, os parâmetros sobre a sua santidade atingiam até os animais (Nm 17.3).
"E tão terrível era a visão, que Moisés disse: Estou todo
assombrado e tremendo" (v.
21). Diante da manifestação da glória de Deus, até mesmo Moisés ficou
assustado. No livro de Deuteronômio, ele diz: "Porque temi por causa da
ira e do furor com que o SENHOR tanto estava irado contra vós, para vos
destruir; porém, ainda por esta vez, o SENHOR me ouviu" (Dt 9.19). Donald
Guthrie destaca que:
"Não
há nenhum registro específico no Antigo Testamento de que Moisés tenha dito:
Sinto-me aterrado e trêmulo na ocasião da outorga da lei, mas a ocorrência da
tremedeira não é difícil de se imaginar nessas circunstâncias. A declaração
mais próxima é Deuteronômio 9.19, que registra que Moisés relembra o temor que
sentira. Além disso, há referência ao seu temor diante da sarça ardente (:Êx
3.6), fato este que Estêvão nota em Atos 7.32. Este terror da parte de Moisés
termina abruptamente o comentário do escritor sobre a velha ordem. Seu
interesse centraliza-se na nova ordem".
"Mas chegastes ao monte Sião, e à cidade do Deus
vivo, à Jerusalém celestial, e aos muitos milhares de anjos" (v. 22). O cenário muda do monte Sinai
para o monte Sião; da Jerusalém terrena para a Jerusalém celestial; das figuras
humanas para as figuras angélicas. Aqui, os anjos aparecem não como seres a
serem adorados, mas como adoradores de Deus juntamente com os remidos.
"À universal assembleia e igreja dos primogênitos,
que estão inscritos nos céus, e a Deus, o Juiz de todos, e aos espíritos dos
justos aperfeiçoados" (v.
23). Esse versículo é mais bem traduzido na Bíblia de Jerusalém: "com a
igreja toda, na qual todos são 'primogênitos' e cidadãos do céu." A
expressão "espíritos dos justos aperfeiçoados" é uma referência a
todos os crentes que completaram suas carreiras, que chegaram ao alvo desejado.
É o mesmo termo grego que o autor usou em Hebreus 5.9. "E a Jesus, o
Mediador de uma nova aliança, e ao
sangue da aspersão, que fala melhor do que o de Abel" (v. 24). O
relato de Gênesis 4.10 mostra que o sangue de Abel clama justiça. Na tradição
rabínica, ele continuava clamando contra Caim. Esse conceito do "sangue
que clama" também é lembrado por Jesus: "para que sobre vós caia todo
o sangue justo, que foi derramado sobre a terra, desde o sangue de Abel, o
justo, até ao sangue de Zacarias, filho de Baraquias, que matastes entre o
santuário e o altar" (Mt 23.35). Aqui, o contraste é entre o sangue do
justo Abel, assassinado injustamente, e o sangue de Cristo, o Cordeiro de Deus
imaculado e Mediador de um novo pacto, que foi entregue e morto por todos os homens. F. F. Bruce
destaca que:
"O sangue de Abel clamou a Deus desde a
terra, ele está protestando contra o seu assassinato e reivindicando vingança;
mas o sangue de Cristo traz uma mensagem de limpeza, perdão e paz com Deus para
todos os que depositam sua fé nele".
"Vede que não rejeiteis ao que fala; porque, se não
escaparam aqueles que rejeitaram o que na terra os advertia, muito menos nós, se
nos desviarmos daquele que é dos céus" (v. 25). Com Êxodo 20.19 em mente, o autor volta ao seu
característico tom exortativo. Se a quebra da Lei, que foi outorgada na terra,
no Sinai, trouxe consequências para os desobedientes, muito mais
responsabilidade tem aqueles que são advertidos e que participam de uma aliança
superior, que vem diretamente do céu. "A voz do qual moveu, então, a
terra, mas, agora, anunciou, dizendo: Ainda uma vez comoverei, não só a terra,
senão também o céu" (v. 26). Esse versículo remete a Êxodo 19.18 e
Salmos 68.8. No passado, na outorga da Lei, a voz de Deus foi ouvida como um
estrondo. Na Nova Aliança, essa voz será ouvida no futuro, cumprindo a profecia
de Ageu 2.6: "Porque assim diz o SENHOR dos Exércitos: Ainda uma vez,
daqui a pouco, e farei tremer os céus, e a terra, e o mar, e a terra
seca". O autor de Hebreus usa esse texto como uma referência aos eventos escatológicos finais.
"E esta palavra: Ainda uma vez, mostra a mudança das
coisas móveis, como coisas feitas, para que as imóveis permaneçam" (v. 27). A velha ordem dará lugar a uma
nova ordem. A ideia aqui é que tudo o que existe será "sacudido" e só as coisas que são
inabaláveis· permanecerão.
Donald Hegner sublinha que:
"As
palavras ainda uma vez, extraídas da citação, explicam-se como referência ao
julgamento escatológico (diferentemente do 'abalamento' ou 'sacudidela'
anterior); este abalar envolve purificação das coisas criadas (lit., 'como de
coisas feitas') para que (ou 'a fim de que') só as (coisas) inabaláveis
permaneçam, e mais nada. Mas as coisas que são abaláveis de fato serão
abaladas; e isto é o que faz que a perspectiva do julgamento escatológico seja
uma coisa terrível, (cf. v. 29)".
"Pelo que, tendo recebido um Reino que não pode ser
abalado, retenha mos a graça, pela qual si, vamos a Deus agradavelmente com
reverência e piedade" (v.
28). Aqui, o contraste é feito entre o mutável e o imutável; entre o que é
abalável e o inabalável. A natureza do reino espiritual do qual todos os
crentes fazem parte não sofre desgastes pelo tempo nem tampouco poderá ser
substituído. Como participantes desse reino, a atitude do adorador é de um
coração reverente e cheio de temor.
"Porque o nosso Deus é um fogo consumidor" (v. 29). Aqui, o autor temem mente
Deuteronômio 4.24, que fala de um "Deus zeloso". Diante de um Deus
tão grande e de uma revelação tão completa, o crente não pode agir com
indiferença. 17
A
conclusão da carta aos Hebreus no capítulo 13 segue o modelo das demais cartas
neotestamentárias. Tendo terminado a sua longa exposição teológica, o autor
conclui sua redação com alguns conselhos e recomendações práticas. Na verdade,
essa conclusão apresenta-se como uma forma de "complemento", onde
algumas exortações já feitas no corpo da carta são trazidas à tona,
porém de uma forma menos complexa. Muito da identidade do autor é revelada
aqui. Um homem humilde, piedoso, compromissado e cheio de amor por seus irmãos
aos quais ele queria ver com animo, fé e esperança em tempos de apostasia. "Permaneça
o amor fraternal" (v. 1). O verbo grego usado aqui, menô, está
no presente imperativo. O presente contínuo indica uma ação habitual ou
contínua. O autor começa a conclusão de sua carta com uma ordem ou
mandamento. O sentido é: "continuem permanecendo no amor fraternal".
"Não vos esqueçais da hospitalidade, porque, por ela,
alguns, não o sabendo, hospedaram anjos" (v. 2). O autor lembra seus leitores de
serem hospitaleiros. Essa palavra (philonexenia) é também usada por
Paulo em Romanos 12.13. Visto os constantes deslocamentos e as precárias
acomodações existentes, a hospitalidade era algo extremamente necessário. Aqui,
ela surge como uma demonstração de amor, comunhão e uma troca de bênçãos
recíprocas. Como hospedeiro, Abraão acolheu a anjos (Gn 18.1-8).
"Lembrai-vos dos presos, como se estivésseis presos
com eles, e dos maltratados, como sendo-o vós mesmos também no corpo" (v. 3). É
possível que, nessa passagem, o autor esteja se referindo aos cristãos
encarcerados por causa de sua fé. No primeiro século, os presos, em alguns
casos, não possuíam nem mesmo direito à alimentação. Eles dependiam de terceiros
para prover-lhes o necessário.
"Venerado seja entre todos o matrimônio e o leito sem
mácula; porém aos que se dão à prostituição
e aos adúlteros Deus os julgará" (v. 4). A visão sobre a relação sexual entre os gregos e
romanos era muito diferente daquela que existia entre os hebreus. No mundo
greco-romano, a prática sexual não possuía os limites que a cultura judaica
estabelecia. A pederastia, relação sexual entre uma pessoa mais velha e uma
mais jovem, era uma prática que tinha amparo legal. Foi dito que Nero, o
impiedoso imperador romano, era o homem de toda mulher e a mulher de todo
homem. Sabendo que a prática sexual era vista de forma distorcida nos seus
dias, o autor exorta os seus leitores a manterem a pureza sexual. A forma estabelecida por Deus era a prática do sexo dentro
da esfera matrimonial.
"Sejam vossos costumes sem avareza, contentando-vos
com o que tendes; porque ele disse: Não te deixarei, nem te desampararei" (v. 5). Aqui, a exortação do autor
direciona-se contra a avareza. A palavra grega aphilargyros,
usada no versículo como "avareza", tem o sentido de "sem
amor ao dinheiro". Esse mesmo termo grego é usado em 1 Timóteo 3.3.
Possuir dinheiro não é pecado, mas amar o dinheiro é. O conselho do autor é buscar o contentamento. Aqui, ele
lembra as promessas de Deus a Josué, onde o Senhor mostra seu cuidado com o
grande comandante de Israel (Js 1.5).
"E, assim, com confiança, ousemos dizer: O Senhor é o meu ajudador, e não
temerei o que me possa fazer o homem" (v. 6). Tendo em mente o Salmo 118.6, o autor lembra os seus
leitores da fidelidade de Deus. Esse versículo é bem significativo quando o
contemplamos dentro da exortação que o autor vem fazendo. Numa época de
perseguição, espólio, sofrimento e até mesmo morte, o crente necessita
descansar nas promessas de Deus.
"Lembrai-vos dos vossos pastores, que vos falaram a
palavra de Deus, a fé dos quais imitai, atentando para a sua maneira de
viver" (v. 7). A palavra "pastores"
traduz o vocábulo grego hégeomai, que aparece 20 vezes no Novo
Testamento. O autor de hebreus utiliza esse termo seis vezes, sendo três delas
neste capítulo. 18
Na maioria das vezes, esse termo é aplicar a um "líder". Dessa
forma, Paulo exorta aos Tessalonicenses (1 Ts 5.13); Estevão usa essa palavra
para referir-se a José como "governador" do Egito (At 7.10); em
Hebreus 13.17, o autor usa essa palavra para exortar seus leitores a serem
obedientes a seus pastores. O sentido aqui, portanto, é o de submissão, e não o
de subserviência, dos liderados frente a seus líderes ou pastores.
"Jesus Cristo é o mesmo ontem, e
hoje, e eternamente" (v. 8).
O expositor bíblico Donald Hegner expôs com precisão esse versículo:
"A
ênfase maior desse versículo é que Jesus Cristo, por causa de sua obra do
passado e do presente, é infinitamente capaz de satisfazer todas as
necessidades de todos os cristãos. Isto se toma aparente não só a partir do
contexto, mas também pela estrutura do próprio versículo que diz, literalmente:
'Jesus Cristo ontem e hoje é o mesmo, e até as eras.' Sua obra de ontem, a obra
sacrificial e expiatória como sumo sacerdote, foi exposta pelo autor de Hebreus
com profundidade. É a própria base do cristianismo. Hoje a obra de Cristo
prossegue, na intercessão que ele faz pear nós, à mão direita do Pai (7.25; cf.
4:14-16)".
"Não vos deixeis levar em redor por doutrinas várias
e estranhas, porque bom é que o coração se fortifique com graça e
não com manjares, que de nada aproveitaram aos que a eles se entregaram" (v. 9). Durante sua exposição sobre a
doutrina do sacerdócio, o autor havia deixado bem claro que a Antiga Aliança,
com todo o cerimonialismo levítico, havia sido substituída por uma Nova Aliança
e um novo sacerdócio. Dentro da velha ordem, havia leis minuciosas sobre o que
era considerado limpo e imundo (Dt 4.3-20). Ao acharem que essas regras
tornavam Israel melhor do que os outros povos, eles acabaram desenvolvendo uma
atitude legalista em relação às mesmas. Para o autor, essas práticas não foram
capazes de justificar ninguém diante de Deus. O que importava, portanto, não
era a observância meticulosa dessas leis, mas, sim, um coração limpo e cheio da
graça de Deus.
"Temos um altar de que não têm direito de comer os
que servem ao tabernáculo" (v. 10). Usando uma linguagem metafórica, o autor usa a
cruz como sendo o altar do cristão. Os judeus que insistiam em cultuar a Deus
valendo-se do antigo cerimonial levítico estavam excluídos da verdadeira
adoração cristã. Era uma coisa ou outra. Quem insistisse em participar do velho
sistema estava excluído do novo.
"Porque os corpos dos animais cujo sangue é, pelo pecado, trazido pelo sumo sacerdote para o Santuário,
são queimados fora do arraial" (v. 11). Levítico 9.11 e Números 9.13 descrevem os vários
rituais de sacrifícios que eram realizados fora do acampamento. O expositor C.
S.
Keener observa acertadamente que a referência, nesse versículo, é ao dia da
expiação, quando o sumo sacerdote entrava no Santo dos Santos com o sangue do
sacrifício (Lv 16.27). Jesus cumpriu esse sa crifício no altar celestial.
"E, por isso, também Jesus, para santificar o povo
pelo seu próprio sangue, padeceu fora da porta" (v. 12). Nessa passagem, o autor estabelece um paralelo entre os sacrifícios
realizados no dia da expiação e o sacrifício de Jesus. Naquela ocasião, os
corpos dos animais sacrificados eram queimados fora do acampamento. O relato
em João 19.20 demonstra o fato de Jesus ter sido crucificado fora da cidade. O
sumo sacerdote entrava no santuário com o sangue de animais para fazer o
ritual da purificação; Jesus, todavia, com seu próprio sangue, entrou no Santo
dos Santos para santificar o povo.
"Saiamos, pois, a ele fora do arraial, levando o seu
vitupério" (v.
13). Esse versículo dá sequência à argumentação do autor no verso anterior.
Aqui, o convite é para os crentes deixarem o velho sistema e abraçarem o novo.
Seguir a Jesus significa tomar a sua cruz e levar o seu vitupério. O termo
grego oneidismos (vitupério) ocorre cinco vezes no Novo Testamento e significa
"insulto", "opróbrio". Esse termo já havia sido usado pelo
autor de Hebreus no capítulo 11.26 para referir-se à "desonra"
(NVI) que Moisés sofreu por ter abandonado as glórias do Egito. Seguir a
Cristo é recompensador, mas quem o segue de verdade não terá os aplausos do
mundo.
"Porque não temos aqui cidade permanente, mas
buscamos a futura" (v.
14). A cultura judaica antiga alimentava a esperança numa Jerusalém vindoura,
que não podia ser encontrada aqui na terra. Para o autor de Hebreus, essa Jerusalém
já existe e é para lá que os cristãos devem ansiar ir. Aqui, o contexto sugere
que o autor tem consciência da luta dos cristãos primitivos e não quer vê-los
alimentando expectativas com o velho sistema, simbolizado aqui pela Jerusalém
terrena.
"Portanto, ofereçamos sempre, por ele, a Deus
sacrifício de louvor, isto é, o fruto dos lábios que confessam o seu nome"
(v. 15). Seguindo o texto de Oseias 14.3
da Septuaginta, o autor entra na dinâmica do culto cristão. O sacrifício do
cristão é feito através da adoração e louvor que ele presta a Deus. Cristo
ofereceu-se a si mesmo a Deus, e o cristão, por meio de Cristo, deve render
sacrifícios espirituais. Uma tradição judaica afirmava que todos os sacrifícios
mosaicos teriam um fim, exceto a gratidão, e todas as orações encerrariam,
exceto a de ações de graças.
"E não vos esqueçais da beneficência e comunicação,
porque, com tais sacrifícios, Deus se agrada" (v. 16). Aqui, há um paralelo entre Atos
4.32-33, onde é descrito como vivia a comunidade primitiva. A exortação é para
que os crentes não negligenciem práticas que são saudáveis e necessárias na
vida cristã. As palavras "beneficência" e "comunhão"
traduzem os termos gregos eupoiia e koinonia, respectivamente,
que, neste contexto, significam "prática do bem" e "mútua
cooperação".
"Obedecei a vossos pastores e sujeitai-vos a eles;
porque velam por vossa alma, como aqueles que hão de dar conta delas; para que
o façam com alegria e não gemendo, porque isso
não vos seria útil" (v.
17). Mais uma vez, como já havia feito (v. 7), o autor chama a atenção para a
relação líder-liderado. Aqui, o contexto sugere que o
termo egoumenois (pastor) tem o sentido de alguém que supervisiona ou
pastoreia uma comunidade. Eles devem ser objeto de respeito, amor e
consideração devido à obra que realizam (1 Ts 5.13). O
trabalho pastoral transcende em muito o aspecto material ou físico. Aqui, o
autor diz que o supervisor ou pastor tem a missão de "vigiar",
"estar alerta e vigilante" pela congregação, porque, segundo o autor
de Hebreus, ele está consciente que prestará contas sobre a mesma. Tendo sobre
seus ombros tão grande responsabilidade, seria um fardo a mais suportar a
indiferença de seus liderados.
"Orai por nós, porque confiamos que temos boa
consciência, como aqueles que em tudo querem portar-se honestamente" (v. 18). Embora não saibamos quem
escreveu esta carta, suas palavras revelam o caráter de um homem de Deus. Com
humildade, ele pede oração a seus leitores, mostrando que a sua obra foi feita
com a consciência de quem quer agradar a Deus, e não a si mesmo.
"E rogo-vos, com instância, que assim o façais para
que eu mais de pressa vos seja restituído" (v. 19). Nesse versículo, alguns
argumentam que o autor revela estar encarcerado, mas F. F. Bruce, tendo em
vista o versículo 23, discorda dessa opinião. O fato é que o autor acredita
fortemente no poder da oração e pede todo o empenho da comunidade em favor
dele.
"Ora, o Deus de paz, que pelo sangue do concerto
eterno tornou a trazer dos mortos a nosso Senhor Jesus Cristo, grande Pastor
das ovelhas" (v.
20). Esse versículo é mais bem compreendido dentro da tipologia do Êxodo:
"Todavia, se lembrou dos dias da antiguidade, de Moisés e do seu povo,
dizendo: Onde está aquele que os fez subir do mar com os pastores do seu
rebanho? Onde está aquele que pôs no meio deles o seu Espírito Santo?" (Is
63.11). A imagem é aquela de Moisés como o pastor do povo de Deus na travessia
do mar (SI 77.20). Aqui, a metáfora, como observa Bruce, é que Jesus, o grande
Pastor, assim como Moisés, foi trazido não do mar, mas do domínio da morte.
"Vos aperfeiçoe em toda a boa obra, para fazerdes a
sua vontade, operando em vós o que perante ele é agradável por Cristo Jesus, ao
qual seja glória para todo o sempre. Amém!" (v. 21). Aqui, o autor expressa o
seu desejo de ver seus leitores sendo capacitados e aperfeiçoados no servir a
Deus. O Senhor é a fonte dessa graça que habilita os crentes a realizarem sua
vontade.
"Rogo-vos, porém, irmãos, que suporteis a palavra
desta exortação; porque abreviadamente vos escrevi" (v. 22). O autor tem consciência de que
foi incisivo em muitos pontos de sua argumentação e que fora duro em muitos
deles. Todavia, isso não era tudo. Ele poderia ter dito muito mais, porém o que
fora apresentado era suficiente. Agora, ele rogava-os que essa palavra de
exortação deveria ser acolhida.
"Sabei que já está solto o irmão Timóteo, com o qual
(se vier depressa) vos verei" (v. 23). Aqui, é dada uma informação sobre Timóteo que não
aparece nos demais escritos neotestamentários - a libertação de Timóteo da
prisão. Essa era uma boa notícia para todos os crentes, já que Timóteo, um
discípulo de Paulo, era querido por toda a igreja. "Saudai todos os
vossos chefes e todos os santos. Os da Itália vos saúdam" (v. 24).
Mais uma vez, como já havia feito, o autor demonstra um carinho e um respeito
muito grande pelos supervisores da obra de Deus. Ele recomenda saudações a
todos, juntamente com todos os crentes.
"A graça seja com todos vós. Amém!" (v. 25). O autor termina sua carta como
o faz os demais escritores do Novo Testamento: recomendando a todos a graça de
Deus. Uma carta que começou com a graça, agora termina
também com a graça. Amém.
Nenhum comentário:
Postar um comentário